Grupos de Trabalho (GT)
GT 044: Dialéticas da plantations e da contraplantation: expropriação, recusa e fuga
Coordenação
Martina Ahlert (UFMA), Marcelo Moura Mello (UFBA)
Debatedor(a)
Stella Zagatto Paterniani (UNICAMP), Gustavo Belisário d'Araújo Couto (UFPB), Antonádia Monteiro Borges (UFRRJ)
Resumo:
Em uma era de profundas mudanças ecológicas e climáticas, a reflexão crítica sobre a exploração desmesurada de recursos parece bem assentada, como ilustrado pela difusão do conceito de Antropoceno. Apesar dos consensos quanto aos inegáveis impactos da atividade humana no planeta, restam dúvidas quanto à rentabilidade desse conceito, sobretudo ao se levar em conta que o colonialismo, o racismo, a desumanização e a plantation fundamentam modos destrutivos e altericídas de habitar a Terra. Este GT pretende compreender simultaneamente a centralidade da plantation nos processos de expropriação e os modos de recusa, criação e fuga que podemos definir como contraplantation. Buscamos reunir pesquisas de cunho antropológico e histórico que trabalhem com a plantation como conceito e categoria explicativa do capitalismo. Entendendo como elemento fundamental da plantation os processos de racialização, expropriação, esvaziamento do outro, aniquilação da diferença, escravização e animalização, convidamos trabalhos etnográficos com o intuito de superar divisões estanques entre contextos diversos - “africanos”, “indígenas”, “afro-americanos”, “tradicionais” etc. - que explorem os jogos de escalas e os esforços criativos para se desembaraçar do enredamento da plantation em mundos hierarquizados habitados por humanos, animais, plantas, fungos, tecnologias, espíritos e ancestrais.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Aline Maia Nascimento (MUSEU NACIONAL)
Resumo: Como explicar a presença da voz, do cheiro ou do vulto de um espírito? O que é a experiência de ver e abraçar um espírito ou conversar com ele? Ao longo do trabalho de campo, as mães de vítimas de violência letal relataram inúmeros momentos em que foram visitadas por seus filhos mortos. O motivo da visita era variado, abarcando desde avisos ao oferecimento de força e/ou carinho. Neste trabalho utilizo dados extraídos da minha pesquisa de campo de doutorado. A maior parte das situações que apresento são eventos que ocorreram entre 2018 e 2021, em favelas da região metropolitana do Rio de Janeiro. Neste artigo discuto os modos de existir dos mortos/espíritos, imersos na esfera mundana, e suas formas de participações na vida das mães. Interessa-me apresentar como suas características/atributos permitem antever os desdobramentos de suas ações. Sem deixar de analisar momentos em que suas aparições se configuraram como inesperadas e transgressivas, tensionando não só os modos de existir no Plantationceno, como também aquilo que por vezes é entendido na literatura como mundo dos vivos e mundo dos mortos, passado e presente, real e ilusório.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Aline Yuri Hasegawa (UNICAMP), Rafael Dias (UNICAMP), Lucas César Rodrigues da Silva (UNICAMP), James Turpin (Flor da Aroeira)
Resumo: Existe um grupo de capoeira, samba e tambor de crioula que performa há mais de quinze anos na cidade de São Paulo. Eles realizam grande parte de suas atividades na zona oeste da cidade de São Paulo, com capilarizações no Centro. O Tambor da Hora Grande é realizado há 13 anos, pelo mesmo grupo, todos os anos, na sexta-feira de carnaval, após a passagem do Bloco Ilu Oba de Min pelo Largo do Paysandu. O mestre e seus discípulos já realizaram atividades em muitas instituições de arte, cultura e educação do Brasil e do mundo levando a cultura da capuera, do samba e do tambor como forma de mediação e acolhimento. O fogo, a cachaça, São Benedito, tambores, pungas, chamados, convocações, evocações, provocações e transe são elementos presentes nas rodas do grupo, que imprimem ao cotidiano da cidade, maior centro urbano da América Latina, temporalidades e fruições diversas. O desafio do grupo muda de escala quando se considera sua inserção em instituições de arte e cultura que trabalham profissionalizando o campo, burocratizando contratações, trazendo dispositivos legais e constrangimentos outros que versam sobre as práticas tradicionais do grupo que, ao se adequar, cria e recria a partir das recusas e interditos. O que aponta uma aniquilação da diferença a própria plantation no cenário artístico e cultural também é a apropriação, pelas saídas criativas e insurgentes do grupo, do próprio enredo, este que também sobrevem de territórios distantes, que transplantam na cidade de São Paulo as recusas ao esvaziamento e à vida animalizada.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Ana Paula Comin de Carvalho (UFRB)
Resumo: Tendo por base minhas experiências de pesquisa com comunidades quilombolas no Recôncavo da Bahia desde 2010 e de orientação de dissertações de mestrado e teses de doutorado em Ciências Sociais e Antropologia a partir de 2013 - que privilegiaram em suas abordagens os conflitos territoriais vivenciados por algumas delas compartilho uma série de inquietações e ideias. Elas surgem em decorrência da interlocução estabelecida com membros destas coletividades e com colegas de campo, mas também a partir das leituras por mim realizadas que perpassam os debates do feminismo negro, das cosmovisões afro-brasileira e ameríndia, das etnografias do capitalismo, da decolonialidade e do plantationoceno. Não tenho a pretensão de fornecer respostas definitivas a (o) leitora (o) sobre o assunto, mas de empregar em caráter experimental categorias e conceitos e esboçar de modo preliminar possibilidades de análise e compreensão dos processos sociais em foco. As contendas entre quilombolas, fazendeiros, instâncias estatais e empresas existentes neste contexto parecem à primeira vista ser motivadas pelo acesso e controle de espaços e recursos naturais. Outrossim, os danos e prejuízos decorrentes delas estão inequivocamente atrelados as múltiplas expressões do racismo, em especial o institucional e ambiental (CARVALHO, 2019). Contudo, como tentarei demonstrar, esta é a camada mais externa e reconhecível de tais fenômenos. Existem outras mais profundas e turvas nas quais creio que nossa capacidade interpretativa precisa se aventurar a fim de desvelar batalhas cosmológicas (SAHLINS, 1992) e possibilidades de construções de refúgios para a vida em meio as ruínas do capitalismo (TSING, 2022) .
