ISBN: 978-65-87289-36-6 | Redes sociais da ABA:
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 057: Etnografias em contextos de violência, criminalização e encarceramento
A guerra antropofágica”: sobre violências e vinganças em uma guerra não tão particular
A vingança é elemento dotado de importante interesse sociológico, sobretudo pela sua relação com a problemática do conflito. No cenário nacional, o tema é relevante diante de contextos de violência entre grupos armados que transitam entre o legal-ilegal, onde o urbano se transforma em possível recorte analítico do fenômeno. No caso da metrópole carioca, a vingança aparece tal qual dispositivo legitimador da violência estatal letal, em especial na forma de resposta à morte de policiais em serviço. Diante do referido quadro, o presente paper sugere deslocar o foco analítico das situações de vingança em si para os significados que ela assume na perspectiva dos possíveis atores sociais enredados nas vendetas. Meu argumento é que diferentemente de um caráter comumente visto enquanto individual, a guerra de vingança entre PMs e bandidos possui uma dimensão coletiva de "guerra antropofágica dimensão esta fundamental para explicar sua atomização e perpetuação. Este paper deriva de trabalho de campo realizado durante 15 meses junto a candidatos ao próximo concurso de soldado PM, ou seja, antes da entrada desses jovens na polícia. Realizei parte da minha etnografia em um "cursinho" preparatório para o concurso, onde atuei como monitor das disciplinas de humanidades cobradas nas provas. Numa dessas ocasiões, testemunhei o relato de um assalto sofrido por um dos meus interlocutores durante seu trabalho no Uber. Ricardo contou em detalhes o ocorrido, valendo-se da história para afirmar, caso consiga se tornar PM, seu desejo de vingança contra a bandidagem”. O paper explora a referida história e o compartilhamento do sentimento generalizado de vingança por parte dos seus colegas, tendo em vista o papel da violência tal qual ação simbólica, isto é, uma linguagem aberta a processos de inteligibilidade e interpretação entre seus perpetradores e vítimas sejam eles do presente, passado ou futuro. Os resultados do paper são um recorte específico da minha tese doutoral. Com base nesses dados, afirmo que muitos dos significados nativos acerca da vingança são tributários de um processo em gestação já antes da entrada desses jovens na polícia. Vivendo em distintos contextos de precariedade, meus interlocutores compartilham relativamente de um mesmo fundo cultural com os bandidos que eles afirmam pretender combater. Neste cenário, casos conhecidos de agressão/vitimização violenta entre polícias e bandidos passam por um processo de atomização, onde os inimigos em disputa tendem a perder sua identidade individual e assumir um lugar na memória coletiva do conflito. Tal procedimento é fundamental para justificar e repactuar as agressões entre aqueles que participam da guerra antropofágica sejam eles tupinambás, sejam eles polícias ou bandidos”.