Grupos de Trabalho (GT)
GT 023: Antropologia e saúde mental: sofrimento social e (micro)políticas emancipatórias
Coordenação
Sônia Weidner Maluf (UFSC), Érica Quináglia Silva (UNB)
Debatedor(a)
Ana Paula Müller de Andrade (UNICENTRO)
Resumo:
Esta proposta visa reunir trabalhos sobre diferentes dimensões e contextos do sofrimento social apreendidas pelo campo da saúde mental. As questões de saúde mental têm aparecido como problema emergente nas políticas de saúde, chegando a ser anunciadas como uma possível futura pandemia, dado o aumento considerável dos diagnósticos nos últimos anos, situação agravada com a pandemia de Covid-19. É premente a compreensão antropológica desse contexto: a análise sobre o quanto a saúde mental se produz como linguagem e modelo explicativo de questões mais amplas de sofrimento social; a problematização sobre como experiências sociais, individuais ou coletivas, são apreendidas como questões de saúde mental; o escrutínio sobre os caminhos futuros para políticas de saúde mental e para a emergência de novas práticas e saberes sobre esse tema; as políticas e micropolíticas do sofrimento social, seus modos de abordagem, de resistência e de formulação de projetos emancipatórios. Serão aceitos trabalhos que discutam práticas, políticas e saberes locais, tradicionais e/ou dissidentes; políticas públicas, serviços e ações do Estado nesse campo, envolvendo redes de atendimento, dispositivos epidemiológicos, políticas e biopolíticas pretensamente universais e seus modos desiguais de distribuição de direitos; os saberes científicos e especializados e as tecnologias biomédicas, psiquiátricas, psicológicas e farmacológicas, entre outras, acionadas nesse contexto.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Ana Paula Müller de Andrade (UNICENTRO)
Resumo: Neste trabalho revisito arquivos de pesquisas construídos no diálogo com usuárias/os de serviços de saúde mental com o objetivo de problematizar o momento atual da assistência psiquiátrica no Brasil. Trata-se de um ensaio teórico amparado nos arquivos de pesquisas etnográficas realizadas em três tempos entre os anos de 2011 e 2021. Foram realizadas em momentos distintos da reforma psiquiátrica brasileira, mantiveram em comum o diálogo com usuárias/os dos serviços de saúde mental e, a partir da análise empreendida nos arquivos, apontam para dois aspectos relevantes para a compreensão do momento atual da assistência psiquiátrica: (a) os processos de desinstitucionalização requerem um investimento na dimensão sociocultural a fim de reposicionar socialmente a loucura, o que aparece como bastante frágil nas diferentes pesquisas realizadas; (b) a rede de atenção psicossocial requer mecanismos formais de interlocução com outros setores e coletivos capazes de promover a ampliação dos modos de ofertar a assistência psiquiátrica e de reconhecer a pluralidade de existências. A desinstitucionalização, para além da desospitalização e/ou da mudança estrutural e organizacional da RAPS, implica em criar novas possibilidades de assistência psiquiátrica calcadas na lógica da liberdade e na invenção de formas de cuidado junto às redes sociais dos sujeitos que acessam os serviços de saúde mental. No momento atual da reforma psiquiátrica brasileira, em que os hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico e as comunidades terapêuticas estão sob desestabilização legal, importa retomar os aprendizados tidos até então no campo da atenção psicossocial, especialmente aqueles produzidos no diálogo com os usuários/as, a fim de encontrar pistas para a compreensão do presente. Ainda que tal desestabilização possa anunciar novos tempos, o que as pesquisas indicam é que há processos de universalização e ontologização de categorias centrais do campo da saúde mental, tal como a doença mental. Ainda assim, o que emergiu nas diferentes pesquisas realizadas foram possibilidades de interpretação, singularização e maior ou menor adesão a tais categorias como recurso para a produção de si e alívio do sofrimento de muitos sujeitos. Por fim, destaco que o diagrama de forças e formas que produzem o campo da saúde mental no Brasil está em processo de transformação e requer uma compreensão antropológica com a qual este trabalho pretende contribuir.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Beatriz Figueiredo Levy (pesuqi)
Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar a (re)produção discursiva sobre as representações sociais da loucura e da periculosidade associada a ela, materializadas na figura de Nadine , uma mulher com transtornos psíquicos em conflito com a lei, que foi internada no Hospital Geral Penitenciário (HGP) do Pará. Pretendeu-se investigar de que forma esses discursos atuam como modo de justificar mecanismos de poder em uma instituição que possui caráter tanto manicomial, quanto carcerário. Nadine, de outra mão, sustenta narrativa diversa sobre ela mesma, que também são exploradas. Para tanto, foi realizada uma pesquisa bibliográfica a respeito dos processos de produção discursiva que conduziram às concepções estigmatizadas sobre as ditas loucas infratoras no Brasil. Posteriormente, foi realizada uma etnografia de e em documentos, momento no qual foi analisado o processo judicial que perpassa a internação da interlocutora no HGP, com ênfase nos laudos psiquiátricos, avaliações de equipes multidisciplinares e decisões judiciais presentes nos autos, atentando-se, sobretudo, a como se manifestam os distintos discursos sobre a trajetória de Nadine. A opção pela etnografia em documentos se mostrou via importante para acessar as narrativas em disputa quanto ao destino de uma mulher colocada sob a tutela dos poderes-saberes considerados competentes para decidirem sobre esse aspecto, narrativas essas que abrangem também as suas próprias, considerando seus agenciamentos e estratégias de resistência ao horror do manicômio judiciário.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Crislane Oliveira do Nascimento (UFSC)
Resumo: A pesquisa investiga a Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 AVICO, no processo de construção do luto, enquanto experiência compartilhada em um grupo de suporte no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil. Como objetivos específicos procuramos: descrever e analisar as informações contidas no site oficial da AVICO e seu processo histórico formativo; investigar as percepções dos membros da AVICO sobre as diferentes fases da pandemia de Covid-19 em Manaus/Amazonas e as suas repercussões; e analisar a percepção relativa aos processos de morte e de luto vivenciados durante a pandemia de Covid-19 e de que maneira influenciaram na vivência do luto. O coletivo social surgiu em defesa da luta, justiça e memória das vítimas e garantia igualitária dos Direitos Humanos e constitucionais dos sobreviventes da Covid-19, sendo formado através de voluntários que oferecem apoio e serviços gratuitos acerca de questões: jurídico, apoio psicossocial, mobilização e controle social. Compreender a luta por justiça e garantia aos direitos humanos em decorrência da pandemia de Covid-19 irá contribuir e promover através da ampliação de reconhecimento político e social as demandas propostas pelos seus membros associados. Trata-se de uma pesquisa qualitativa de natureza exploratória e compreensiva, que utilizou a técnica de grupo focal com 04 mulheres, associadas da AVICO, no Diretório de Manaus. O material coletado foi analisado com a abordagem de Análise de Narrativa ancorada em Walter Benjamin (2012). Compreende-se que a AVICO como um grupo que transforma o luto público enquanto ato político, e atua enquanto grupo de apoio social para a experiência do luto através da rede criada e fortalecida no associativismo, ao mesmo tempo em que luta para o não esquecimento dos familiares mortos pela Covid-19, enriquecendo a memória e suas dimensões de luta por justiça e garantia de direitos.