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Carlos Gomes de Castro (UFRJ)
Resumo: A plantation colonial, capitalista e socialista deixou cicatrizes nos territórios e nas pessoas dos bateyes açucareiros cubanos. Não é incomum vislumbrar chaminés-obeliscos sem sinais de fumaça, fincadas em paisagens que misturam tempos e experiências: restos de "barracões", cana-de-açúcar, casas de arquitetura americana, ferragens do socialismo soviético, plástico, placas de cimento, zinco, poeira. A proposta deste paper é entrar em algumas das fissuras desse mundo-de-açúcar, fantasmático e imerso numa dinâmica de corrosão. As pessoas habitam e convivem nesse mundo, do qual precisam "escapar" para "fazer a vida". O objetivo é descrever etnograficamente como os moradores dos bateyes (comunidades açucareiras, numa tradução precária) constituem-se como sujeitos "escapados" e inventam formas de "escapar" e transmutar um presente "parado" em um futuro "em movimento". Um dos elementos dessa descrição se concretiza nos modos pelos quais as pessoas lidam com detritos sociais, políticos e materiais, que, por um lado, conformam seus corpos e ações e, por outro, oferecem matérias e relações para produzir e consumir em meio à "necessidade", bem como para zombar de modelos de governo. A análise dessa dinâmica pode ser um meio de revelar a existência de engajamentos que traduzem complexos regimes de convivialidade entre parceiros, coisas e histórias na Cuba pós-soviética.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Clara Roman Pinto da Fonseca (USP)
Resumo: Minha pesquisa propõe uma análise do conflito ontológico ensejado pela chegada das empresas que atuam no mercado de carbono voluntário na região de Altamira, em especial na Terra Indígena Apyterewa, território do povo Parakanã. No estágio atual, tenho me apoiado nas nas etnografias existentes sobre este povo e nas referências teóricas que analisam criticamente as estruturas do capitalismo tardio.
Na COP de 2021, resoluções sobre o REDD+ (créditos de carbono gerados por desmatamento evitado) aqueceram este mercado. Nesse contexto, traders do carbono passaram a buscar lideranças e associações de povos e comunidades tradicionais na tentativa de fechar contratos em territórios onde a floresta está preservada. Desse movimento, surgiram "iniciativas promissoras, mas também um surto de contratos abusivos e desprovidos de projetos, num contexto de baixíssima informação qualificada sobre o tema e com enormes lacunas de regulamentação oficial (VILLAS-BÔAS, ROJAS, JUNQUEIRA. 2023:10).
Essa aproximação aconteceu também com o povo Parakanã. Por muito tempo, os Parakanã-Apyterewa, segundo Fausto, adotaram uma trajetória seminômade, em longas jornadas pela floresta os trekkings (Fausto, 2001). Jornadas que não se relacionavam com a impossibilidade de fixar-se, mas com a possibilidade de se mover. Para este povo, a floresta é sinônimo de provimento seletivo de vida. Fausto também aponta os Parakanã Ocidentais da Terra Indígena Apyterewa desenvolveram uma trajetória centrífuga, com estruturas políticas mais descentralizadas e a abertura ao exterior. Nesse sentido, ele fala da predação familiarizante, que relaciona-se, na guerra, ao ato de conter o inimigo em si. Em sentido oposto, o mercado de carbono é um empreendimento repleto de escalabilidade, no conceito de Anna Tsing: a capacidade de um projeto de alterar escalas suavemente, sem qualquer mudança em sua abordagem. É, portanto, um esforço em mensurar e precificar a floresta como uma composição de carbono, de uma forma que tal medida se torne universal e escalável.
A pergunta que me move, portanto é como tal empreendimento caberá em um local e em um modo de vida que tem a floresta como um território de experiências e de diversidade? Para responder a essa pergunta, busco bibliografias que discutam a ideia de conflito ontológico (Blaser, 2009, Almeida, 2013, Cadena 2018). Qual será a trajetória do encontro desses duas formas de fazer mundos? Citando Blaser, "às vezes, elas podem coexistir - possibilitando-se mutuamente, ou sem se darem conta uns dos outors - mas, em outras ocasiões, elas se interrompem mutuamente".
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Cristilene Tarcila dos Santos (UEFS)
Resumo: Enquadrando-se em uma análise de planejamento territorial, na interface entre sociedade e natureza, envolvendo a população indígena Truká de Pernambuco, suas relações com seus quintais agroflorestais produtivos, percepções e usos do território, segurança e soberania alimentar.
Com os debates acerca da agrobiodiversidade se ampliando cada vez mais, principalmente no que diz respeito à contribuição dos aspectos culturais das comunidades tradicionais (SANTILLI, 2009). No entanto, a excessiva concentração econômica estabelecida pelos grupos agroindustriais vem transformando as populações tradicionais dependentes do fornecimento de produtos e alimentos industrializados (PLOEG, 2009). O que nesse processo de globalização e padronização agrícola, diversas variedades de plantas melhoradas por meio das práticas tradicionais estão sendo progressivamente substituídas e abandonadas por cultivares comercializados e desenvolvidos pelos grandes setores empresariais.
O objetivo da pesquisa é uma compreensão de como os quintais dos Truká, mantém e desenvolvem variedades de espécies e modos de manejos tradicionais, que compõem o ecossistema agrícola, decorre de práticas que beneficiam a agrobiodiversidade, que pode ser definida como uma parcela da biodiversidade empregada na agricultura familiar. O principal ponto é demonstrar como os quintais agroflorestais dos indígenas Truká podem contribuir para uma maior agrobiodiversidade e recuperação da degradação ambiental.
