ISBN: 978-65-87289-36-6 | Redes sociais da ABA:
Grupos de Trabalho (GT)
GT 057: Etnografias em contextos de violência, criminalização e encarceramento
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Coordenação
Natália Bouças do Lago (UNICAMP), Roberto Efrem Filho (UFPB)
Debatedor(a)
Vanessa Sander (UFMG), Karina Biondi (UEMA), Camila Cardoso de Mello Prando (UnB)

Resumo:
Este Grupo de Trabalho objetiva reunir etnografias realizadas em contextos de violência, criminalização e encarceramento. Para tanto, toma “violência” como categoria densamente plurívoca e produtiva, que alude a práticas, experiências, linguagens, razão de denúncia e contextos, servindo como relevante vetor analítico e político. Além disso, divisa “crime” não apenas como o resultado da previsão normativa estatal, mas sobretudo como relação social e razão de governo, processo de criminalização constituinte de sujeitos, corpos e territórios. Por sua vez, compreende “encarceramento” considerando as abordagens que discutem os modos pelos quais a prisão se infiltra em territórios e relações para além daquelas circunscritas pelas unidades penitenciárias. Tendo em vista a crescente proeminência dessas etnografias na antropologia brasileira, este GT se propõe a aglutinar trabalhos que tematizem, por exemplo: a) os desafios, potencialidades e limites metodológicos de empreender pesquisas etnográficas nesses contextos, levando em conta especialmente a cumplicidade entre a escrita da violência e a sua incitação; b) os efeitos dos contextos de pesquisa em mobilizações sociais, lutas por direitos e justiça e a produção ou negação de sujeitos de direitos; c) as imbricações entre experiências de violência, criminalização e/ou encarceramento e categorias de diferença como gênero, sexualidade, raça, classe, geração e territorialidade.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
“ é, e se essa seca do rio trouxer ao menos ao ossada dos nosso filhos?”: notas etnográficas em torno do cárcere, desaparecimento forçado e feminicídio de Estado em Manaus.
Aline Ribeiro de Oliveira (ppgas ufam)
Resumo: Há um considerável acúmulo, em reportagens, textos acadêmicos e notas de repúdio de organizações preocupadas com a constante violação de direitos humanos no Amazonas. Esse material versa sobre mortes violentas, desaparecimento forçado e operação vingança, apontam as recorrentes e constantes ações desse tipo, que fazem parte do cotidiano, tendo alvo principalmente moradores/as de periferia, envolvendo e misturando eventos limites e cotidiano, e borrando as fronteiras do ordinário e extraordinário (DAS, 2020) há uma obsolescência das políticas do Estado para combater ou prevenir esses tipos de acontecimentos, sem levar em consideração sua constante participação direta ou indireta nos casos, para além de uma guerra de números, que pouco precisam o quantitativo desses tipos de caso.( HIRATA,2021) O objetivo central dessa comunicação é refletir sobre o fazer etnográfico a partir de situações de violência de Estado, por forças de segurança pública, de um caso específico ocorrido em Manaus. A partir do acompanhamento de Marilene e Nonata, mães de pessoas vítimas de desaparecimento forçado na cidade, e feminicídio de estado, reflito sobre atravessamentos em torno do encarceramento, a prisão, as ações policiais, gênero e raça, e como esses marcadores descem ao cotidiano dessas mulheres (DAS,2020), pensando e alargando uma relação de dentro e fora da prisão (LAGO,2019) no cotidiano. Pesquisar a partir da experiência da instituição prisional e o crime é uma problemática que escapa aos modelos consagrados do trabalho de campo (BIONDI, 2018), do mesmo modo que requer um esforço teórico para compreender as relações de gênero nesse contexto. O ativismo, os movimentos sociais, e a luta pública são um ponto de partida importante, que me insere em capo+ para compreender relações de encarceramento, mortes violentas, criminalização e Estado (PADOVANI, 2015; MALART, 2014, 2019; LAGO 2014, 2019; GODOI, 2017, BUMACHAR, 2016).
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Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
“Calma que dá tempo!”: uma etnografia sobre a disputa do tempo das mulheres de presos
Beatriz Corrêa dos Santos (UFRRJ)
Resumo: Este trabalho visa analisar o circuito e as visitas das mulheres de presos (LAGO, 2019) do Complexo Penitenciário do Gericinó, em Bangu, bairro da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. A partir de um registro da minha entrada no campo do encarceramento, tenho como estratégia da etnografia o deslocamento do olhar para a vida externa à prisão, mais especificamente para essas mulheres e o manejo do tempo que elas acionam. Observo que o horário da visita organiza o fluxo de pessoas e mercadorias no entorno do presídio e, principalmente, a gestão do cuidado dessas mulheres com suas famílias e seus homens, ou seja, como se mantém no mundo e dão conta dos outros (FERNANDES, 2018). Nesta etnografia pude acompanhar desde o embarque dessas mulheres (mães, tias, esposas e namoradas) às vans de transporte na Vila Kennedy com destino ao presídio, até a formação da fila para entrada das visitas, bem como observei as relações e as dinâmicas comerciais que se estabelecem nesse território. A presença da pressa é um elemento que tensiona o campo. Pressa para chegar ao local, para a distribuição de senha e para a chegada ao pátio do presídio. Compreendo que essa contração temporal é marcada pela economia política sexual (RUBIN, 2012), onde se consolidam as desigualdades de gênero. Elas se desdobram em jornadas, já que ocupam diversas posições na dinâmica social e familiar. A entrada de objetos no sistema prisional é controlada, levando as mulheres a um trabalho exaustivo de separação e procura por mantimentos específicos, denominados como sucata (DUARTE, 2020). Essa rigorosidade consolida uma constante readequação familiar que elabora a manutenção dos vínculos afetivos. Enquanto os homens cumprem o tempo na prisão, mulheres apressadas, perfumadas por suas marmitas e seus perfumes adocicados, disputam o tempo, manejando o tempo do cuidado, em um movimento de reivindicar que esses corpos encarcerados sejam bem cuidados.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Cuidado entre muros: os fazeres de mães, filhos e trancas no estado de São Paulo
Carolina Soares Nunes Pereira (UNICAMP)