Palavras-chave: AVICO; pandemia; luto; Brasil; Covid-19.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Cristiane Otoni Gomes (Efetivo)
Resumo: O artigo analisa a possibilidade de agência de mulheres em sofrimento psíquico em um grupo de saúde mental, focalizando as vivências de gênero. Destaca a abordagem antropológica da sexualidade, ressaltando influências construtivistas e culturais. Discute diversas perspectivas sobre gênero e feminismos, desde estudos pioneiros com críticas ao longo do século XX até reflexões contemporâneas, propondo uma antropologia mais inclusiva da mulher. McIntosh (1968) discutiu o papel homossexual como uma categoria social, argumentando contra uma abordagem médica ou psiquiátrica. Oakley (1972) e Rubin (1975) expandiram essas reflexões, destacando a variação cultural na definição de gênero e sexo, e separando a sexualidade do gênero como sistemas distintos. Aborda a relação entre agência e saúde mental, considerando as interseccionalidades de gênero, raça e classe, e destaca a importância das políticas públicas nesse contexto. Ortner (2007) e Mahmood (2019) oferecem perspectivas sobre agência e poder. A proposta metodológica deste estudo envolve a análise dos registros feitos por uma usuária e uma trabalhadora que coordenaram os encontros do Grupo de Mulheres em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS III) brasileiro. O grupo, composto principalmente por mulheres negras e pardas de baixa renda e escolaridade, teve como objetivo proporcionar um espaço seguro para discutir vivências de gênero. Os encontros ocorreram semanalmente ao longo de cinco semanas. A metodologia adotada incluiu atividades como apresentação pessoal, escolha de uma palavra representativa, uso de recursos musicais e expressivos, e produção de cartazes reflexivos. O estudo visa compreender como as questões de gênero afetam a saúde mental das mulheres usuárias do CAPS, problematizando as relações de poder e promovendo trocas de experiências e debates no grupo. A partir das considerações sobre registros do grupo, o texto sugere que, apesar do sofrimento, essas mulheres demonstram agência ao refletir sobre suas experiências de dominação. A análise antropológica oferece insights críticos sobre questões de saúde mental e direitos humanos. Por fim, destaca-se a complexidade dos temas para além da visão biomédica, apontando para a necessidade de políticas públicas e antimanicomiais mais inclusivas e sensíveis às questões de gênero.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Daniela Ravelli Cabrini (UNESP)
Resumo: Antropólogos e psiquiatras colaboram com a Saúde Mental Global (GMH) para aprimorar a adequação cultural das ferramentas de avaliação de saúde mental. Dentro desse campo, o Conceito Comum do Sofrimento (Cultural Concept of Distress) surge como uma ferramenta notável para examinar como fatores culturais moldam a forma como os indivíduos comunicam, expressam e enfrentam o sofrimento, sendo incluído no DSM-5. Este artigo se envolve em uma análise crítica de um estudo conduzido durante a pandemia com residentes na favela de Sapopemba, uma região vulnerável da megalópole de São Paulo, Brasil. Um dos objetivos deste estudo era treinar os residentes para administrar dois instrumentos psiquiátricos validados para o Brasil- PANAS e o SRQ-10- para avaliar a saúde mental das pessoas que vivem na mesma região. Com base nas percepções daqueles treinados para usar esses instrumentos, este artigo explora as complexidades em torno das ferramentas psiquiátricas epidemiológicas e sua adaptação cultural. Durante o estudo, o envolvimento ativo com a comunidade trouxe à tona desafios específicos encontrados ao utilizar esses dois instrumentos. Primordialmente, o vocabulário utilizado nessas escalas não ressoava com as experiências cotidianas das pessoas que viviam nesse território. Os membros da comunidade compartilharam a necessidade de "explicar, interpretar e até mesmo traduzir" a terminologia da escala para seus pares, apesar de estar na sua língua. Além disso, eles destacaram a importância de criar confiança com as pessoas que respondiam às perguntas nas escalas padronizadas de psiquiatria. Minha argumentação segue em três etapas. Primeiramente, explorarei se a tradução cultural pode ser limitada apenas à dimensão léxico-semântica, dadas nossas dificuldades com duas ferramentas que já passaram por validação no Brasil. Em seguida, analisarei os desafios de extrair objetividade no contexto de experiências altamente subjetivas enraizadas em significados sociopolíticos. Por fim, abordarei a importância da dinâmica da relação entrevistador-entrevistado durante a coleta de dados. Partindo da ideia de que a antropologia desempenha o trabalho distintivo de tradução cultural e, segundo Viveiros de Castro, "Traduzir é trair o destino da linguagem e não a linguagem de origem", o objetivo deste artigo é reintroduzir a psiquiatria e a antropologia na cena comparativa ao realizar a tradução de outras "culturas".