Trazendo registros etnográficos, em colaboração com a comunidade Truká, para descrever, compreender e relatar suas experiências e percepções sobre o que é território e suas relações com os quintais agroflorestais, compreendendo as possíveis alterações sofridas com os impactos ocasionados pela entrada de não indígenas no território. Buscando entender e caracterizar a cultura através do ponto de vista da própria comunidade (SPRADLEY, 1979), registrando-se o cotidiano, acesso às memórias, observações e conhecimento empírico dos moradores em suas atividades relacionadas com o cultivo e manejo agrícolas, e práticas ritualísticas para a lida com o solo.
Outra metodologia que será utilizada nesta pesquisa foi proposta e executada pela psicóloga negra e teórica interdisciplinar, Grada Kilomba (2008), no livro Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano (KILOMBA, 2008). Seguindo o exemplo de Kilomba, compartilhando relatos subjetivos da minha própria experiência, afetos e vivências como mulher indígena truká. A qual, nas palavras da autora, para uma epistemologia que inclua o pessoal e o subjetivo como parte do discurso acadêmico, pois todas/os nós falamos de um tempo e lugar específicos, de uma história e uma realidade específica - não há discursos neutros(2019: 58).
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Gabriel Holliver Souza Costa (UFRJ)
Resumo: Nesta comunicação, com base na experiência de antigos trabalhadores da plantation de algodão (Gossypium hirsutum L. Marie galante.) no semiárido paraibano, pretendo descrever como operava o referido sistema agrícola que até o início da década de 1980 vigorava como a principal atividade produtiva nesta região. Na medida em que se estabelecia, a monocultura desmantelava as relações sociais nativas então existentes, articulando paralelamente processos de dominação humana por meio de diversos modos de violência difusa que terminavam por imobilizar a mão de obra e exploração da natureza com a devastação da vida social mais que humana do bioma. Movimento que culminou no que hoje se reconhece como zonas em avançado estado de desertificação. Contudo, este mundo também veio se desmantelar, quando a súbita aparição do bicudo (Anthonomus grandis), um inseto até então nunca visto nesta região, terminou por impossibilitar a continuidade do cultivo do chamado ouro-branco em larga escala. Apesar deste movimento de simplificação da paisagem (que ainda segue em curso após o fim das monoculturas de algodão), nos pequenos plantios de subsistência, onde se cultivam as chamadas sementes da paixão, verifica-se a existência de refúgios bioculturais. Prática esta que se manteve a despeito dos constrangimentos exercidos pela plantation e permanece no presente como uma espécie de manifestação plena da vida para alguns agricultores familiares. Argumento que neste vínculo, articulados em em sintonia com o pulsar do ritmo das chuvas no inverno, humanos e vegetais, estabelecem por gerações, relações de cuidado em mútuo cultivo. Em minha reflexão, considerando o atual estado desmantelado do tempo e do mundo neste território, estabeleço um confronto entre dois modos de se relacionar com o mundo mais que humano, buscando explicitar os efeitos não intencionais provocados respectivamente por essas práticas.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Glória Maria Batista de Andrade (UFPE)
Resumo: O presente trabalho pretende refletir sobre as relações, tensões e interseções presentes no território da Vila Saué, na qual agentes sociais como o Estado, os latifundiários, se relacionam sócio-historicamente com a comunidade que é formada por familiares e ex-funcionários, entre operários e cortadores de cana-de-açúcar, da Usina Santo André, animais e paisagens da Vila Saué na Zona da Mata Sul de Pernambuco.
A Vila Saué está localizada no município de Tamandaré, que possui cerca de 20.715 habitantes. O município data de 28 de setembro de 1995, mas, sua ocupação é secular, anteriormente habitado pelo povo Kaeté, este território foi passado como posse ainda no século XVI para o coronel João Pais Barreto IV e, mais tarde, enquanto município sofreu a construção da Usina Santo André para a produção de açúcar e álcool fomentando a economia sucroalcooleira.
Durante o ciclo do açúcar, entre os séculos XVI e XVIII, Pernambuco foi o maior exportador de açúcar no mundo, com cerca de 100 usinas. É como parte desse contexto que a Usina Santo André foi construída, sua fundação data de 1913 e sua moagem correspondia a cerca de 150 toneladas de cana que produzia aproximadamente 2.500 litros de álcool em 22 horas (Gaspar, 2009) e, como não havia linha férrea, existia uma dependência latifundiária e esse transporte era realizado por animais humanos e não-humanos. Apesar das diferentes denominações políticas do Estado (Santos, 2015), os constantes etnocídios e explorações de recursos naturais em favor de promessas de desenvolvimento econômico aconteceram e continuam acontecendo através do colonialismo e exploração multiespécie.
É nesse contexto socioeconômico de exploração e domínio colonial que animais, humanos e não-humanos, plantas e paisagens são tomados como mão-de-obra suscetíveis a uma necropolítica da vida contemporânea (Mbembe, 2011), o que interfere em seus modos de reprodução da vida e devastação da vegetação nativa, que admitimos como parte da infraestrutura moderna do Plantationceno (Tsing, 2015), e seus efeitos estão presentes em situações sócio-políticas, econômicas e ecológicas atuais, como a luta pelos seus territórios, a precarização da educação, a intensificação dos processos migratórios, os desastres ambientais, que, mais recentemente, através de enchentes têm assolado a população da comunidade Vila Saué.