Resumo: Esta proposta de paper faz parte de uma pesquisa de doutorado em curso no departamento de sociologia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP - Brasil). A pesquisa enfoca a reprodução social da instituição prisional e dos encarcerados no estado de São Paulo durante o período compreendido como da formação do encarceramento em massa, isto é, a partir da década de 1990 e mais especificamente após o Massacre do Carandiru em 1992. Tendo como marco a Teoria da Reprodução Social, a pesquisa é realizada por meio de uma etnografia com familiares de presos, além de pesquisa em arquivo e análise de documentos. Este paper propõe um enfoque nas complexas relações sociais entre algumas mães e seus filhos que, juntos, puxam cadeia no estado de São Paulo (Brasil), para que os segundos encontrem formas de sobreviver à experiência de estar encarcerado. Discorremos sobre as formas pelas quais a presença e os atos de cuidado das mães interferem no governo da vida e da morte nas prisões, tensionando relações de violência com agentes penitenciários, diretores de presídios, outros presos e também de outros familiares envolvidos no cotidiano prisional. Entendemos que a descrição etnográfica sobre os contextos prisionais é enriquecida pelo enfoque sobre o cuidado e o trabalho reprodutivo realizado principalmente pelas famílias, mas também pelos próprios encarcerados uns em relação aos outros. De forma que a prisão não seja descrita de forma estática como uma instituição de privação e violência, mas que sejam evidenciadas as relações afetivas e econômicas que permitem a reprodução e a expansão do cárcere na complexidade que permeia as vidas dos presos. O trabalho pretende contribuir para os debates que enfocam o deslocamento e a relevância do trabalho de cuidado realizado fora dos limites do ambiente doméstico. Por fim, desejamos demonstrar os diferentes circuitos de trabalho reprodutivo realizado pelas mães como ilustração de diferentes formas pelas quais a prisão afeta a vida urbana, em especial nas dimensões econômicas, afetivas e políticas entre mães e filhos das periferias e prisões paulistas.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
A distinção da violência: políticas de partilha, limpeza étnica e transferência populacional
David Danziger Regenberg (UFRJ)
Resumo: Neste trabalho gostaria de refletir sobre alguns modos de distinção e caracterização de práticas e experiências sob o signo da violência, notando em especial suas dimensões temporais e como isto impacta formas de gestão de populações e territórios. Com isto, minha intenção não é discutir se algo deve ou não ser entendido como violência, nem seu tipo. Concretamente, a partir de uma etnografia documental centrada na circulação de categorias da violência e tecnologias de governo, gostaria de explorar a produção da (in)distinção discursiva entre limpeza étnica e transferência populacional, concentrando-me no campo de debate sobre partilhas como um modo de intervenção internacional e solução humanitária para conflitos étnicos, como desenvolvido nos anos 1990 a partir do contexto da guerra nos Balcãs, mas que reverbera e se ancora nas discussões e tecnologias imperiais da primeira metade do século XX, especialmente relativas à Partilha da Índia (1947) e à Partilha da Palestina (1947). A compreensão pública da violência da guerra nos Balcãs foi marcada pela emergente noção de limpeza étnica, cuja descrição articulava uma imagem do horror que parecia impelir à ação moral para remediar tal situação. Neste contexto, entre diversas propostas de solução, alguns influentes intelectuais defenderam o estabelecimento de Estados nacionais etnicamente homogêneos por meio de partilhas e transferências populacionais, como um modo humanitário de refazer fronteiras, Estados e populações, já que se anteciparia e se realizaria de modo supostamente pacífico o que a limpeza étnica produziria com violência. Desta maneira, busco entender como certas noções de violência compõem políticas de partilha ao produzir distinções, circunscrever possibilidades, limites e necessidades de ação e intervenção, distribuídas desigualmente segundo uma matriz civilizatória que rebaixa destinos possíveis. Limpeza étnica enquanto categoria se estabeleceu desde então como parte do vocabulário jurídico do direito internacional e do imaginário dos crimes contra a humanidade, mas além disso foi incorporada ao vocabulário conceitual das ciências sociais, como categoria analítica passível de ser aplicada retroativamente a uma série de processos históricos retendo algo de sua carga moral, estabilidade e potencial jurídico, inclusive para processos pensados como transferência populacional, apostando em sua denúncia e indistinção. Gostaria por fim de discutir algumas das flutuações entre descrição, análise e denúncia da violência encapsuladas nas transformações e instabilidade destas categorias, refletindo sobre as possíveis relações entre crítica da violência, sua reificação, justificação e infiltração em nossa escrita.
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Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
A violência urbana no trabalho dos entregadores de aplicativos em Arcoverde (PE)
Diego Vinícius de França Bezerra (UFPE)
Resumo: A vulnerabilidade social dos entregadores de apps tornou-se mais evidente durante a pandemia de COVID-19. O empobrecimento e a informalização da classe que vive do trabalho e a crise econômica durante a pandemia que não atingiu as empresas aplicativos que contratavam os entregadores ajudaram a alardear este quadro de precarização das condições de vida nas cidades brasileiras. Nesse período, o IBGE verificou que a maioria deles eram homens pobres, negros, jovens, com baixa escolaridade e sem vínculo formal prévio ao ingresso nos apps (Lapa, 2020). No Nordeste a situação era pior, já que os entregadores trabalhavam mais e recebiam menos do que a média nacional. Além disso, os clientes percebiam que eles geralmente trabalhavam desprotegidos contra a COVID-19, mesmo que tivessem que se relacionar com estranhos durante o isolamento social. A desumanização ocasionada pela gestão do trabalho pelos apps, sobretudo os de food delivery, começou a ser denunciada pelos entregadores em julho de 2020, numa manifestação nacional que ficou conhecida como Breque dos Apps, cuja principal reivindicação era que os apps garantissem melhores condições de trabalho para quem realizava as entregas. A vulnerabilidade social dos entregadores era acompanhada pela marginalização, pois eles eram constantemente acusados por assaltos e acidentes de trânsito e eram expostos frequentemente como sujeitos perigosos nas grandes mídias. A maioria dos casos repercutidos aconteciam nos bairros nobres e nos condomínios fechados. Nesses enclaves urbanos, também era comum os entregadores denunciarem injúrias raciais, ameaças com armas de fogo e agressões físicas. Ainda durante a pandemia, em 2022, escolhi Arcoverde para pesquisá-los, por ser uma cidade de médio porte no Sertão de Pernambuco, um tipo de campo até então ausente nos debates acadêmicos sobre os entregadores de apps. Lá pude me relacionar com os entregadores de uma associação informal que começavam a se manifestar publicamente contra a violência urbana e que discutiam reservadamente sobre a violência policial no município. Também presenciei a inclusão das reivindicações deles nos debates legislativos na Câmera Municipal de Arcoverde. Conversando com entregadores, gestores de trânsito e clientes dos apps, concluí que a discriminação social sofrida pelos sujeitos que se tornavam entregadores em Arcoverde era um elemento indispensável para entender as recentes articulações políticas destes trabalhadores informais, que buscavam a formalização de uma associação profissional da categoria. Por fim, acredito poder contribuir com a temática proposta pelo GT 57, violência, criminalização e encarceramento, ao qual encaminho este resumo, por conta dessa experiência enriquecedora e original no campo de pesquisa.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
