ISBN: 978-65-87289-36-6 | Redes sociais da ABA:
Grupos de Trabalho (GT)
GT 060: Experimentos de Ontologia: formas de mundialização desiguais e etnografia como atuar criativo.
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Coordenação
Marisol de la Cadena (University of California, Davis), Lucas da Costa Maciel (Memorial University of Newfoundland)

Resumo:
A América Latina é assolada pelo extrativismo, uma prática violenta que esgota e transforma vidas humanas e outras-que-humanas em matéria-prima para a expansão do capital, destruindo os conjuntos mais-que-humanos que conformam territórios de diferença. Chamamos esses processos de formas desiguais de mundialização. No entanto, essa violência não conseguiu anular as possibilidades que surgem do emaranhado entre mundos e que permitem reconhecer não apenas os diversos conjuntos de realidades, mas a aliança, a interferência e a guerra entre eles. A ontologia como método antropológico compartilha o interesse pela diversidade de mundos. Na América Latina, ele enfatiza a dimensão conflituosa das equivocações, mostrando a criação e atualização de realidades como processos operados em campos de disputa. No entanto, como fazer com que a metodologia vá além do mapeamento de conflitos assimétricos e equivocações? A pesquisa ontológica é capaz de incidir sobre os impasses que mapeia? Como criar formas de se referir a isso etnograficamente? Neste GT exploraremos essas questões, pensando caminhos para a prática etnográfica diante da violência que se acumula, do colonialismo que insiste em não ceder e dos perigos do ressurgimento da ultradireita totalitária, etc. Queremos que este seja um espaço criativo para reposicionar nosso compromisso com a autodeterminação ontológica dos povos, convocando uma antropologia afetada pela ontologia a se engajar no trabalho criativo em prol da autonomia.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Um único mundo que não é o mesmo: ontologia como uma questão de compromisso
Alyne de Castro Costa (PUC-RIO), Alyne de Castro Costa (PUC-RIO)
Resumo: Nos últimos anos, a noção de ontologia vem sendo mobilizada em teorias e análises oriundas de campos do saber outros que a filosofia. Capitaneada pela antropologia, a chamada virada ontológica expressa o compromisso de tomar os modos de vida dos povos nativos como realidades legítimas, em vez de meras representações culturais. Contudo, para estar à altura desse compromisso com o pluralismo ontológico, bastaria apenas reconhecer a legitimidade desses outros mundos? Como evitar que tal pleito não se converta numa exigência abstrata por respeito a esses outros, sem nos deixar afetar pelas diferenças entre nossos mundos? Nesta comunicação, abordarei alguns aspectos que me parecem ainda pouco explorados dessas novas articulações entre ontologia e política, as quais se tornam ainda mais cruciais diante da ameaça representada pela crise ecológica global. Mais especificamente, proponho que, para ativar o potencial político do pluralismo ontológico reivindicado, é preciso entender compromisso em termos de mutualidade e interdependência”: a construção de um mundo onde caibam muitos mundos diz respeito tanto à multiplicidade de mundos quanto à unidade que encapsula tal multiplicidade ou melhor, o mundo comum que emerge do reconhecimento da interdependência entre os diversos mundos.
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Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Conflitos ontológicos, propriedade privada e lutas pelo comum, diálogos interepistêmicos México-Brasil.