A partir disso, é que se pretende nesta apresentação compartilhar dados preliminares de minha pesquisa etnográfica, registrando os impactos de um modelo agrário de desenvolvimento, como também destacar o que entende as pessoas da comunidade Vila Saué sobre a mais nova promessa de desenvolvimento econômico e social através da reativação da Usina Santo André e as mudanças que pode implicar em suas vidas e na paisagem de seus territórios.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Gustavo Belisário d'Araújo Couto (UFPB)
Resumo: Em nossos estudos, somos ensinados a respeitar as cercas disciplinares que separam o amontoado de pormenores que pesquisamos em domínios muito bem estabelecidos. É dessa divisão domesticada dos objetos de estudo que potentes diálogos entre estudos urbanos e a biologia, por exemplo, raramente são feitos. Parte-se de uma ideia de cidade erguida no empilhamento de substâncias inorgânicas - concreto armado, cimento, estruturas de aço e algumas substâncias orgânicas há muito ausentes de vida asfalto, alvenaria, hidrocarbonetos de forma geral. Esquece-se que as cidades são empreendimentos, por assim dizer, multiespécie. Esquecem-se também dos ossos e carnes de corpos negros concretados nas construções.
Neste estudo, fazemos usos de alguns conceitos que vem sendo trabalhados por estudos antropológicos inspirados na biologia para mirar a política habitacional brasileira sob outros prismas. Será feita uma análise mais aprofundada do que chamamos anteriormente de família-plantation (BELISÁRIO, 2023) e da intenção de inscrever territorialmente nos desenhos das cidades monoculturas unifamiliares restringindo o conceito de família ao de reprodução biológica de recursos humanos. Como veremos, há intenções na concepção dessas políticas de normatização do gênero e da sexualidade para não contaminar a lavoura com a promiscuidade e a ausência de família.
Com isso, pretendemos seguir o exemplo de tantas outras estudiosas e pular outra cerca: a que separa os debates afeitos ao Antropoceno das questões raciais e de gênero. Buscando uma ecologia queer decolonial, pretendemos ecoar as irrupções que corpos rebeldes e não domesticados experimentam tecendo outros mundos não prescritos por urbanistas ou biólogos.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Iby Montenegro de Silva (PUC-RIO), João Novello Whately (PUC-RIO)
Resumo: A Mata Atlântica é comumente descrita como um dos biomas mais ricos em diversidade de vida do mundo, o que atesta sua complexidade em termos de relações interespécies. Contudo, passados séculos de exploração de seus ambientes por atividades coloniais e industriais, o bioma como um todo encontra-se reduzido a 12,4% de sua cobertura original. O alcance dessa devastação se reflete na extinção de espécies e no desaparecimento de interações necessárias para a conservação de seus ecossistemas fazendo com que os diferentes esforços de restauração ecológica empreendidos ao longo do tempo representem experiências complexas de re-criação, cuja investigação nos leva a observar a articulação entre muitos atores. Nesse sentido, nosso trabalho tem por objetivo analisar diferentes projetos de restauração de florestas de Mata Atlântica empreendidos em paisagens anteriormente arruinadas por plantations em duas localidades do estado do Rio de Janeiro, buscando evidenciar o envolvimento de atores humanos e não-humanos nos esforços de regeneração dessas florestas.
No presente, os debates em torno do Antropoceno nos convocam a prestar atenção às perturbações ecológicas e climáticas decorrentes de atividades humanas, observáveis em praticamente todas as paisagens que recobrem a Terra. Nesse sentido, ao tomarmos a Mata Atlântica do Rio de Janeiro como ponto de referência, torna-se indispensável olharmos para as heranças coloniais, para as marcas das antigas plantations nas paisagens atuais e para as ruínas desse modelo pautado na exploração simultânea de ambientes, de seres e de pessoas. A partir de uma abordagem histórica e etnográfica, pretendemos discutir os legados das plantations nas atuais paisagens de Mata Atlântica do Rio de Janeiro, bem como refletir sobre projetos de restauração ecológica em Cachoeiras de Macacu e na cidade do Rio de Janeiro.Nas diferentes iniciativas analisadas, as experiências de restauração ecológica envolvem não apenas intencionalidades humanas, mas também as atividades de muitos seres sejam estes pioneiros, ferais ou reintroduzidos. Assim, é de nosso interesse discutir em que medida esforços humanos de restauração, acompanhados por dinâmicas mais-que-humanas, tornam possível uma experiência de contra-plantantion. Desse modo, pretende-se não apenas caracterizar o envolvimento desses outros seres nos projetos de restauração de florestas, como também discutir em que medida e escala tais projetos possibilitam a existência de assembleias multiespécies que permitam romper com a homogeneização e hierarquização imposta às paisagens pelas plantations, de modo a produzir refúgios de habitabilidade em meio aos terrores ambientais representados pelo Antropoceno/Plantationceno.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Jheniffer Caroline Oliveira Souza (UNIMONTES)
Resumo: Essa apresentação explora a migração como forma de resistência adotada pelos fellahin cabilas para enfrentar os impactos do colonialismo francês, durante a primeira metade do século XX. Em particular, ela debate como a migração de jovens fellahin homens, em busca de recursos econômicos, para a metrópole tornou-se uma estratégia para a manutenção coletiva da posse das terras, bem como a preservação das douars. Trata-se de uma migração temporária que surge enquanto resposta à expansão das plantations coloniais de uva, nas terras férteis argelinas, e que foram intensificadas na década de 1880 devido à crise da filoxera nos vinhedos franceses (Sayad, 2000; White, 2011). Através de fontes documentais, como mapas, será apresentado como essas plantations reorganizaram o universo rural argelino, além de alterar a produção agrícola nativa e sua dieta, levando à generalização dos contextos de fome. A metodologia deste estudo se baseia na consulta e análise de documentos armazenados em arquivos franceses, incluindo Gallica, Archives