Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 057: Etnografias em contextos de violência, criminalização e encarceramento
O lamento do general: os caminhos da incriminação dos militantes políticos na ditadura militar
A presente comunicação busca refletir sobre os discursos por meio dos quais o Estado operava a
incriminação no sentido proposto por Misse - dos militantes de oposição detidos durante a ditadura militar.
O objeto empírico da comunicação é uma entrevista concedida pelo general Antonio Murici, chefe do
Estado-Maior do Exército, em 1970, que tinha como objetivo apresentar os resultados de uma pesquisa feita
para compreender os caminhos pelos quais a subversão vinha procurando deliberadamente atingir a mocidade.
Nessa entrevista, o militar demonstra verdadeiro lamento por ver jovens das classes A e B que deveriam estar
se preparando, em sua visão, para se tornarem futuros chefes se juntando a movimentos revolucionários de
oposição ao regime. Essa fonte, quero argumentar, nos permite um acesso privilegiado aos processos de
constituição de formas classificatórias e de atribuição de sentido por parte dos agentes do Estado.
Tomando-a como um atalho para promover um mergulho etnográfico naquele contexto, pretende-se refletir sobre
como os militares foram levados a constituir, durante a ditadura, novos tipos criminais, diante da
necessidade de ampliar o rol historicamente existente de sujeitos torturáveis e matáveis na experiência
histórica brasileira. Em uma leitura a contrapelo, que leva a sério a síntese formulada por Efrem Filho de
que o crime é o sujeito, a análise nos permite reforçar a percepção de que noções como 'vadios',
'vagabundos' e 'bandidos', que desde o século XIX operam para legitimar a violência de Estado no marco da
atuação cotidiana das polícias e do sistema de justiça criminal, são atravessadas por determinantes de raça,
classe e território. Nesse sentido, era impossível, na prática, que jovens brancos de classe média pudessem
ser criminalizados a partir dessas mesmas categorias. Daí a emergência de noções como 'subversivos' e
'terroristas', que construíam outra via por meio da qual os militantes podiam ser situados do outro lado da
fronteira moral que divide os cidadãos de bem dos sujeitos matáveis e da fronteira penal que distingue a
normalidade do crime. Essa leitura permite compreender, também, que a necessidade de criar novas categorias
para legitimar a violência estatal contra os militares era uma indicação de que eles também poderiam trilhar
trajetórias específicas em sua tentativa de escapar das marcas da incriminação. Daí se percebe como, nos
marcos da luta pela anistia, foi possível uma ampla reabilitação moral, política e criminal dos outrora
'terroristas' e 'subversivos' agora apresentados como 'presos políticos' -, ao mesmo tempo em que a nascente
democracia não promoveu qualquer mudança significativa nas estruturas de perpetração de violência de Estado
contra os 'bandidos comuns'.