A guerra antropofágica”: sobre violências e vinganças em uma guerra não tão particular
Eduardo de Oliveira Rodrigues (Colégio Pedro II)
Resumo: A vingança é elemento dotado de importante interesse sociológico, sobretudo pela sua relação com a problemática do conflito. No cenário nacional, o tema é relevante diante de contextos de violência entre grupos armados que transitam entre o legal-ilegal, onde o urbano se transforma em possível recorte analítico do fenômeno. No caso da metrópole carioca, a vingança aparece tal qual dispositivo legitimador da violência estatal letal, em especial na forma de resposta à morte de policiais em serviço. Diante do referido quadro, o presente paper sugere deslocar o foco analítico das situações de vingança em si para os significados que ela assume na perspectiva dos possíveis atores sociais enredados nas vendetas. Meu argumento é que diferentemente de um caráter comumente visto enquanto individual, a guerra de vingança entre PMs e bandidos possui uma dimensão coletiva de "guerra antropofágica dimensão esta fundamental para explicar sua atomização e perpetuação. Este paper deriva de trabalho de campo realizado durante 15 meses junto a candidatos ao próximo concurso de soldado PM, ou seja, antes da entrada desses jovens na polícia. Realizei parte da minha etnografia em um "cursinho" preparatório para o concurso, onde atuei como monitor das disciplinas de humanidades cobradas nas provas. Numa dessas ocasiões, testemunhei o relato de um assalto sofrido por um dos meus interlocutores durante seu trabalho no Uber. Ricardo contou em detalhes o ocorrido, valendo-se da história para afirmar, caso consiga se tornar PM, seu desejo de vingança contra a bandidagem”. O paper explora a referida história e o compartilhamento do sentimento generalizado de vingança por parte dos seus colegas, tendo em vista o papel da violência tal qual ação simbólica, isto é, uma linguagem aberta a processos de inteligibilidade e interpretação entre seus perpetradores e vítimas sejam eles do presente, passado ou futuro. Os resultados do paper são um recorte específico da minha tese doutoral. Com base nesses dados, afirmo que muitos dos significados nativos acerca da vingança são tributários de um processo em gestação já antes da entrada desses jovens na polícia. Vivendo em distintos contextos de precariedade, meus interlocutores compartilham relativamente de um mesmo fundo cultural com os bandidos que eles afirmam pretender combater. Neste cenário, casos conhecidos de agressão/vitimização violenta entre polícias e bandidos passam por um processo de atomização, onde os inimigos em disputa tendem a perder sua identidade individual e assumir um lugar na memória coletiva do conflito. Tal procedimento é fundamental para justificar e repactuar as agressões entre aqueles que participam da guerra antropofágica sejam eles tupinambás, sejam eles polícias ou bandidos”.
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Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Como (não) contar um linchamento? Entre uma experiência dolorosa e o registro jornalístico
Fábio Magalhães Candotti (UFAM)
Resumo: Este trabalho apresenta uma etnografia de um linchamento letal de um jovem sobrevivente do sistema carcerário, em Manaus, capital do Amazonas, em 2022. Trata-se de um esforço delicado de elaboração de uma experiência dolorosa, uma vez que conheci o jovem e convivo com parte de sua família há anos, em meio à luta anticarcerária. O que motiva esse esforço é confluência de dois processos: por um lado, o desejo, compartilhado por familiares e por mim, de não permitir o esquecimento da vida perdida, do próprio acontecimento e da injustiça que o cerca; por outro lado, tudo se deu enquanto eu finalizava um estudo sobre linchamentos noticiados. Nesse estudo, junto com outras/os colegas, analisamos e interpretamos, 578 reportagens, totalizando 600 eventos, ocorridos entre 2011 e 2020, em três metrópoles brasileiras. Além da frequência de casos e mortes, das motivações, do perfil de vítimas, dos instrumentos utilizados e da atuação policial, realizamos uma análise sobre a maneira como o jornalismo descreve os linchamentos por meio da quantificação da ausência de informações e da frequência de palavras nas reportagens, obtida com a análise computadorizada dos textos. Esse estudo se somou a uma etnografia de situações de linchamento (observadas diretamente por pesquisadores/as, narradas por interlocutoras/es, assistidas em vídeos) que, apesar de menos sistemática, mostrou-se fecunda para pensar a maneira como esses eventos ocorrem antes do registro jornalístico: através de uma malha de agentes (humanos e não humanos) que borra as linhas que separam o estatal e o não estatal, o policial, o trabalhador e o bandido”. Um dispositivo que chamamos de vigilantismo difuso. Mais do que isso, seguindo os fios dessa malha, essa etnografia permitiu pensar, igualmente, a maneira como a escrita jornalística ao lado de reportagens televisivas se alia ao trabalho policial e desdobra o que parece terminar nas ruas, participando de um agenciamento mais amplo que colabora não somente na produção contínua de mortes no meio das ruas, como numa certa incontabilidade dos linchamentos, no duplo sentido do termo: uma ausência de contagem de casos (seja por órgão de estado, seja por estudos acadêmicos, seja pela sociedade civil dedicada ao tema da violência”) e uma ausência de narrativas (seja em documentos de estado, seja em livros acadêmicos, seja em reportagens). O exercício de narrar a morte de uma pessoa querida, em aliança com as palavras e pensamentos de familiares ativistas, oferece, como contraponto, a elaboração de um dissenso que mostra a maneira como prisões, ruas, delegacias, hospitais e veículos de comunicação se conectam por meio da punição corporal e afetiva que ultrapassa a pessoa linchada. Em relevo nesse dissenso, está a noção de tortura”.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Colocando nossos blocos na rua: os limites e potencialidades do fazer etnográfico em contextos de violência