Nationales de France; Musée de lhistoire de limmigration; e Institut du Monde Arabe. Ademais, pauta-se em uma revisão literária, focada nas particularidades históricas do contexto. A colonização francesa, especialmente entre 1830 e 1900, teve um caráter fundiário, através da imposição do Sénatus-Consulte (1863) e da Lei Warnier (1873), que fundamentaram práticas destinadas a erradicar a dimensão coletiva das terras dos fellahin e impor a propriedade privada. Estratégia que assegurou não apenas o roubo de terras por parte do estado francês, mas, também, a destruição da organização social cabila (Bourdieu; Sayad, 2017). O uso do aparato jurídico conferiu uma aparência de legalidade às expropriações territoriais e garantiu o comércio de terras a favor dos pied-noirs, responsáveis pela manutenção das plantations em terras férteis argelinas. A colonização se iniciou de maneira anárquica mas passou por uma evolução, concomitantemente às leis, indo de um pequena colonização oficial, para uma grande colonização oficial e econômica, e depois progredindo para uma colonização privada (Hamani, 2015). Simultaneamente, os fellahin foram confinados em porções de terras cada vez menores e improdutivas à medida em que as plantations avançaram. Todavia, mesmo pressionados pela expansão colonial, os fellahin encontraram meios para não se submeterem à totalidade da violência colonial e recorreram, sobretudo no período entre 1906 e 1950, à emigração para a França (Gillette; Sayad, 1984). Nesse sentido, a apresentação argumenta que a manutenção da posse da terra pela coletividade, por meio da emigração, foi um ato de recusa ao processo de desestruturação imposto pelo colonialismo e às suas consequências, como as expropriações de terra e a fome.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Júlia Otero dos Santos (UFPA), Marcela Stockler Coelho de Souza (UNB)
Resumo: Políticas da terra: multiplicidade contra a monocultura
Essa comunicação é fruto de um diálogo em torno da noção de terra e da política que ela funda junto a povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais. A partir da experiência das autoras, com diferentes povos, propomos uma reflexão inicial sobre os efeitos que as ações políticas e os modos de existência desses coletivos, enraizados na terra, podem ter sobre as imagens usuais da política.
Terra é entendida aqui como um significante potente e polissêmico, catalisador de lutas, alianças e propostas de transformação. Viver com a terra, constituindo-se a partir de uma multiplicidade de relações com outros em um território criado a partir dessas relações, é o que determina a existência de uma série de coletivos que designamos por povos da terra. Estamos falando de uma gente que fica agarrada na terra, nas palavras de Ailton Krenak (2019: 22); que encara a terra como força vital que integra todas as coisas, como escreve Antonio Bispo (2015: 41); que se entende como a extensão do corpo da terra, na definição de Célia Xakriabá (2020). Para estes coletivos, os modos de produzir alimentos, criar filhos, cuidar de parentes, habitar e viver são inseparáveis das relações com os co-habitantes de seus territórios: animais, vegetais, outros povos, espíritos. É a atualização das relações com esses sujeitos que anima e dá origem à T/terra. É a atualização das relações com esses sujeitos que anima a terra, fazendo dela algo entre a ordem do acontecimento e do ser, ou do evento e do sujeito. É entre a dimensão imanente da terra e os modos jurisdificados por meios dos quais a Terra ganha espaço na política, que essa reflexão procura ocupar um espaço.
Quais as implicações conceituais dessa política (com todos os seus adjetivos) feita com e junto à terra, caracterizada pela multiplicidade, pelos vínculos vitais entre humanidade e mundo, entre corpo e território? Quais os modos como as políticas da terra conseguem interromper os efeitos dos cercamentos (das despossessões) que dão continuamente origem à separação entre terras e corpos, definidora dos modos de produção e subjetivação capitalista?
Estamos interessadas, de um lado, em pensar os efeitos daquilo que se pode chamar de novos ciclos da plantation no Brasil, evidenciados nas políticas de transição energética e no enquadramento das territorialidades originárias nos ideários da "governança" e "regularização fundiária". De outro, interessa-nos como a conjugação terra, vida e luta - uma verdadeira política da T/terra - ganha novos contornos e nos impulsiona a reimaginar a política.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Marcela Rabello de Castro Centelhas (Colégio Pedro II)
Resumo: Desde ao menos meados do século XVI há registros escritos sobre os severos efeitos provocados pelas secas no semiárido nordestino. A historicidade destes registros, o atual debate sobre as mudanças climáticas, bem como os variados sentidos que essa palavra assume demonstram a complexidade de seu entendimento. Afinal, as secas não podem ser reduzidas apenas a aspectos biofísicos, sendo produzidas por diversos modos de enredamento vinculados a dimensões ecológicas, político-administrativas, corpóreas, técnicas, discursivas e afetivas. Da mesma forma, tomadas como fenômenos ecobiopolíticos, as secas podem gerar, acentuar e reforçar processos de racialização, desumanização, animalização e altericídio característicos da plantation.
O trabalho de campo desenvolvido entre 2016 a 2018 em uma localidade do agreste pernambucano junto com mulheres quilombolas possibilitou distanciar-me da seca como um evento inscrito em uma temporalidade linear ou cíclica, para elaborá-la partir da forma como as relações de expropriação, exploração e fuga a ela conectadas se inscrevem no cotidiano.
Partindo de uma região cujo debate sobre tragédias sociais e ecológicas é muito anterior às discussões mais recentes sobre o Antropoceno, me inspiro criticamente na noção de desastre ordinário para dar centralidade a práticas corriqueiras que se aproximam de ideia de convivência. Convivência, por sua vez, é um termo que ganha destaque no início dos anos 2000 ao orientar políticas públicas para este local, contudo, ela será abordada aqui em uma acepção mais ampla, que diz respeito aos saberes e fazeres produtores de vidas no e com o semiárido.