Palavras-chave: Conceito Cultural de Sofrimento; Tradução Cultural; Favelas Brasileiras.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Eduardo Baptista Prisco Paraiso (UERJ), Júlia Fleury Ferreira (UERJ)
Resumo: Em meio à pandemia da covid-19, um jovem de 26 anos se encolhe num canto da rua com medo e começa a gritar que vai morrer. Uma senhora de 68 anos desiste de caminhar até o mercado com medo das multidões. Ambos afirmam que passaram por crises de pânico. As histórias de Afonso, homem pardo morador de uma favela em São Gonçalo e de Rebeca, uma mulher branca que morava em um apartamento na zona sul do Rio de Janeiro, se encontram nesse trabalho. Elas agem como fio condutor para pensar a forma como as ideias de sofrimento social, de emoções e da linguagem biomédica se articulam em realidades socioeconômicos distintas no intuito de compreender a dor vivenciada por nossos interlocutores. Este trabalho é fruto do encontro das pesquisas de mestrado empreendidas pelos dois autores e dos debates promovidos a partir delas. Realizadas durante a crise sanitária do novo coronavírus, ambos os estudos utilizam entrevistas semi-estruturadas como ferramenta investigativa e contaram com 10 participantes cada. Enquanto uma das pesquisas se debruçou sobre a investigação dos impactos psicossociais do isolamento social em favelas da região metropolitana do Rio de Janeiro, a outra se ateve a investigação das experiencias de adoecimento e internação por covid-19 entre pessoas de camadas medias da mesma região. Para compor essa comunicação no GT, escolhemos recortes das narrativas de nossos interlocutores que abordam as suas experiências de pânico e de medo. Apesar de virem de contextos e possuírem vidas bastante distintas, ambos se utilizam de um vocabulário psi para nomear sua angústia. Com base na linguagem utilizada por ambos os participantes, pretendemos discutir como termos clínicos ultrapassaram as fronteiras da academia, de consultórios e hospitais e passaram a ser empreendidos na vida cotidiana. Questionamos: com que finalidades e em que momentos esses termos são mobilizados? O quanto é preciso patologizar emoções para, então, legitimá-la ou valorizá-la? Que categorias são audíveis? E quem as escuta?
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Francisco Elionardo de Melo Nascimento (professor)
Resumo: Os policiais penais atuam na execução penal, sendo este um trabalho desenvolvido preponderantemente no interior das prisões e longe da visibilidade social. É uma função que se firma na rotina prisional, pelo desenvolvimento de atividades que visam à punição e a ressocialização, com contato direto e prologado com pessoas indesejáveis socialmente. O desempenho desta função é diretamente influenciado pelas condições estruturais das prisões brasileiras que, historicamente, são reconhecidas pela superlotação e insuficientes condições materiais de vida. Os policiais penais são responsáveis diretos pela seleção, remoção, vigilância e movimentação dos presos de suas celas para atendimento de técnicos (médicos, sociais, psicológicos, jurídicos, etc.); para transferências externas (por exemplo, para hospitais, velórios, audiências judiciais); e para participação em oficinas e educação escolar dentro da prisão. A complexidade do trabalho envolvido em uma prisão e a quantidade insuficiente de profissionais em serviço resulta em uma sobrecarga de trabalho para os policiais penais. Isso, por sua vez, causa; fadiga, dor física e distúrbios emocionais e psicológicos entre policiais penais brasileiros. O objetivo deste artigo é compreender a relação entre as dinâmicas do trabalho prisional e a saúde mental dos policiais penais, pensado a precarização, periculosidade e a insalubridade como fatores desenvolvedores de adoecimento mental nos trabalhadores da segurança prisional. Trata-se de um texto que resulta de uma pesquisa pós-doutoral de natureza quali/quanti ampla, desenvolvida em meio aos policiais penais do Estado do Ceará. Utilizamos entrevistas, aplicação de questionário e observação participante como instrumentos para a captura dos dados. O conjunto dos dados analisados nos permite perceber que a natureza estressante e perigosa da função atrelada as difíceis condições de trabalho, a exaustividade dos plantões e a desvalorização social contribuem para o adoecimento psíquico dos policiais penais, impactando em altos índices de afastamento laborais por adoecimento mental, na insatisfação com o trabalho e em efeitos negativos na qualidade de vida desses profissionais. Todo o contexto de adoecimento dos policiais penais cearenses tem relação direta com as alterações na política prisional, pela imposição da autoridade do Estado no controle das dinâmicas cotidianas entre presos, exigindo mais esforço desses profissionais na aplicação de um conjunto de medidas para conter a expansão das facções criminais que avançam nos territórios, principalmente em prisões e periferias, impondo regimes de governança criminal que alteram não apenas as relações que permeiam as interações entre pessoas envolvidas com o crime, mas também entre agentes de Estado e a população em geral.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Gabriel Bandeira Cantu (UFSC)
Resumo: Após o pico da pandemia de covid-19, a Organização Mundial da Saúde voltou a olhar para o adoecimento mental e sinalizar a possibilidade do surgimento de uma nova pandemia, agora na saúde mental (OPAS,2023).Neste cenário, minha pesquisa atual visa entender como se dá a socialização de pessoas autodeclaradas depressivas no Instagram, através de páginas criadas com o intuito de abordar temas relacionados à depressão e promover a interação entre depressivos objetivando uma espécie de ajuda mútua. Escolhi duas páginas públicas, com postagens regulares e mais de cem mil seguidores cada uma para realizar minha pesquisa de campo, às quais me refiro através de siglas, a saber SODEP e SAD, criadas a partir de seus nomes originais, mantendo seu anonimato.
Ao longo do campo, que culminará em minha tese de doutorado, venho observando que mais do que a conversa sobre trivialidades cotidianas, a busca pelas e permanência nas páginas acontece com a necessidade de os sujeitos relatarem extensamente suas experiências depressivas endereçando-as a outrem. Daí vão surgindo amizades, redes de apoio mútuo e troca de informações sobre como lidar com o sofrimento no cotidiano com depressão. Parece-me interessante pensar a construção desta forma de socialização como algo similar àquilo que Foucault (2002) descreve como escrita de si (p.129).
