Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 023: Antropologia e saúde mental: sofrimento social e (micro)políticas emancipatórias
Sofrimento e socialização em contexto pós-pandêmico: A escrita de si como mecanismo de compartilhamento de vivências depressivas.
Após o pico da pandemia de covid-19, a Organização Mundial da Saúde voltou a olhar para o adoecimento mental e sinalizar a possibilidade do surgimento de uma nova pandemia, agora na saúde mental (OPAS,2023).Neste cenário, minha pesquisa atual visa entender como se dá a socialização de pessoas autodeclaradas depressivas no Instagram, através de páginas criadas com o intuito de abordar temas relacionados à depressão e promover a interação entre depressivos objetivando uma espécie de ajuda mútua. Escolhi duas páginas públicas, com postagens regulares e mais de cem mil seguidores cada uma para realizar minha pesquisa de campo, às quais me refiro através de siglas, a saber SODEP e SAD, criadas a partir de seus nomes originais, mantendo seu anonimato.
Ao longo do campo, que culminará em minha tese de doutorado, venho observando que mais do que a conversa sobre trivialidades cotidianas, a busca pelas e permanência nas páginas acontece com a necessidade de os sujeitos relatarem extensamente suas experiências depressivas endereçando-as a outrem. Daí vão surgindo amizades, redes de apoio mútuo e troca de informações sobre como lidar com o sofrimento no cotidiano com depressão. Parece-me interessante pensar a construção desta forma de socialização como algo similar àquilo que Foucault (2002) descreve como escrita de si (p.129).
O autor destaca dois tipos de escrita de si que considera essencialmente importantes para, em sua argumentação, distinguir da escrita enquanto combate espiritual apregoado pelo cristianismo, hypomnematas e correspondências. Os primeiros, presentes na Grécia antiga, são livros de registros que continham desde registros contábeis até reflexões pessoais de coisas que o sujeito lia ou ouvia, visando uma conexão dele consigo mesmo. Já as correspondências, práticas de filósofos como Sêneca e Marco Aurélio, visavam desde conselhos endereçados a alguém até um autoexame do cotidiano para que ao deixar-se ver por um terceiro, o sujeito cuidasse constantemente de suas ações para não incorrer em erros prejudiciais a sua constituição subjetiva (FOUCAULT, 2002).
Acredito possível aproximar os relatos das experiências depressivas de meus interlocutores aos dois tipos foucaultianos de escrita de si, tanto por constituírem uma tentativa de entrar em contato consigo mesmo quanto um deixar-se ver reflexivo endereçado a múltiplos alguéns através dos comentários públicos, promovendo um auto cultivo simultâneo entre quem lê e quem escreve (FOUCAULT,2002). SAD e SODEP nos possibilitam aproximar os dois tipos de escrita de si para pensar o universo do sofrimento psíquico nas redes sociais, especificamente no Instagram. Para tanto, noções como bildung e aufhebung (DUARTE,2003) se fazem aliadas para pensar materiais que venho colhendo em campo.