Este trabalho busca, portanto, descrever e analisar as formas criativas de recusa, desvio e fuga presentes em três aspectos relacionados a modalidades de convivência com as secas: o uso das águas, o cuidado com as roupas e a organização do samba. Como se verá, estas três dimensões estão articuladas, pois mobilizam artes, saberes e memórias através das quais essas mulheres tecem vida e projetos de futuro. Pelas águas, roupas e pelo samba elas costuram relações entre temporalidades, parentes e seres mediante uma ética e uma estética do cuidado de si, dos seus e do mundo que possibilitam driblar as atualizações do cativeiro e seguir em frente.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Mariana Cruz de Almeida Lima (UNICAMP)
Resumo: A proliferação da vassoura de bruxa, doença causada pelo fungo Crinipellis perniciosa, atingiu roças de cacau do sul da Bahia e selou a crise de seu sistema agroexportador. Nesta mesma época, movimentos camponeses fizeram proliferar a praga dos Sem Terra, afetando sobremaneira a estrutura fundiária da região, que tornou-se importante mancha de Reforma Agrária já no início dos anos 2000. Embora a agência da bruxa seja considerada fundamental entre as pessoas que assentaram-se ali, a organização do povo Sem Terra emerge como outro fator determinante na luta contra a plantation cacaueira. O que a emergência destas pragas pode contar sobre o modo de produção do fruto que sustentou a economia baiana ao longo de quase todo século XX? Como a atenção ao protagonismo compartilhado entre bruxa e Sem Terras tensiona categorias que proliferam em estudos sobre o entrelaçamento entre humanos e não humanos em paisagens arruinadas? A presente proposta integra pesquisa etnográfica em andamento, realizada junto a habitantes do Assentamento Terra Vista município de Arataca, Bahia. Busco mapear algumas inflexões históricas da região, explicitando a conjuntura do processo de ocupação da terra e o modo como a questão fundiária vem sendo transformada em sincronia com o refazer de paisagens a partir da aliança entre organização Sem Terra e vidas outras que humanas. Focalizo especialmente os agenciamentos que faz tal aliança ser pensada como uma entre entes circunscritos na mesma categoria - praga. Com isso, avanço a hipótese de que, porquanto Sem Terras e bruxa compartilhem da capacidade de escapar do controle inerente ao regime da plantation, a chave da praga também pode expressar uma equivalência incômoda sua condição menos-que-humana.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Mario de Azevedo Brunoro (OPI)
Resumo: O presente trabalho pretende apresentar o histórico do isolamento do povo Katawixi, habitantes do interflúvio Purus-Madeira, em especial das florestas e campos das cabeceiras dos rios Mari, Mucuim e Paciá, e discorrer sobre os pães-de-índio, vestígios bioculturais encontrados em expedições de localização e monitoramento realizadas pela Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) da FUNAI Purus-Madeira. O trabalho parte de duas premissas centrais: 1. que o ato de isolamento praticado pelos Katawixi é em si uma declaração de recusa, equivalente aos protocolos de consulta previstos na Convenção 169 da OIT(Ribeiro et al, 2022); e 2. que os povos indígenas são cultivadores da diversidade, seja ela social, biológica ou linguística (Carneiro da Cunha, 2019). O território Katawixi se situa em região - sul do município de Lábrea/AM - que, nos últimos anos, se tornou a nova fronteira da expansão agropastoril, extrativista e madeireira, fato que pressiona e ameaça a vida e território desse povo. Nas últimas décadas, as principais informações sobre os Katawixi provém, justamente, das expedições realizadas pela FPE Purus-Madeira e dos vestígios achados nas florestas antrópicas que manejam e nos artefatos encontrados em seu território (Cangussu et al, 2022, p. 123). Conforme explica Cangussu, os vestígios são os elementos materializados e observáveis no ambiente resultante da ação dos povos indígenas isolados (2021, p. 34), e, no caso específico dos Katawixi, os principais vestígios são pães-de-índio encontrados nas paisagens antrópicas do território katawixi, como castanhais e matas de palhal (Mendes dos Santos et al 2021, p. 9; Cangussu et al 2022, p. 139-141). Neste sentido, o nosso foco está nesses vestígios alimentares, que são o resultado de uma sofisticada técnica de produção de biomassas vegetais, visando seu armazenamento duradouro no solo (Mendes dos Santos et al, 2021, p. 16). Tal prática garante ao pão-de-índio uma posição privilegiada que correlaciona contextos arqueológicos a etnográficos, uma vez que são encontrados tanto em escavações arqueológicas quanto em territórios com a presença de isolados. Estudos preliminares sobre a composição destes pães revelam grande diversidade vegetal manejada em sua feitura, de tubérculos, frutos e grãos (Furquim, no prelo). Assim, o pão-de-índio é um artefato cultural que fala tanto de sistemas de conhecimento associados à diversidade de plantas alimentícias quanto de dinâmicas territoriais pretéritas e contemporâneas (Mendes dos Santos et al, 2021) que se contrapõem e recusam as políticas de vida da plantation.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Michel de Paula Soares (USP)
Resumo: A presente comunicação parte de minha etnografia realizada entre 2021 e 2023 na Bahia, mais especificamente na capital Salvador e em cidades do Recôncavo baiano, quando visitei as principais escolas de formação de atletas no boxe olímpico. Por diversos motivos, a Bahia alcançou a hegemonia do boxe competitivo nos últimos anos. Um dos componentes que informam a eficácia do boxe baiano está na performance da um ética do revide, presente em diversos saberes e fazeres das populações racializadas. Desenvolvo o que denominei como Antropologia do Revide como principal contribuição do Grupo de Trabalho.
Narrativas de marginalização, repressão e perseguição policial aos praticantes e espaços onde o boxe é ensinado, assim como aconteceu no passado com outras manifestações culturais afrodescendentes, foram constantes durante todo o século XX. O fato elementar e primordial a se considerar é que, no Brasil, historicamente, o boxe é um esporte praticado por gente pobre e preta, vide a composição da atual seleção olímpica, formada quase que integralmente por pessoas não brancas. As escolas e projetos sociais que iniciam e formam atletas competidores estão majoritariamente localizadas em favelas, quebradas e bairros populares. É um saber desenvolvido nas periferias dos grandes centros urbanos, com protagonismo dos moradores, treinadores e atletas desses espaços.