O autor destaca dois tipos de escrita de si que considera essencialmente importantes para, em sua argumentação, distinguir da escrita enquanto combate espiritual apregoado pelo cristianismo, hypomnematas e correspondências. Os primeiros, presentes na Grécia antiga, são livros de registros que continham desde registros contábeis até reflexões pessoais de coisas que o sujeito lia ou ouvia, visando uma conexão dele consigo mesmo. Já as correspondências, práticas de filósofos como Sêneca e Marco Aurélio, visavam desde conselhos endereçados a alguém até um autoexame do cotidiano para que ao deixar-se ver por um terceiro, o sujeito cuidasse constantemente de suas ações para não incorrer em erros prejudiciais a sua constituição subjetiva (FOUCAULT, 2002).
Acredito possível aproximar os relatos das experiências depressivas de meus interlocutores aos dois tipos foucaultianos de escrita de si, tanto por constituírem uma tentativa de entrar em contato consigo mesmo quanto um deixar-se ver reflexivo endereçado a múltiplos alguéns através dos comentários públicos, promovendo um auto cultivo simultâneo entre quem lê e quem escreve (FOUCAULT,2002). SAD e SODEP nos possibilitam aproximar os dois tipos de escrita de si para pensar o universo do sofrimento psíquico nas redes sociais, especificamente no Instagram. Para tanto, noções como bildung e aufhebung (DUARTE,2003) se fazem aliadas para pensar materiais que venho colhendo em campo.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Gabriela Gonçalves de Aguiar (UFRGS)
Resumo: Este trabalho visa discutir a relação de indivíduos não institucionalizados que possuem o diagnóstico de Transtorno Afetivo Bipolar (TAB) com o mercado de trabalho. O TAB é uma condição que está relacionado com altos índices de desemprego, dificuldades financeiras e laborais, maior propensão a estresse interpessoal e instabilidade no emprego. Recentemente tem-se falado mais sobre a relação entre as condições atuais de trabalho e o adoecimento psíquico de trabalhadores, mas como esses trabalhadores percebem e lidam com o trabalho em seu dia a dia, quando já possuem um diagnóstico de transtorno psiquiátrico? A partir da minha própria experiência convivendo com o diagnóstico de TAB há seis anos e trabalhando em empregos formais, bem como dos relatos em grupos de pessoas com TAB da rede social Facebook, pretendo discorrer sobre como o trabalho pode assumir uma dimensão grande e complexa, por vezes pesada, na vida de pessoas com TAB. É através dele que é garantido o seu sustento, e muitas vezes de suas famílias, e também se coloca como condição necessária para a continuidade do tratamento psiquiátrico, custeando as consultas de psiquiatras e psicólogos e, principalmente, a compra dos medicamentos. Em muitos casos é necessário tomar vários medicamentos ao mesmo tempo que não são acessíveis, nem estão disponíveis pelo SUS. É comum que as empresas pressionem por um rendimento, dito "normal", criando ambiente prejudicial à saúde mental, o que atrapalha o tratamento da pessoa com TAB. Ao mesmo tempo, é uma reclamação comum nos grupos do observados a resistência dos médicos em dar atestados que permitam o afastamento do trabalho ou recebimento de auxílio-doença. Tanto a empresa quanto os psiquiatras subestimam o quanto o TAB é incapacitante e, por vezes, querem que a pessoa com TAB se esforce e trabalhe mais do que ela consegue. O medicamento psiquiátrico é a principal via de tratamento, mas este também pode interferir no rendimento no trabalho e em outros âmbitos da vida já que nem sempre o organismo da pessoa se adapta a primeira medicação indicada, sendo necessário testar vários medicamentos e dosagens e manejar seus diversos efeitos colaterais. Assim, a pessoa diagnosticada com TAB tem que navegar entre dois sistemas de controle. Por um lado, submetido ao sistema disciplinar do trabalho, em que pode ser punida por sua condição ao não apresentar a produtividade esperada. Por outro, submetida ao regime biopolítico do poder médico, que pretende o gerenciamento da vida pelos medicamentos. Os dois sistemas tem como prioridade a produtividade do indivíduo para o sistema capitalista, e não o seu bem-estar.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Jamile Guimarães (USP)
Resumo: O tema da saúde mental vem apresentando relevância exponencial entre adolescentes e jovens. Se pudemos observar um recrudescimento de sofrimentos a partir do isolamento social e seus efeitos nos períodos pandêmico e pós-pandêmico, as discussões sobre ansiedade e depressão já se faziam presentes anteriormente. Este trabalho surge do acervo de dados produzidos, entre 2018 e 2023, em pesquisas com adolescentes e jovens. Os sujeitos tinham entre 11 e 23 anos e moravam em duas comunidades periféricas de São Paulo. O objetivo foi compreender como aspectos e condições sociais, culturais e simbólicas configuram experiências de sofrimentos. Os instrumentos metodológicos mobilizados foram observação em espaços de sociabilidades, organizações comunitárias e escolas públicas, conversações etnográficas e entrevistas abertas. O sofrimento social remete a compreensão das relações entre a experiência subjetiva do mal-estar e os processos históricos e sociais mais amplos. Por um lado, violências estruturais vão modulando relações cotidianas, de modo a condicionar arranjos e trocas possíveis entre pares e com os adultos próximos. Se entre os adolescentes prevaleceu narrativas de "falta", vazio e dor na relação com os pais, os jovens, já trabalhadores, ponderavam ascendências de condições de vida e de trabalho nas maneiras de exercer maternidade/paternidade. Outra frente de análise é o binômio julgamento-vergonha nas interações de intimidação e aviltamento entre pares: havia um receio corrente pelo julgamento da aparência, comportamento e ideias. O julgamento foi definido como ação de valor estigmatizante ou de invalidação. Assim como, situações de racismo cotidiano que evocam a opressão e o não-pertencimento como sujeitos em determinados espaços. O racismo aponta à luta contra sentimentos depreciativos imputados, que se enraízam na subjetividade, ao mesmo tempo em que defendem a necessidade de pautar a igualdade. Restam ainda as questões emergentes na transição para a adultez, que interseccionam expectativas normativas para cumprir marcos biográficos, insegurança ontológica e a concepção do projeto de vida. Por outro, a cultura e os saberes psi passam a integrar o universo simbólico de adolescentes e jovens. O valor conferido ao psicólogo e a terapia está intrinsecamente relacionado a ausência de espaços de diálogo educativo e compreensivo na trama intergeracional familiar e escolar. Há um anseio por apoio ao processo de autoconhecimento e para lidar com problemas e relações pessoais. Mobilizar o sofrimento social permite trabalhar a saúde mental a partir do princípio da integralidade do cuidado, tornando-se um importante contraponto aos discursos e programas de intervenção para a adolescência, que tendem a focalizar a saúde sexual e reprodutiva.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