Isabela Vianna Pinho (UFSCar), Isabela Vianna Pinho (UFSCar), Marcelli Cipriani (UFRGS), Ada Rízia Barbosa de Carvalho (USP), Juliana Torres y Plá Trevas (UFPE), Alana Barros Santos (UNICAMP)
Resumo: O presente artigo surge do diálogo entre cinco etnógrafas que realizam distintas pesquisas em quatro estados brasileiros: Alagoas, Pernambuco, Rio Grande do Sul e São Paulo. Embora cada uma dessas investigações reflita especificidades teóricas, temáticas e territoriais, todas estão imersas em contextos de violência, precariedade, criminalização e encarceramento, sendo nossos trabalhos de campo desenvolvidos em unidades prisionais e/ou periferias urbanas. Como resultado, tais contextos e lugares não só compõem os debates socioantropológicos nos quais estamos inseridas, mas tornam-se uma dimensão estruturante de nossa reflexividade como pesquisadoras. Se a escrita etnográfica é feita da descrição densa dos vínculos, mediações e articulações postos em movimento nas tramas de vida com as quais nos deparamos e engajamos em campo, são as tensões e ambivalências abertas pela seleção, composição e descrição desses encontros que aqui interrogamos. A partir de nossas interlocuções, percebemos que essas são preocupações comuns aos nossos percursos de pesquisa, muito embora sejam poucas vezes elaboradas e publicizadas. Por tal motivo, nos propomos a refletir sobre os desafios, as potencialidades e os limites metodológicos e epistemológicos identificados ao longo de nossos fazeres etnográficos e durante o processo de construção de nossas escritas, bem como a debater os caminhos aos quais aderimos e suas decorrentes justificativas. Consideramos, por exemplo, o risco à reificação de nossos objetos de estudo como consequência da seleção das informações coletadas; o reforço, por meio da exposição de certos dados, a representações sociais essencialistas e, no limite, punitivistas; as possibilidades concretas de reconhecimento da agência e da competência das atrizes e dos atores na reconstituição de situações; e, enfim, a mobilização de nossas escritas por meio de usos e contra usos pontuais e não necessariamente convergentes com os propósitos dos trabalhos. Diante de questões como essas, debatemos sobre o papel ativo que assumimos em cada uma de nossas pesquisas e sobre as escolhas que efetuamos (Fonseca, 2008), a fim de refletir de modo mais amplo sobre um fazer sociológico e antropológico que, nesses contextos etnográficos, reconheça os vínculos e as narrativas partilhadas por nossas interlocutoras e nossos interlocutores fugindo de uma condescendência intelectual que reproduza descrições romantizadas do que vemos, ouvimos e testemunhamos em campo, mas desenvolvendo táticas que evitem decair em uma cumplicidade, ainda que indireta, com a incitação da violência, com a negação dos atores como sujeitos de direitos e com o reforço à criminalização (cf. Cidade & Trabalho, 2020; Godoi et al., 2020; Marques, 2017; Salla, 2020).

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
A (des) construção da vítima inocente: Reflexões sobre a economia moral da inocência nas experiências micropolíticas de moradores de áreas de favelas do Rio
Jacqueline de Oliveira Muniz (UFF), Fatima Regina Cecchetto (FIOCRUZ), Gabriela Abrantes de Queiroz (UFF)
Resumo: Aborda-se a categoria vítima inocente e suas manobras de sentido na gestão da violência letal. Trata-se de relato de pesquisa em curso, desde 2017, com juventudes periféricas e policiais do Rio de Janeiro. Apoia-se no trabalho de campo em favelas cariocas em diálogo com a narrativa jornalística sobre operações policiais construída por meio de uma base de dados de notícias de sites abertos. Adota-se como rumo analítico a produção da insegurança como projeto político. Este opera um regime do medo que, com suas práticas de exceção, administra e legitima o matar, o deixar matar e o deixar morrer como expressão da governança com o crime. Evidencia-se as moralidades que caracterizam certas pessoas assassinadas como vítimas de mortes praticadas por policiais e domínios armados. Revela-se que categorizar as vítimas é um ato político, no qual o ato de nomear e atribuir sentido está em disputa entre agentes estatais, integrantes das mídias, parentes dos vitimados, ativistas sociais etc. A violência letal sofrida por alguém não é um marcador suficiente para que lhe seja concedido o status de vítima e de sua qualificação como "inocente" post mortem. Vê-se a combinação negociada de atributos identitários e seus salvos condutos morais no contexto de vitimização. Traz-se à cena discursiva as chaves interpretativas que reconstroem a trajetória do candidato à vítima e de seus credenciamentos sociais. Tem-se manobras interseccionais das razões de cor, gênero, orientação sexual, etária, classe, origem e inscrição religiosa para anunciar ou ocultar um lugar legítimo de vítima e inocente. Ser uma vítima, de fato e de direito, requer um "nada consta" moral que valide esta titulação póstuma e indique a fatalidade de uma morte injusta e sem merecimento. É preciso a validação do Estado que só fala a sua língua, dramatizando um embate entre suas instituições de segurança e justiça em busca da verdade soberana: quem pode e deve ser uma vítima inocente? A economia moral da produção política da vítima em seus status, faz uso da antinomia inocência e culpa que diferencia as vítimas para além da suas mortes e, em retrospecto, no aquém biográfico recontado quando ainda vivas. Nota-se os rendimentos da fabricação de juízos classificatórios e sentenciamentos cumulativos e reversos para situar as táticas discursivas que fazem justiça ao morto. Limpa o seu nome pela sua conversão processual à condição futura de vítima inocente, morta injustamente. Ou confirma sua culpa prévia como uma vítima culpada, envolvida com o crime, pelo seu desfecho fatal vindo de sua estória de vida, recriada como um auto testemunho insuspeito ou uma prova inconteste da perícia social: foi morto, mas procurou a sua morte, pois matar teria méritos e morrer teria merecimentos na guerra contra o crime”.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Sobre as pessoas matáveis e as pessoas não matáveis: a classificação da vida para seguidores da polícia do Amapá
Jade Figueiredo Costa (nenhum)