A partir da composição de raça e classe de meus interlocutores, passei a priorizar a dimensão racial enquanto categoria analítica. Ou seja, reconhecer a dimensão central da antinegritude na manutenção das relações sociais e na produção dos espaços, instituições, territórios e formas de circulação. É a partir dessa consideração que podemos pensar uma ética do revide como padrão relacional atuante no Brasil desde sua formação colonial. Partindo da implicância que significa viver em uma nação cujo projeto histórico e ideal de brasilidade o povo brasileiro é pautado pelo extermínio de jovens racializados, é preciso levar a sério quando treinadores dizem que o boxe é um projeto de emancipação do povo negro.
Uma ética do revide seria toda e qualquer forma de reação, oposição ou insurgência contra os princípios da necropolítica. São saberes extensivamente praticados por pessoas, coletivos e populações que sofrem a violência. Ou seja, são formas criativamente inventadas no sentido de se criar condições para se viver uma vida digna. Sendo a violência antinegra uma dimensão constitutiva das relações sociais e da reprodução da ordem urbana; considerando o antagonismo estrutural que existe entre sociedade civil e negritude, são as práticas de revide que permitem nos aproximarmos de um entendimento real sobre assimetrias, desigualdades e performances de poder.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Renata Barbosa Lacerda (UFRJ)
Resumo: Este trabalho reflete sobre violências cujas raízes remetem à colonização e ao capitalismo em processos históricos de conquista de regiões de fronteira. Indago se o modelo analítico da conquista (SOUZA LIMA, 1995; MACHADO ARÁOZ, 2023) pode elucidar como a plantation e a mineração alimentam a exploração e o controle de recursos naturais e de populações em uma fronteira do desenvolvimento neoextrativista. A análise se baseia na etnografia que realizei sobre conflitos socioambientais em um assentamento da região da rodovia BR-163 (Sudoeste do Pará, Amazônia), o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Terra Nossa.
Desde a criação do PDS em 2006, famílias de pequenos agricultores, reconhecidas pela administração pública como assentadas, responsabilizavam o governo pelas violências que enfrentavam. Foi o governo que as jogou em meio a valentes: fazendeiros, grileiros, mineradoras e madeireiras, os quais reproduziam o mito do pioneirismo dos colonos brancos que conquistaram terras supostamente vazias. Os valentes ameaçavam cotidianamente seus bens, lotes, direitos, animais, roças, acesso à água, corpos, casas, escola e outras materializações de seu trabalho e ocupação na terra requisitos para serem assentados. Ao mesmo tempo, muitos servidores do governo se revelaram serpentes por favorecerem valentes e disciplinarem os movimentos dos pequenos agricultores. Movimentos esses necessários para a habitação da terra enquanto morada da vida, em conjunto com seres não humanos e materialidades não redutíveis a recursos.
Para assentados, as serpentes e os valentes, embora diferentes, se complementavam como agentes de sua expropriação em situações narradas por humilhações e covardias, bem como por usos do fogo e de venenos por fazendeiros, grileiros, aviões do agronegócio (pecuária e soja) e mineradoras que exploram ouro do PDS. Ademais, esses antagonistas gradualmente envenenaram as relações entre assentados, via acordos com alguns de seus segmentos, que se converteram ao outro lado da luta. As famílias que se mantiveram na luta do PDS eram alvo de ameaças, agressões, desprezo e racismo anti-indígena e antinegro, sendo estigmatizadas como vagabundas, sem-terra e/ou ambientalistas. Logo, eram retratadas como contrárias às melhorias de vida prometidas pelos valentes que, por seu turno, passaram a ser descritos como amansados ou coringas devido às ajudas que ofereciam.
Assim, a persistência do discurso civilizador do desenvolvimento e o apagamento de outras historicidades e formas interespecíficas de habitar o mundo são dispositivos da colonialidade nesses conflitos. Argumento que a questão étnico-racial é central nos conflitos desencadeados por políticas de desenvolvimento orientadas por eixos de exportação de commodities.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Rodrigo Charafeddine Bulamah (UERJ)
Resumo: Conhecido localmente como o rei construtor, Henry Christophe governou o norte do Haiti em princípios do século XIX. O país vivia as primeiras décadas de sua independência após um longo processo revolucionário que originou um campesinato negro livre, mas ainda circundado por um Atlântico majoritariamente escravista. Originário da ilha de Granada, esse rei-estrangeiro implementou um conjunto de leis de conservação e proteção ambiental pautado em lógicas que parecem operar a partir de uma dialética entre a plantation e a contraplantation. A proposta desta comunicação é explorar de modo detido essas leis ambientais, comparando-as com legislações vigentes em espaços euro-americanos para então discutir as continuidades e rupturas com a plantation no Haiti pós-revolucionário. Não busco aqui afirmar um pioneirismo caribenho nas formulações sobre conservação e proteção de animais e plantas, o que tem sua importância, mas nos levaria subscrever uma linearidade própria à historicidade ocidental. Parto, então, do conceito de alter-nativo, proposto por Michel-Rolph, Trouillot, para chega à noção de alter-natureza, dialogando com debates recentes sobre conservação e convivialidade explorando outras genealogias políticas afro-atlânticas. De saída, argumento que as leis de proteção ambiental de Christophe tinham inspiração em formas de vida de escravizados e quilombolas, particularmente nos valores que essas pessoas conferiam às plantas e aos animais em hortas e terrenos de criação onde trabalhavam ao lado das monoculturas de cana-de-açúcar e outros produtos tropicais. Essa inspiração, contudo, parecia conviver com durabilidades do colonialismo e com os rearranjos da própria plantation num contexto pós-emancipação.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Rogério Louvain Viana Filho (UFRJ)