João Paulo Siqueira (UNB)
Resumo: Afinal, o que significa o repetido uso da palavra contexto na formação de psicólogos-psicoterapeutas no Brasil? A partir de inserção etnográfica junto a um grupo de estágio e serviço de psicoterapia racializada para universitários negros, discuto a formação de psicólogos para atenderem demandas raciais na clínica psicológica. O recorte escolhido para este paper foi a discussão dos documentos que regem a formação de psicólogos. Especificamente, me debrucei sobre dois documentos: As Diretrizes Nacionais Curriculares para os cursos de graduação em psicologia (DCN) e o Projeto Pedagógico do curso de Psicologia (PPC) da universidade investigada. As DCNs e o PPC definem, em âmbito nacional e local respectivamente, princípios e compromissos; competências e habilidades gerais; eixos estruturantes; ênfases curriculares e orientações nos âmbitos do ensino, pesquisa e estágio para os cursos de psicologia, sempre prezando por uma aplicação contextualizada dos conhecimentos psicológicos. Nas DCN, um documento em formato de lei contendo seis páginas, a palavra contexto aparece 15 vezes, já no PPC, documento com quase 150 laudas, a frequência do uso da referida palavra também é alta, 78 vezes - mas nem todas com o sentido formativo. Embora a palavra contexto não pareça necessitar de detalhamento em seu significado, o sentido do uso é diferente a depender do referencial teórico utilizado, pois podem ser reduzidas à variáveis ambientais, sem muito aprofundamento, como feito pela psicologia social cognitiva estadunidense, em contraste com as perspectivas críticas em que o contexto sociocultural e suas dinâmicas hierárquicas são o ponto de partida para as análises em termos teóricos, como na decolonialidade ou na aplicação psicoterapêutica das etnopsicologias, etnopsicanálise e etnopsiquiatria ou simplesmente das intervenções psicoterapêuticas atentas à realidade social e comprometida com as demandas do território. De forma comum, todas essas etnopsis apropriam-se de reflexões antropológicas para fundamentar o entendimento de contexto sociocultural enquanto estruturante dos processos de subjetivação e para saúde mental, sendo identificado inclusive, como uma forte justificativa para a inserção da antropologia e de antropólogos na formação em saúde mental, uma vez que situar o sujeito em sua cultura auxilia na probabilidade de eficácia das intervenções. Nesse sentido, defendo que a palavra contexto venha acompanhada do termo ao qual se objetiva frisar, sob o perigo de ser utilizada somente como um totem vazio, que na verdade deixa de citar as violências estruturais da sociedade brasileira, como o racismo, e assim, contribui para o mito da democracia racial, sintomático no país, que apenas potencializa o recrudescimento do racismo.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Lilian Leite Chaves (UFRR)
Resumo: No Brasil, as elaborações acerca da loucura e saúde mental (e outros termos que guardam relação e que ganham proeminência com transformações históricas, epistemológicas e políticas), fazem parte da reflexão antropológica desde as primeiras análises sobre o povo brasileiro e a construção da nação. Na atualidade, os processos migratórios, e os múltiplos deslocamentos que eles engendram, figuram entre os fatores que precisam ser considerados com atenção tendo em vista que o país emergiu como uma rota preferencial para migrantes do sul global no corrente século. O Brasil vem recebendo migrantes de países vizinhos e também de países de outros continentes acometidos por situações de desastre ambiental, crise política e guerras. O recebimento de migrantes possui peculiaridades devido às diferenças regionais, sobretudo quando se trata de regiões afastadas dos grandes centros e que fazem fronteiras com outros países. Este trabalho busca trazer insights sobre como os migrantes, na cidade de Boa Vista-RR, relatam sobre os seus sofrimentos, o quê e quando eles consideram da ordem do psíquico ou de saúde mental, e como a assistência ao migrante, a saúde mental e o acolhimento psíquico aparecem nos discursos oficiais das organizações de acolhida, do Estado e nas últimas Conferências de Saúde Mental, Municipal e Estadual, ocorridas no ano de 2022.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Liliane Cunha de Souza (UFPB)
Resumo: Esse trabalho consiste em uma primeira análise dos dados coletados por mim junto a colaboradoras/es Fulni-ô, especialmente Luiz Carlos Frederico da Silva, estudante Fulni-ô de ciências sociais e Xice Fulni-ô, xamã Fulni-ô e agente indígena de saúde, que estão escrevendo esse resumo comigo. As reflexões apresentadas por nós foram elaboradas, no âmbito de minha pesquisa de pós-doutorado, financiada pela CAPES, sobre as memórias da pandemia de Covid-19, os seus impactos sociais e efeitos longos que persistiram no momento pós-pandêmico, entre indígenas Fulni-ô que vivem na Terra Indígena/TI, situada no município de Águas Belas-PE, bem como nesse município. Essa pesquisa deriva do projeto maior intitulado “Impactos sociais, políticas públicas e estratégias locais de enfrentamento à pandemia de Covid-19: saúde, proteção social e direitos - uma abordagem interdisciplinar a partir das ciências humanas”. Essa pesquisa busca realizar uma etnografia das memórias