Resumo: O presente trabalho tem o objetivo de abordar e interpretar interações que discorrem sobre as altas taxas de letalidade policial no Amapá no ano de 2021, com base em categorizações que sugerem a existência de indivíduos matáveis e não matáveis. As classificações, como procuro demonstrar, sugerem o "merecimento" da morte e a "eficiência" da polícia. As notícias que abordam altas taxas de letalidade policial são discutidas no perfil do Instagram "Devotos do BOPE-AP" como ação necessária para uma suposta segurança do Amapá. O Estado registrou em 2021 um índice de letalidade policial de 21,4 óbitos e em 2022, mesmo tendo uma queda nos dados de letalidade, o Estado ainda registrou índices significativos de 16,6 nas taxas de óbito por intervenções policias, sendo a média nacional 3,2. No perfil os seguidores acionam categorias com "bandidos", "vermes" e "vagabundos" para se referirem as pessoas matáveis, essas categorias êmicas são fundamentais para se compreender, de maneira adequada, a rede de significados que informam as visões de mundo dessas pessoas, que estão relacionadas a compreensão local de quem são as pessoas matáveis e quais são os atributos presentes nas pessoas que devem ter seu direito à vida preservado.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Gestão de meninos-problema: Escolas da periferia e a criminalização de trajetórias
João Pedro Dutra Henrique da Silva (UERJ)
Resumo: Esse resumo é resultado de uma pesquisa etnográfica em escolas públicas de favelas no Rio de Janeiro, concentrando-se em analisar o processo de sujeição de alunos rotulados como "meninos-problema", através de dinâmicas discriminatórias, evidenciando a reprodução do racismo e criminalização da pobreza. Ao observar a rotina de duas escolas públicas na periferia, destaco a relevância da localização e da relação da instituição com o território, a fim de compreender como a complexidade das relações territoriais influencia o ambiente escolar, resultando na criminalização dos "meninos-problema". A análise detalhada da trajetória de dois jovens permite explorar como as dinâmicas do território permeiam a escola, contribuindo para a estigmatização desses alunos. Desfrutando da função de estagiário em educação especial pude compartilhar espaços com diferentes alunos, professoras, supervisoras e perceber e comparar as nuances de regimento e performance dos diferentes espaços da escola. Ouvi as opiniões e os comentários de alguns funcionários sobre determinados alunos e também sobre outros profissionais, e vice-versa. A acusação de certos alunos como 'os problemas' é tão frequente que pode ser entendida como um jargão, no qual a palavra 'problema', por força do hábito no ambiente escolar, seus usos e sentidos, faz com que se torne uma metáfora para algum aluno. É comum que os funcionários da escola se referiram a esses alunos apenas como problema, o problemático", "o problema da escola, aquele problema, ou problema do sétimo ano”. Os julgamentos de valor que classificam esses alunos são verbalizados sem tanto pudor em qualquer lugar da escola. Um ritual diário de reificação de estereótipos é performado diariamente: na sala de aula, na frente de todos, nas entre salas da direção, no refeitório enquanto os demais comem, nos gritos de advertência pelos corredores das escolas. Concentro minha análise sobre a escola 1, escola do pé do morro e a forma com que Davi, um menino de apenas 7 anos, é estigmatizado como uma semente do mal e um problema para toda a escola. Sua classificação como meninos-problema se dá devido a seus casos de indisciplina escolar e por supostamente ser filho de um traficante do grupo armado que domina territorialmente o bairro. Dentre diversos episódios testemunhados em que o menino é discriminado pelo corpo de funcionários da escola, para que possamos compreender melhor a gestão e as expectativas da escola sobre a trajetória do menino, trago para análise a ameaça lúdica feita a ele pela diretora da escola depois do envolvimento numa briga durante o recreio Se você não mudar seu comportamento, você vai para aquela escola que não volta pra casa… o DEGASE”.
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Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
“A barbearia muda vidas, né mano?”: medidas socioeducativas e projetos empreendedores
João Victor Borri de Oliveira (UFSCAR), Matheus Martins Sousa (UFSCAR)
Resumo: Este paper decore de uma pesquisa em andamento. O objetivo é investigar as performances de masculinidade de jovens em comprimento de medidas socioeducativas em meio aberto na cidade de São Carlos (SP). Para isso, partimos de uma pesquisa etnográfica que se concentra na observação participante das atividades rotineiras dos jovens que estão em cumprimento de medida socioeducativas, no Salesianos, que é a instituição que articula e promove as medidas em meio aberto na cidade. Já realizamos trabalho de campo nessa instituição há alguns anos, e em trabalhos anteriores pudemos perceber que ao não pluralizar a realidade dos jovens que estão lá, bem como suas masculinidades, criam-se brechas para estigmatizá-los como agentes da violência e pessoas criminosas. E é este argumento que utilizamos de pano de fundo para realizar a reflexão que iremos propor. Neste trabalho, propomos falar de algo que estamos observando nos últimos meses. Gostaríamos de investigar o projeto da barbearia, que é uma tentativa de qualificar e promover a formação desses jovens na área de barbearia e cuidados estéticos. Durante esse processo, averiguamos que falar sobre o empreendedorismo e seus sentidos é algo rotineiro durante as aulas. Embora o objetivo seja fornecer noções básicas para projetos autônomos, acreditamos que em alguns momentos a conversa acaba esbarrando no projeto neoliberal do empreendedor de si mesmo, sobretudo, na capacidade de gerir uma imagem e marca pessoal de forma a maximizar as chances de um notável sucesso profissional. São nesses momentos também, ao falar de empreender, que esses jovens são incentivados que o salão não é o lugar do corre, ou seja, apelos são feitos para que o trabalho nos mercados ilegais não seja realizado no espaço de trabalho formal. É essa reflexão que queremos realizar neste trabalho apresentado na 34º RBA, pois dizer para esses jovens que seu sucesso só depende de você nos parece uma cilada. Ao mesmo tempo, prefigura uma boa estratégia pensando nos efeitos dos apelos realizados para que eles parem de trabalhar com o tráfico. Corrochano, M. C., & Laczynski, P. (2021). Coletivos juvenis nas periferias: trabalho e engajamento em tempos de crise. Linhas Críticas, 27. Feltran, G. (2008). Fronteiras de tensão: um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Editora Unesp. Motta, L. D. (2017). Fazer estado, produzir ordem: sobre projetos e práticas na gestão do conflito urbano em favelas cariocas. Tese (Doutorado) Sociologia, Universidade Federal de São Carlos. Schlittler, M. C. (2011). No Crime e na Medida: uma etnografia do Programa de Medidas Socioeducativas em meio aberto do Salesianos de São Carlos. Dissertação (Mestrado) Sociologia, Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho”.
