Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 057: Etnografias em contextos de violência, criminalização e encarceramento
Como (não) contar um linchamento? Entre uma experiência dolorosa e o registro jornalístico
Este trabalho apresenta uma etnografia de um linchamento letal de um jovem sobrevivente do sistema
carcerário, em Manaus, capital do Amazonas, em 2022. Trata-se de um esforço delicado de elaboração de uma
experiência dolorosa, uma vez que conheci o jovem e convivo com parte de sua família há anos, em meio à luta
anticarcerária. O que motiva esse esforço é confluência de dois processos: por um lado, o desejo,
compartilhado por familiares e por mim, de não permitir o esquecimento da vida perdida, do próprio
acontecimento e da injustiça que o cerca; por outro lado, tudo se deu enquanto eu finalizava um estudo sobre
linchamentos noticiados. Nesse estudo, junto com outras/os colegas, analisamos e interpretamos, 578
reportagens, totalizando 600 eventos, ocorridos entre 2011 e 2020, em três metrópoles brasileiras. Além da
frequência de casos e mortes, das motivações, do perfil de vítimas, dos instrumentos utilizados e da atuação
policial, realizamos uma análise sobre a maneira como o jornalismo descreve os linchamentos por meio da
quantificação da ausência de informações e da frequência de palavras nas reportagens, obtida com a análise
computadorizada dos textos. Esse estudo se somou a uma etnografia de situações de linchamento (observadas
diretamente por pesquisadores/as, narradas por interlocutoras/es, assistidas em vídeos) que, apesar de menos
sistemática, mostrou-se fecunda para pensar a maneira como esses eventos ocorrem antes do registro
jornalístico: através de uma malha de agentes (humanos e não humanos) que borra as linhas que separam o
estatal e o não estatal, o policial, o trabalhador e o bandido. Um dispositivo que chamamos de vigilantismo
difuso. Mais do que isso, seguindo os fios dessa malha, essa etnografia permitiu pensar, igualmente, a
maneira como a escrita jornalística ao lado de reportagens televisivas se alia ao trabalho policial e
desdobra o que parece terminar nas ruas, participando de um agenciamento mais amplo que colabora não somente
na produção contínua de mortes no meio das ruas, como numa certa incontabilidade dos linchamentos, no duplo
sentido do termo: uma ausência de contagem de casos (seja por órgão de estado, seja por estudos acadêmicos,
seja pela sociedade civil dedicada ao tema da violência) e uma ausência de narrativas (seja em documentos
de estado, seja em livros acadêmicos, seja em reportagens). O exercício de narrar a morte de uma pessoa
querida, em aliança com as palavras e pensamentos de familiares ativistas, oferece, como contraponto, a
elaboração de um dissenso que mostra a maneira como prisões, ruas, delegacias, hospitais e veículos de
comunicação se conectam por meio da punição corporal e afetiva que ultrapassa a pessoa linchada. Em relevo
nesse dissenso, está a noção de tortura.