da pandemia entre pessoas Fulni-ô. A metodologia da pesquisa se deu por meio de trabalho de campo com a realização de observação participante, escrita de diário de campo e realização de diálogos. Utilizei princípios da metodologia participativa (Arribas Lozano, 2015) como: o diálogo simétrico e colaborativo; conexão entre os interesses da pesquisa e os interesses e necessidades dos interlocutores e valorização das reflexões e análises dos interlocutores. A fundamentação teórica desta pesquisa está baseada em trabalhos do campo da antropologia médica (Menéndez, 2003), da saúde indígena (Langdon, 2004: Garnelo, 2022), memória (Jelin, 2002), bem como sobre os estudos das relações interétnicas e processos de territorialização (Oliveira Filho, 1998, 2004; Teófilo da Silva, 2005) e colonialismo (Batalla, 1990). É importante destacarmos a diferença entre os indígenas Fulni-ô “aldeados” e “desaldeados” pelo serviço de saúde, realizado pela SESAI/MS, durante o período da pandemia. Tal categorização trouxe para esses últimos um peso surpreendente, bem como promoveu diversos desdobramentos em relação à garantia do direito deles ao acesso ao serviço de saúde indígena. Esta pesquisa busca ainda descrever e compreender as estratégias locais de enfrentamento da pandemia, dentre elas o papel importante que desempenharam, no contexto pandêmico e pós-pandêmico, o sistema de cura e cuidado Fulni-ô e o ritual do Ouricuri.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Maria Luiza de Freitas de Souza (UFRJ)
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo apresentar e discorrer sobre a construção do tratamento ofertado por comunidades terapêuticas – e direcionado a pessoas que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas – como um problema público. Tais considerações derivam da pesquisa etnográfica realizada durante o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, no Museu Nacional, e que resultou na dissertação intitulada “A disputa do tempo e o tempo da disputa: reflexões etnográficas sobre a trajetória das comunidades terapêuticas e suas inflexões na Reforma Psiquiátrica Brasileira”. Além disso, figuram como reflexões bastante iniciais acerca dos próximos passos a serem trilhados na continuidade de minha formação durante os anos de doutorado. De acordo com as pesquisas desenvolvidas por Rui (2012), o crescimento de metodologias de trabalho direcionadas ao tratamento e à prevenção do uso de drogas tem provocado a intensificação da disputa por espaço político e legitimidade social entre entidades públicas e privadas. Diante desse cenário, busquei investigar as ações de governo (Souza Lima, 2012) em saúde mental, álcool e outras drogas no país a partir das disputas entre terapêuticas cotidianamente (re)formuladas como sendo distintas. De um lado, o paradigma da redução de danos e o atendimento centrado no território – tal como ofertado pelos Centros de Atenção Psicossocial. De outro, o modelo das comunidades terapêuticas baseado na abstenção completa ao uso de quaisquer substâncias, na espiritualidade e na laborterapia. Tendo em vista que as diferenciações entre ambos os modelos não estão dados por princípio e são cotidianamente construídas a partir do trabalho político e epistemológico desempenhado por diversos atores sociais, buscarei refletir como essas têm sido formalizadas em denúncias públicas às supostas violação de direitos humanos ocorridas em tais instituições terapêuticas. Isto é, na produção dessa problemática social em um problema público de dimensão “societal” (Gusfield, 1981) e que, enquanto tal, deve concernir a todos.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Mateus do Amaral Meira (UFPB)
Resumo: Neste trabalho apresento o processo de sofrimento e adoecimento emocional que vivi e vivo como profissional de saúde do SUS, inserido na Atenção Básica (AB). Para tanto, utilizei o conceito de narrativa de Sonia Maluf (2021) e a autoetnografia a partir de Dulce Ferraz (2020) e Fabiene Gama (2020, 2022). Trago brevemente minha formação profissional como psicólogo desde a graduação até os dias atuais, ressaltando os caminhos de aprendizados que me levaram a trabalhar na AB. Depois, contextualizo o processo de implementação dessa política num contexto de privatização e precarização do trabalho e relaciono esses aspectos com a saúde dos/as/es trabalhadores/as da AB. A partir de uma experiência com um dos usuários que acompanhei em alguns atendimentos reflito sobre os sentidos do sofrimento/adoecimento emocional que tenho vivido e os seus desdobramentos. A autoetnografia começa apresentando mais um profissional de saúde que aprendeu a defender e a sonhar com a construção e o fortalecimento do SUS e que desde a graduação buscou e foi guiado por caminhos críticos de formação e de prática. Depois de mais de dez anos de atuação como profissional na AB na cidade do Recife-PE, especificamente trabalhando no Núcleo de Apoio a Saúde da Família - NASF (hoje equipes multiprofissionais na atenção primária à saúde - eMulti), o desgaste, o cansaço e o sofrimento no trabalho começaram a ser maiores do que o gosto, o orgulho e o prazer, ao ponto de produzirem adoecimento com o diagnóstico de burnout. Escrevi esse trabalho autoetnográfico não apenas por um desejo (quase necessidade) de organizar as emoções, mas também, por querer falar com e falar para outros/as/es trabalhadores/as da AB no SUS que passaram ou passam por situações semelhantes, para que a escrita possa ser um veículo da experiência e do sentido (Maluf, 2021), explicitando caminhos que lhes ajudem a perceber e refletir como seu trabalho tem afetado sua saúde mental para, a partir daí, encontrarem estratégias de resistência e superação desse processo. Tomar consciência quando o sofrimento no trabalho se torna adoecimento, por exemplo, é fundamental para buscar ajuda. Além disso, é muito importante pensar a construção de políticas públicas efetivas para esses/as (e outros/as/es) trabalhadores/as no âmbito do SUS. Não falamos aqui de um cuidando do cuidador para fazer de conta que existe, mas, quem sabe, da construção de uma política nacional de promoção da saúde dos trabalhadores do SUS, uma política que parta da compreensão sobre o trabalho em saúde de maneira articulada à formação permanente dos/as/es trabalhadores/as, à organização do trabalho na AB, as relações de gênero e de raça, à ampliação de concursos públicos e à salários e carreiras profissionais dignas.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Maycon Leandro (UFSCAR), Nathália Gonçalves Zaparolli (Secretaria de Educação do Estado de São Paulo)