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Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
A melhor prisão do Brasil: reflexões sobre a gestão da vida e dos números na Unidade Penitenciária Feminina de São Luís, Maranhão
Karina Biondi (UEMA)
Resumo: Nas últimas décadas, a população carcerária brasileira cresceu vertiginosamente, sendo que o crescimento mais expressivo se deu no número de mulheres presas. O Estado do Maranhão seguiu a tendência de crescimento do restante do país, que ocupa atualmente a terceira posição entre os países que mais encarceram no mundo. Depois de uma crise em seu sistema penitenciário que o levou para o tribunal da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Maranhão promoveu por uma ampla reforma no seu sistema carcerário, que ocorreu justamente durante o período de maior crescimento de sua população carcerária. Depois de alguns anos, especificamente em 2023, a Unidade Prisional de Ressocialização Feminina de São Luís (UFPEM), Maranhão, recebeu, pelo segundo ano consecutivo, o prêmio de melhor estabelecimento penal do Brasil no Selo de Gestão Qualificada em Serviços Penais, promovido pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN). Na mesma edição do prêmio, o Estado do Maranhão recebeu o primeiro lugar geral no ranking nacional. De fato, no decorrer de minha pesquisa sobre a vida das mulheres na UPFEM, pude notar um grande esforço na administração da unidade, mas também na Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Maranhão (SEAP) em atingir metas estipuladas. Esse esforço, por parte da administração, como não poderia deixar de ser, impacta diretamente na vida das mulheres em privação de liberdade. Esse impacto, entretanto, não é percebido por elas como algo que aponta para o alcance das métricas buscado pela administração penitenciária. Diferentemente, muitos dos regulamentos que, para os gestores, são racionalmente orientados, para as presas parecem sem sentido, injustos e, no limite, violentos. Nesta apresentação, a partir de pesquisa de campo realizada na UPFEM, mas também junto a egressas e na própria sede da SEAP, pretendo expor o que pude entrever do cotidiano das mulheres na UPFEM, fazendo uma discussão sobre o conjunto de regulações as quais elas passaram a vivenciar no interior de um modelo de gestão prisional celebrado como sendo o melhor do país. Abordarei, especificamente, como os principais itens de avaliação do Selo (segurança, assistências e gestão) se atualizam nos modos de controle dos afetos, dos acessos ao que a administração chama de regalias e da circulação de objetos e de pessoas.
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Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
“De que adianta escrever certo se a gente nem sabe se chegou ao destino”: reflexões acerca da relação intra e extramuros produzida pelas cartas no cotidiano prisional.
Kellyn Gaiki Menegat (UFSC)
Resumo: A partir de uma pesquisa etnográfica realizada com mulheres trans e travestis que cumpriam pena na Penitenciária Masculina de Florianópolis, em Santa Catarina, este trabalho tem por objetivo refletir sobre o papel atribuído às cartas e documentos articulados cotidianamente pelas pessoas vinculadas à instituição prisional. Neste sentido, proponho-me a pensar suas diferentes representações a partir da intersecção dos marcadores de raça, classe social e identidade de gênero das mulheres com quem dialoguei. Durante a realização da pesquisa de campo, pude observar o papel fundamental que as cartas exerciam no cotidiano vivenciado pelas interlocutoras, em alguns casos elas representavam o resgate e a manutenção do contato com seus familiares e amigos a partir de relatos do cotidiano, desenhos e registros fotográficos, bem como, a demonstração de afeto pelos seus companheiros relatado em escritos permeados por amor e saudade, ainda, em outros momentos as cartas representavam para as interlocutoras a possibilidade de serem vistas e ouvidas pelos órgãos judiciais, ao passo que narravam situações de violência e restrições de direitos. Tais documentos atuam enquanto vasos comunicantes que demarcam fronteiras, conectam a prisão e os espaços intra e extramuros, produzindo redes de contato entre interlocutores, familiares e pesquisadores (Feltran, 2011; Godoi, 2015; Lago, 2014). Ao mesmo tempo, as cartas não escapam do controle promovido pelo Estado que, na figura de agentes policiais penais, realiza a leitura daquilo que foi escrito sob o argumento oficial de que ali poderia haver a comunicação de algum plano de fuga ou resgate de pessoas presas, mas que, na prática, se mostra muitas vezes enquanto um mecanismo de punição de determinados corpos a partir de uma análise discricionária daquilo que é permitido entrar e sair da prisão (Padovani, 2015). Dessa forma, neste artigo busco refletir as diversas representações produzidas pelas cartas a partir dos relatos e vivências que surgiram no decorrer do meu trabalho de campo, bem como, a partir das experiências narradas por outros autores e autoras que pesquisam o campo prisional.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
O lamento do general: os caminhos da incriminação dos militantes políticos na ditadura militar
Lucas Pedretti Lima (UERJ)
Resumo: A presente comunicação busca refletir sobre os discursos por meio dos quais o Estado operava a incriminação no sentido proposto por Misse - dos militantes de oposição detidos durante a ditadura militar. O objeto empírico da comunicação é uma entrevista concedida pelo general Antonio Murici, chefe do Estado-Maior do Exército, em 1970, que tinha como objetivo apresentar os resultados de uma pesquisa feita para compreender os caminhos pelos quais a subversão vinha procurando deliberadamente atingir a mocidade”. Nessa entrevista, o militar demonstra verdadeiro lamento por ver jovens das classes A e B que deveriam estar se preparando, em sua visão, para se tornarem futuros chefes se juntando a movimentos revolucionários de oposição ao regime. Essa fonte, quero argumentar, nos permite um acesso privilegiado aos processos de constituição de formas classificatórias e de atribuição de sentido por parte dos agentes do Estado. Tomando-a como um atalho para promover um mergulho etnográfico naquele contexto, pretende-se refletir sobre como os militares foram levados a constituir, durante a ditadura, novos tipos criminais, diante da necessidade de ampliar o rol historicamente existente de sujeitos torturáveis e matáveis na experiência histórica brasileira. Em uma leitura a contrapelo, que leva a sério a síntese formulada por Efrem Filho de que o crime é o sujeito, a análise nos permite reforçar a percepção de que noções como 'vadios', 'vagabundos' e 'bandidos', que desde o século XIX operam para legitimar a violência de Estado no marco da atuação cotidiana das polícias e do sistema de justiça criminal, são atravessadas por determinantes de raça, classe e território. Nesse sentido, era impossível, na prática, que jovens brancos de classe média pudessem ser criminalizados a partir dessas mesmas categorias. Daí a emergência de noções como 'subversivos' e 'terroristas', que construíam outra via por meio da qual os militantes podiam ser situados do outro lado da fronteira moral que divide os cidadãos de bem dos sujeitos matáveis e da fronteira penal que distingue a normalidade do crime. Essa leitura permite compreender, também, que a necessidade de criar novas categorias para legitimar a violência estatal contra os militares era uma indicação de que eles também poderiam trilhar trajetórias específicas em sua tentativa de escapar das marcas da incriminação. Daí se percebe como, nos marcos da luta pela anistia, foi possível uma ampla reabilitação moral, política e criminal dos outrora 'terroristas' e 'subversivos' agora apresentados como 'presos políticos' -, ao mesmo tempo em que a nascente democracia não promoveu qualquer mudança significativa nas estruturas de perpetração de violência de Estado contra os 'bandidos comuns'.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