Resumo: Esta comunicação é parte de uma pesquisa de doutorado em curso que busca pensar de que formas a atual instalação da indústria petrolífera offshore na Guiana entretém relações com os legados da plantation no país. No contexto em questão, um desses legados é a cristalização da divisão da esfera político-institucional-partidária entre os dois principais grupos étnicos do país, afroguianenses e indoguianenses, descendentes de escravizados e de trabalhadores contratados (indentured labourers) levados para as plantações da antiga colônia holandesa e depois britânica. Diante disso, pergunto: como se atualiza, na Guiana, a vida política no rastro da plantation (Thomas, 2019) e na era do petróleo? Para tecer as primeiras considerações sobre a questão, busco indícios em processos jurídicos movidos por cidadãos nos quais órgãos do Estado e multinacionais petrolíferas aparecem como corréus, na presença e na ausência de protestos nas ruas, e nas cartas abertas escritas para a imprensa local. Participar ou tomar partido em cada uma dessas atividades possuem certas implicações do ponto de vista dos meus interlocutores. Nessa arena, acusações sobre "to be political" em suas ações convivem com questões que eles chamam de "paramountcy of the party e "fear of victimization". Aqui, tomarei tais termos enquanto objetos de análise etnográfica para começar a pensar sobre como uma ordem política racializada, condensada na expressão crioula "apaan jaat" (Vaughn, 2022), se atualiza e se transforma à medida que a Guiana ganha proeminência mais uma vez no circuito extrativista do capitalismo global.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Victor Miguel Castillo de Macedo (USP)
Resumo: O trabalho apresenta duas formas de vestígio, conforme o termo foi definido de modo polissêmico por Christina Sharpe, ao seguir os rastros e modos de vigília que encontrei em minha pesquisa de campo com ex-combatentes da revolução dominicana de abril de 1965. A revolução é tomada enquanto um dos breves momentos em que a maré da história dominicana acena a um contra-movimento (como as tidalectics de Kamau Brathwaite). A ausência do território dominicano nos registros das plantations coloniais dos séculos XVI ao XIX, não impediu que no século XX, se formassem plantações açucareiras vinculadas à interesses imperiais, em paralelo ao autoritarismo que ocupou mais da metade deste século no país. São vidas atravessadas pelos movimentos de expropriação do século XX que me interessam: ora expressos como violência física, ora na imposição da migração como fuga (que faz dos Estados Unidos a outra fronteira dominicana, além do Haiti). Para tanto, retorno aos itinerários da Fundação de Solidariedade aos Heróis de Abril (FUSHA), organização da qual faço parte, para descrever suas formas de vigilar (seguir os rastros e velar) vidas de pessoas negras dominicanas que participaram da revolução. Mais especificamente tratarei da busca de Tirso Medrano (poeta, advogado, presidente e fundador da organização) no refazimento dos enredos da trajetória da famosa combatente Tina Bazuca. Ao partir destes achados do acervo da FUSHA, ou retornar a tais materiais co-produzidos em campo, argumento que o gentilício que define uma pertença nacional às trajetórias descritas, é somente mais um vestígio das maquinações da plantation. De modo que as atividades da fundação operam, e esse é meu segundo argumento, como refúgios, frestas, contra-arquivos, que se deixam ver entre os vestígios e ruínas coloniais da cidade de Santo Domingo.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Yeison Andres Rojas Ramirez (UFRRJ)
Resumo: As reflexões desta proposta fazem parte do trabalho de campo realizado em uma comunidade rural colombiana (Trujillo Valle) durante os meses de outubro e novembro de 2023. Nessa comunidade rural, constatou-se que o cultivo de café (predominante no município) aparece como uma ordem temporária. A partir do momento em que uma planta de café é plantada, os agricultores começam a registrar os eventos de sua existência em suas raízes, folhas, sementes e frutos. As pessoas evocam suas memórias, sua espiritualidade, suas emoções, seu passado e constroem seu futuro por meio do tempo do café. Pode-se dizer que o ciclo do café é o ciclo da vida em Trujillo. No entanto, nos últimos seis anos, essa localidade rural vem experimentando uma rápida expansão das plantações de monocultura de abacate de empresas colombo-mexicanas. Terras de camponeses e famílias que antes eram dedicadas ao cultivo de café foram adquiridas para a expansão dessa monocultura. Com base em experiências autoetnográficas, imagens de arquivo e narrativas etnográficas de três famílias camponesas de Trujillo, o objetivo desta proposta é estudar as relações dos camponeses no tempo do café, suas práticas e corpos camponeses como elementos de análise para pensar uma contra-plantation. Levando em conta a linearidade temporal da plantação que usa o tempo a seu favor para moldar o futuro das sociedades. Este trabalho apresenta outro tempo de vida e de cultivo: o tempo do café, por meio dos modos de vida de três famílias camponesas que continuam plantando, compartilhando conhecimentos, criando laços de parentesco, movimentando seus corpos e buscando rotas de fuga diante dos sistemas de monocultura que se instauram em seus territórios. Além disso, este trabalho busca refletir sobre os significados e usos dos corpos no tempo do café, o que é diferente da compreensão dos corpos nos sistemas de plantation que buscam corpos-sujeitos sem conexões comunitárias, sem uniões espirituais ou ancestrais, sem conexões com a terra; mas disponíveis para cultivar, cortar, semear, colher, comercializar. Essa separação entre corpo e território também equivale a novas formas de crescer e viver, de ser homem, mulher ou criança na plantation. Como os modos de vida camponeses que vivem no tempo do café possibilitam diálogos para pensar uma contra-plantation? Esta proposta de GT busca dialogar com os modos de enfrentamento, criação e fuga praticados por camponeses que cultivam café contra os sistemas de plantation na localidade de estudo.