Resumo: Esta pesquisa visa analisar o sofrimento psicossocial, práticas de cuidados e resistências antimanicomial nas margens urbanas em interface com as estratégias de desinstitucionalização das pessoas egressas dos hospitais psiquiátricos e Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. No Brasil, o modelo manicomial produziu privação de liberdade, estigmatização e controle punitivo, gerando a institucionalização dos sujeitos com experiência à loucura e sua retirada do convívio coletivo. Nesse sentido, o Movimento Nacional Antimanicomial contribui para um cuidado humanizado, lutas emancipatórias, promoção dos Direitos Humanos e questões referentes a psiquiatrização e psicofarmacológicas. Para tanto, o Estado dispõe de ações como o Programa de Volta Para Casa, voltados para a inclusão social nos territórios e inserção pelo trabalho, educação, arte-cultura, militância e da ocupação urbana, configurando-se em possibilidades subjetivas e construção de sociedades plurais e democráticas (Amarante; Torre, 2018; Andrade, 2020). Todavia, tais conquistas da reforma psiquiátrica brasileira, se veem ameaçadas desde 2016, engendradas em um movimento de contrarreforma, desmonte das políticas públicas, acirradas pela pandemia de Covid-19. As novas orientações traduzem em atender os interesses neoliberais e neoconservadores, como a disputa pelo fundo público pelas Organizações Sociais de Saúde, sucateamento do SUS, financeirização e ascensão das Comunidades Terapêuticas. Nesta seara, realizamos um estudo etnográfico e composto por tais procedimentos: i) etnografia desenvolvida nos Serviços Residenciais Terapêuticos e Centros de Atenção Psicossocial nos municípios de São Paulo-SP e Campinas-SP; ii) compilação de materiais secundários como os marcos legislativos e gestão organizacional dos serviços; iii) entrevistas semiestruturadas com os profissionais de saúde. Os dados foram sistematizados por meio da Análise de Conteúdo (Bardin, 2016), dando ênfase em discursos que articulem as subjetividades, práticas e saberes e sintetizado em eixos norteadores: práticas de cuidado e cidadania; conflitos a judicialização da saúde; desdobramentos do neoliberalismo que acentuam a precarização do trabalho e assistência à saúde mental e desafios para o processo de desinstitucionalização por meio de itinerários nas cidades, que (re)produzem subjetivação e vulnerabilidades. Conclui-se, para os nossos interlocutores embora haja um certo consenso dos avanços da reforma psiquiátrica em promover mudanças das instituições psiquiátrica e política-institucional, sustentar ações antimanicomiais exigem resistências, um cuidado como uma micropolítica e enfrentamento ao racismo, LGBTfobia e gramáticas morais que aniquilam os corpos, sobretudo, das pessoas que fazem uso abusivo de álcool e drogas.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Milenna Jordana de Sousa Andrade (UFCG)
Resumo: Este trabalho traz uma reflexão acerca do sofrimento de mulheres em experiências de adoecimento mental no interior Paraibano. Tem-se como objetivo compreender o contexto social da realidade de mulheres que convivem com o adoecimento e quais as redes que são adicionadas pelo sujeito em condição de sofrimento e busca por escuta. Este trabalho faz parte de uma pesquisa de doutoramento a partir de uma etnografia realizada em um Centro de Atenção Psicossocial CAPS em um município no interior da Paraíba. O trabalho de campo foi realizado durante oito meses com visitas regulares e conversas informais. Este artigo propõe refletir a experiência de adoecimento a partir da narrativa de uma mulher experiente residente da cidade de Sumé -PB, com o intuito de compreender quais estratégias são acionadas em seus momentos de aflição. A narrativa expõe uma experiência de sofrimento e as redes de apoio social que são adicionadas por ela, seja no serviço de saúde, seja em seu cotidiano familiar e social, enfatizando situações relacionais de andanças entre serviços de saúde mental, desde hospitais psiquiátricos à serviços de saúde mental, em especial, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em diferentes estados e cidades. As discussões propostas aqui, estão em diálogo com referências teóricas do campo da Antropologia da Saúde, e considerando que o exercício de escrita através da trajetória de uma única pessoa, inspirada em Biehl (2008), que retrata a potencialidade de etnografar a experiência de uma pessoa, capaz de relacionar aspectos macros de sofrimento em sociedade que foram sendo corporificadas e construídas de forma singular por meio da narrativa de uma mulher caririzeira.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Nathalia Mazolli Veiga (UERJ)
Resumo: Atuando como Mestranda de Ciências Sociais e Saúde Coletiva, desejo investigar a medicalização da educação a partir dos laudos médicos que se fazem presentes nas escolas municipais da educação infantil no Rio de Janeiro. O ponto de partida desta investigação se deu em minha atuação profissional, num CAPSi (Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil), intrigada e em conflito com a larga demanda das escolas por laudos médicos para que as crianças pudessem frequentar as atividades escolares. Questionava os impactos de uma médica branca poder afirmar em poucas linhas que arriscavam dizer a história clínica daquelas crianças que se davam sobre contextos complexos e marcados por injustiças sociais. O descarte de velhas interrogações e a formulação de novas, com o auxílio precioso das direções partilhadas pelo meu orientador, consigo trazer com a devida centralidade a questão do racismo em minha pesquisa, traçando como objetivo específico investigar a presença dos marcadores de raça nos laudos e no percurso das crianças laudadas em território escolar.