"A gente é o certo": concepções morais acerca do 'crime' e do Estado por parte dos 'irmãos' de Pedrinhas
Lúcia Mendes Miguez (USP)
Resumo: O presente trabalho parte do objetivo de se debruçar sobre as formulações morais que os meus interlocutores, homens presos, produzem sobre si mesmos, e como essas formulações autorreferenciadas se relacionam ou se diferem de formulações morais feitas sobre o crime, mas de fora dele. Eu denominei as formulações dos homens com quem converso de contra-moral, no sentido de que são relacionais, de dentro, mas referidas à perspectivas de fora. Ser do 'crime', no universo prisional, não é a mesma coisa que cometer um crime, e é um pertencimento sempre em disputa. Pela produção intensa, coesa e específica que o PCC faz de categorias morais relacionadas ao crime, eu escolhi me deter nesse ponto de vista. A partir de uma etnografia realizada no presídio de Pedrinhas, em São Luís - MA, no pavilhão pertencente ao PCC, o trabalho pretende compreender como estes irmãos e companheiros produzem um discurso que parte de uma conduta do Estado para justificar as suas condutas na demanda por direitos. Segundo meus interlocutores, o PCC 'demonstra respeito para ser respeitado', procura dialogar com o Estado para que se chegue em um 'entendimento', mas nunca em uma 'negociação'. Assim, eles 'batem de frente', mas sempre 'em cima' daquilo que o Estado diz, e colocando 'o lado deles', porque, segundo os mesmos, eles sabem 'seus direitos'. Dessa forma, busca-se compreender como o 'certo' é formulado a partir de determinadas balizas, e quais modulações são necessárias para que o 'certo' seja definição moral do 'crime', tal como pensado pelo PCC, muito diferente daquele pensado pelo Estado.
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"Diante da lei está um porteiro": Limites da justiça pelo Estado
Maynara Costa de Oliveira Silva (UFMA)
Resumo: Escrevo sobre como são constituídas e acionadas as categorias violência e crime nos processos de inteligibilidade na instituição policial, a partir de uma perspectiva etnográfica. Para isso, analisei dois inquéritos policiais tramitados na Delegacia da Mulher de São Luís no ano de 2018, que descrevem o caso de Vera e Dominique pois são capazes de evidenciar que o ato de fala da mulher não é apenas um dos procedimentos, mas se constitui como instrumento persecutório do processo penal. O caso de Vera carrega uma dupla narrativa: de um lado sentia-se vítima de uma violência sexual, do outro, não havia materialidade, nem tipificação possível para identificar que aquilo que ela descrevia seria um crime contra sua dignidade sexual. Esse fato ocorreu em abril de 2018, um período em que a classificação era impossível, pois não havia tipo penal específico para sua demanda. Logo, Vera sofreu uma violência, sente-se vítima, mas não é para o Estado e nem o será em breve, não por esse caso. Enquanto, o caso de Dominique, ocorrido em setembro de 2018, acessou a malha classificatória do Estado com uma narrativa semelhante à de Vera a partir da incorporação do sentido da violência a uma norma específica. Isso possibilitou que o processo fosse reconhecido como crime de importunação sexual e a usuária do serviço como vítima e o autor como investigado. Nos dois casos havia uma exposição moral da dor, do grito, do fato, do ato, do sofrimento. Não havia armas, sejam revólveres ou facas. A diferença, no entanto, estaria na lei penal do tempo da ação, na interpretação da norma, nos limites da justiça pelo Estado e suas servidoras. Assim, argumento que ao descrever os processos de Vera e Dominique não busco enfatizar as circunstâncias e similitudes das situações por elas vividas (que de fato são semelhantes), tampouco atear acusações contra a instituição e suas administradoras. Intento, antes, demonstrar que um fato é (re)atualizado cotidianamente a partir de fatores de transformação como a aplicação e a dinâmica do âmbito da lei; as concepções de crime registradas e compreendidas Estado; os procedimentos burocráticos, exames periciais e todos os mecanismos que podem ser acionados para transformar a violência em crime e a mulher em vítima.

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Notas Etnográficas Sobre os Presos em Regime Semiaberto na Penitenciária de Florianópolis
Nicolas Roberto Quadros (Uni)
Resumo: O presente trabalho apresenta as primeiras aproximações de minha pesquisa de Mestrado em Antropologia Social ainda em desenvolvimento junto ao Laboratório Universitário de Política, Direitos, Conflitos e Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (LUPA/UFSC). A pesquisa se justifica em função da situação dos complexos prisionais brasileiros, de precarização vinculada a processos de desumanização e marginalização dos presos, na qual se expressa uma distinção entre sujeitos de direito versus sujeitos negados (BUTLER, 2015). A pesquisa tem por objetivo analisar de que forma os presos em regime semiaberto da Penitenciária de Florianópolis (SC), localizada no bairro da Agronômica, se relacionam com as políticas de reintegração e ressocialização dessa instituição. Busco entender como os apenados vivem e organizam sentidos a partir dessas políticas, tendo em vista que os discursos acerca da ressocialização têm historicamente validado a prisão como a forma mais adequada de punição. Para tanto, tenho desenvolvido como pré-campo observações participantes presenciais, com a manutenção de caderno e diário de campo para o registro das minhas observações em audiências públicas, conferência de direitos humanos e manifestações que discutem a situação dos complexos prisionais em Santa Catarina. A pesquisa tem sua importância ressaltada pela urgência de estudar o campo das prisões na era do encarceramento em massa e da negação dos direitos humanos nos estabelecimentos prisionais. Considerando que, pesquisas antropológicas feitas em prisões vem crescendo e estabelecendo novas maneiras de se fazer etnografia a partir desse campo, compreendo que a presente pesquisa pode contribuir para essa área, a partir do diálogo com os escritos de Michel Misse (2016), Michel Foucault (1987), Loïc Wacquant (2001), Kant de Lima (2000) e Fernando Salla (2013).

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
A violência no corpo e na subjetividade: relatos etnográficos de esposas e companheiras de pessoas em situação prisional em Salvador e região metropolitana
Rebeca de Souza Vieira (UFSC)
Resumo: O presente resumo visa abordar as experiências vivenciadas por mulheres negras, companheiras e esposas de homens em restrição de liberdade em Salvador e na Região Metropolitana que figuram como visitantes no sistema prisional e são submetidas a um controle que vai para além do corpo e transbordam para a subjetividade, uma vez que as mulheres passam por um processo de padronização e negação, como por exemplo: não poder usar extensões de cabelo, mesmo passando pelo body scanner. Assim, a presente pesquisa questiona: como as mulheres percebem o controle do Estado sobre seus corpos e subjetividades no trânsito de se tornar e figurar visitante. Para responder tal questionamento será usado relatos etnográficos que vêm sendo coletados desde de 2022, junto com a observação participante e procedimentos de levantamento bibliográfico e uso de diário e caderno de campo.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
A relação entre os indígenas Guajajara e os aparelhos punitivos estatais
Robson Nonato de Sousa Guajajara (NA)
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo apresentar a experiência de pesquisa realizada na Terra Indígena Rio Pindaré, no Maranhão, no intuito de buscar desenvolver uma reflexão sobre o modo como se dão as práticas de resolução de litígios entre os Guajajara, em suas soluções endógenas e naquelas articuladas com a justiça estatal. Pretendo mostrar que, entre os Guajajara, há modos tradicionais de solucionar conflitos internos sem que, para isso, se recorra à tecnologia prisional. No entanto, muitas vezes os aparelhos policiais e judiciários do Estado brasileiro incidem sobre o cotidiano do povo, ora como forças exógenas que se impõem às práticas tradicionais, ora como parceiros e aliados. Entre esses dois extremos, há toda uma miríade de situações da vida real que são constantemente e cotidianamente problematizadas pelos próprios Guajajara e que variam de aldeia para aldeia, de território para território. Durante a realização do trabalho de campo, foi possível classificar as práticas de solução de litígio em três tipos: simples, média e complexa, que variam conforme os atores envolvido e, principalmente, a participação do sistema de justiça do Estado Brasileiro, ou seja, a justiça universalizante. Dependendo da transgressão causada pelo indivíduo, o grau da punição a ser aplicado pode variar, assim como o conjunto do júri para a deliberação da pena do sujeito causador de um conflito. De todo modo, é possível afirmar que a comunidade constitui regras para tomar uma decisão e para manter essa decisão em vigência, nas percepções de suas características tradicionais. Além disso, se percebeu também que, para os Guajajara, a unidade jurídica não é o indivíduo, mas a pessoa e suas redes amplas de relações. Por isso, a análise de casos de conflitos precisa ser ponderada com cautela, para não influenciar na exaltação dos clãs do acusado e da acusação. Os conflitos causados por litígios nesta T.I. demonstram características peculiares da política interna, do modo como esses Guajajara tratam os seus conflitos, baseados em princípios morais de regras internas de condutas. Mas conclui-se que, devido às mudanças ocorridas na região, foram desencadeadas relações interétnicas com o sistema de justiça da sociedade abrangente, que em alguns casos vem se impondo às alternativas praticadas pelos Guajajara para tratar conflitos internos. Contudo, este trabalho chama atenção para pontos em que a sociedade civilizada tem muito que aprender com uma comunidade indígena, em particular na significação de percorrer outros caminhos na cientificidade do estudo teórico sobre conflito, crime, e na maneira de julgar uma pena a um transgressor da ordem.
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Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
À Mesa da Prisão: Uma etnografia das práticas alimentares no Presídio Regional de Pelotas
Tamires Rodrigues Siqueira (UFPEL), Renata Menasche (UFPEL)
Resumo: A alimentação adequada e saudável é direito constitucional de toda população brasileira, mas dentro do sistema prisional, essa não é uma realidade resguardada. Os relatórios nacionais referentes à alimentação prisional demonstram que a comida oferecida a pessoas em situação de cárcere fere a dignidade humana, sendo caracterizada por má qualidade, não apenas pela insuficiência de frutas e legumes, mas também pela presença de alimentos estragados. Durante o trabalho de campo, notou-se não apenas uma deficiência nutricional na alimentação, mas também uma culinária insípida, na qual o ato de comer perde seu significado cultural e social associado à comida. Isso faz com que o ato de se alimentar não reflita mais o pertencimento dos indivíduos aos seus grupos sociais e resulta na perda da capacidade de evocar memórias afetivas ligadas à comida. Em vez de transmitir significados culturais, a comida oferecida passa a ser apenas mais um elemento da rotina diária. No Brasil, terceiro maior país do mundo em termos de população carcerária, os aspectos mencionados revelam uma política de produção de morte, sobretudo, quando observado quais os grupos sociais com maior participação nos índices de encarceramento: pretos, pobres e analfabetos. Nesse cenário, a partir da observação de práticas alimentares da população carcerária do presídio masculino regional da cidade de Pelotas/RS, a etnografia em curso, submetida à discussão neste GT, pretende apreender tensionamentos revelados nesse contexto. A partir da pesquisa até então realizada, pode-se destacar dois elementos: a alimentação como ferramenta de punição; as estratégias elaboradas pelos sujeitos a partir de práticas de escambo para mitigar os efeitos da alimentação de baixa qualidade. Dentre as fontes de tensão observadas em campo, estão as dinâmicas de organização da distribuição da alimentação e a insuficiente disponibilidade de alimentos. A comida se destaca como um elemento importante para ponderar sobre as complexidades que permeiam o sistema carcerário. A superlotação das celas e o improviso de utensílios com garrafas PET e outros recursos disponíveis, ressaltam a necessidade de uma discussão aprofundada da problemática. Práticas como o escambo, em que se percebe que qualquer coisa pode ser trocada e negociada, desde chinelos até massagens nos pés - como um interlocutor destacou, não há nada lá dentro, então tudo precisa ser inventado -, revelam-se de extrema importância para apreender a dinâmica interna da prisão, os mecanismos de poder subjacentes e as estratégias empregadas para contornar as condições adversas a que estão submetidos, como a superlotação das celas ou o fato de as excreções fisiológicas serem realizadas no mesmo local em que se alimentam.