Delimitando como campo desta pesquisa o diálogo intersetorial entre saúde mental e educação infantil e definindo como elemento central de meu objeto de pesquisa os laudos médicos presentes nas escolas, trago no texto a categoria crianças laudadas utilizada, para dizer das crianças que já apresentam laudos ou, ainda, para indicar a necessidade deles em contexto escolar. As infinitas camadas de questionamentos que essa categoria analítica aqui desenvolvida é a mola propulsora de minha pesquisa.
Ao interrogarmos sobre as categorias raça presentes nos laudos médicos que adentram as escolas a partir de suas demandas, faz-se necessário operacionalizá-las na performance de tais documentos, que virá a ser objeto de minha pesquisa. Considerar que esta performance é atravessada pelas hierarquias existentes entre esses papéis e as pessoas envolvidas em sua magnitude me parece parte da principal hipótese que é a de que tais laudos contribuem para a medicalização da educação. Assim, encaminho-me para buscar compreender como esses laudos operam os regimes de visibilidade dessas hierarquias, produzindo determinações e agências no contexto investigado e que podem apontar práticas emancipatórias como formas de resistência.
Este breve ensaio que desejo apresentar a principal hipótese envolvida nesta pesquisa, argumentada a partir do Dispositivo de Racialidade de Sueli Carneiro, que é a de que os diferentes conceitos e fenômenos abordados por este dispositivo podem estar articulados à confecção e performance dos laudos médicos que circulam em chão escolar impactando, como também pretendo argumentar, na rearticulação da vida e da morte das crianças laudadas nas escolas.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Sônia Weidner Maluf (UFSC)
Resumo: O objetivo deste artigo é analisar as políticas globais de saúde mental em contexto de hegemonia neoliberal. A proposta parte da constatação de que a forma específica das subjetivações neoliberais, discutidas por Foucault em O nascimento da biopolítica, remete a formas específicas de produzir e lidar com o sofrimento e as aflições. Ao contrário da concepção liberal, em que o sofrimento deve ser eliminado ou contido, porque retira o sujeito do processo produtivo, no neoliberalismo o sofrimento é economicamente produtivo, conforme nos aponta Saflate (2021). Entre outros documentos, será relevante o documento World Mental Health Report, da OMS, publicado em 2022 e considerado a maior revisão sobre saúde mental global publicada nas últimas décadas. Como constatamos em outras análises de políticas de saúde mental, há uma dinâmica de abordagem do sofrimento a partir da série individualizada do sintoma-diagnóstico-tratamento, mesmo quando determinados problemas de saúde mental são considerados em sua dimensão social. Nossa pergunta de fundo, na perspectiva da abordagem antropológica da saúde, é sobre como uma experiência social de sofrimento é produzida como problema psicológico, psiquiátrico ou biomédico em geral e o quanto essa matriz de apreensão do sujeito responde a uma razão neoliberal.
FOUCAULT. Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo, Martins Fontes, 2008.
SAFATLE, Vladimir. Introdução. In: Safatle, V. Silva Jr, N.; Dunker, C. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico., Belo Horizonte: Autêntica, 2021, 9-13
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Stephanie da Motta Virginio (UFSM)
Resumo: O presente trabalho consiste em um substrato da pesquisa em curso, desenvolvida para a dissertação de mestrado no PPGCS/UFSM. A pesquisa busca compreender a noção de pessoa face aos processos de subjetivação que se apresentam experienciados através de grupos terapêuticos nos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), em Santa Maria/RS. Esses grupos adotam a estratégia da Gestão Autônoma da Medicação (GAM), no contexto do tratamento farmacológico em saúde mental. A investigação se concentra na interação entre a construção da pessoa e as práticas terapêuticas orientadas pela GAM nos CAPS. Este ponto de partida cria condições para uma reflexão acerca do estatuto da pessoa como categoria analítica do sujeito no campo antropológico, assim como possibilita uma provocação para o alargamento da noção, ao engendrar a categoria analítica do sujeito com formas singulares de subjetivação. Mediante análise crítica acerca das configurações de pessoa e no modo como se apresentam os processos de produção de subjetividade experienciados, a prática do desenho de mapas afetivos emerge no contexto da pesquisa de campo. Por meio da experimentação artística, a pesquisa etnográfica é composta enquanto textualidade implicada em arte, assim, representa uma abordagem viável para acessar variadas dimensões da criatividade, oferecendo um potencial significativo para a reflexão acerca de itinerários vividos, estratégias cotidianas, rituais, percepções terapêuticas ligadas às diferenças no modo de experiência no mundo. A tarefa torna-se, então, explorar as modalidades de relação consigo, com o outro e as diferentes formas de experimentar e perceber a produção desses processos, delineados para além do modelo de sujeito individualizado que se normatizou como universal.
Palavras-chave: Etnografia. Noção de pessoa. Mapas afetivos. Gestão Autônoma da Medicação.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Thamiris Dias Arraes (faci wyden)
Resumo: No Pará, contrariando a direção da reforma psiquiátrica, cuja formalização ocorreu
com a aprovação da Lei nº 10.216/2001, foi implementado em 2007 o Hospital de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico, atualmente conhecido como Hospital Geral Penitenciário (HGP). Com
foco especial no HGP e nas residências terapêuticas, os objetivos do presente trabalho são
compreender o processo de (des)institucionalização e refletir sobre os conceitos de crime, loucura
e identidade ao longo das experiências carcerárias de pessoas com transtornos mentais em
conflito com a lei. Após duas décadas da aprovação da lei da reforma psiquiátrica, foi instituída
a Política Antimanicomial do Poder Judiciário por meio da Resolução nº 487/2023 do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), que determina o fechamento dos manicômios judiciários em até 12
meses a partir da entrada em vigor dessa Resolução (Art. 18). A partir dessas reflexões e desses
encaminhamentos, apresento uma experiência metodológica que me permitiu a imersão no
campo por meio da etnografia de documentos, fotoetnografia e observação participante. No sentir
afetada pelas vicissitudes do contato com as pessoas, os aparelhos e os dispositivos que compõem
o sistema penitenciário, busco entender essa realidade ainda em construção.