Amiel Ernenek Mejía Lara (UFRB)
Resumo: “O que se precisa para se dar conta dessa doença, dessa podridão da humanidade? Não se precisa uma religião, ou uma ciência, ou uma ideologia. Basta olhar, escutar, sentir”. Com a frase, o Subcomandante Moises problematiza a nova convocação dos indígenas guerrilheiros do México para atravessar a tormenta e chegar ao outro lado”. Uma reflexão desses maias onde a tormenta é à inconformidade da natureza (…) sua a forma de protestar, cada vez mais forte e cada vez mais terrível, e a experiência sensível da catástrofe ambiental a maneira de criar um lugar-comum. Mas a tempestade, na reflexão deles, esta dada na propriedade privada”: centro do capitalismo e colonialismo ocidental, opondo-se à catástrofe com sua proposta de estabelecer extensões da terra recuperada como do comum. Ou seja, sem propriedade, se posicionando assim num conflito ontológico que contorna a destruição [que] a natureza vai cobrar ao recuperar a terra a do capitalismo. Mas essa posição dos Zapatistas, com grande visibilidade, coincide com as de outros movimentos indígenas do continente menos conhecidos que também se contrapõe, nesse grande conflito ontológico, as políticas de morte, compartilhando a importância de responder, sob categorias próprias, a guerra entre as relações impostas pelos não indígena e as relações de humanos, não humanos e mais-que-humanos impedidas pela propriedade privada, questões que trabalharei procurando um diálogo interepistêmico que acompanha a reflexão Zapatista e as de duas lutas indígenas junto as quais tenho pesquisado. Uma delas é a luta pela retomada do território no Nordeste Indígena brasileiro, em particular dos Tupinambá, a qual, além de ser uma luta contra as fazendas por terras/recursos, é também um embate ontológico para retomar as relações cerceadas pelas propriedades privadas onde foram capturadas agências de tipos e tempos diversos que ao voltam à relação, quando as terras são recuperadas pelos indígenas, trazem uma plêiade de mais-que-humanos que encorajam a abolição dos latifúndios para retomar espaços para humanos, animais, plantas e outras agências não vivas. A outra reflexão é sobre a luta dos Nahuas do Ocidente mexicano pela comunidade a qual há seculos se contrapõe ao regime colonial, ao regime das fazendas ou ao regime da propriedade coletiva vinda da reforma agraria da Revolução Mexicana. Formas de propriedade que, mesmo com relações diferentes entre elas, se opõem ao lugar-comum almejado na ideia de comunidade, a qual não é apenas uma forma de organização social, mas também uma categoria que engloba os tratos e os acordos coletivos deles com forças não humanas, como ventos, águas e donos, que garantem a continuidade da comunidade mediante a perpetração de ciclos como o do clima ou do milho.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Além da poética vegetal: uma proposta de encantamento com um pensamento Guarani Mbya
Anai Graciela Vera Britos (USP)
Resumo: Neste trabalho que está vinculado à minha pesquisa para a tese de doutorado, apresento conceitos e ideias surgidas a partir de uma série de intercâmbio de reflexões que venho realizando junto a um pensador indígena do povo Guarani Mbya sobre plantas, Mata Atlântica, língua e povo Guarani. Através das imagens e estéticas vegetais contidas nas narrativas, pretendo trazer a originalidade e a relevância dos próprios relatos e análises deste pensador sobre a cosmologia de seu povo. Os conceitos, reflexões e traduções guaranis servem aqui como impulso para debater língua guarani e tradução, analisando as formas particulares que os indígenas traduzem seus mundos à sociedade não-indígena e propor alternativas à tarefa da tradução de mundos (e não só de palavras) no âmbito de uma antropologia implicada (cf. Albert, 1995). Tendo como foco essa proposta guarani, tenho a intenção de propor uma experiência de encantamento com os brotos e os vegetais para compreender não só a poética vegetal do mundo guarani, mas também a sua crítica à noção ocidental de floresta e Mata Atlântica. O pacto etnográfico que venho construindo com este pensador se constitui assim em uma tentativa de construção de uma proposta cosmopolítica para traçar pontes entre universos culturais diferentes, levando a sério o pensamento indígena, que nos exige adquirir consciência para germinar outros modos de existir.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Como pensar problemas sociais quando mundos incomensuráveis se encontram? Apontamentos sobre o processo de vacinação contra a Covid-19 entre os povos indígenas no Brasil
Anderson Jamar Neves Maciel (UFRGS)
Resumo: O presente trabalho acompanha histórias de pesquisadores indígenas da Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas a Covid-19 (PARI-C) durante o processo emergencial de vacinação contra Covid-19. Essas histórias, registradas durante entrevistas e rodas de conversas realizadas no âmbito do estudo de caso sobre vacinação dos povos indígenas no Brasil no ano de 2021, permitem entrever um dissenso histórico sobre um equívoco entre o paradigma biomédico que formatam as políticas de atenção à saúde indígena e noções indígenas de saúde. Ao descrever esse conflito, acentuado pelas políticas negacionistas e de retração de direitos do Governo do ex-Presidente Jair Bolsonaro (2019 - 2022), busco indicar como problemas sociais entre mundos incomensuráveis podem ser pensados a partir de intervenções heterogêneas e assimétricas que propiciam a construção de uma ética específica, localizada e não normativa para a promoção da saúde. Nota-se que em termos biomédicos, a vacina visa assegurar um futuro físico e biológico contra o novo coronavírus, no entanto, a forma como os pesquisadores indígenas se relacionam com, e por meio, do imunizante, dá a ver outros modos de construção de futuros que não se restringe a um corpo físico e biológico, mas envolve a relação com uma multiplicidade de seres visíveis e invisíveis que compõem o mundo ameríndio. Nesses termos, o problema social que gravita em torno do processo de vacinação contra a Covid-19 entre os povos indígenas escapa ao paradigma biomédico de saúde. O que essas histórias nos indicam são caminhos possíveis para a construção de futuros mais que biológicos, no qual o direito ao acesso à vacinação, a garantia dos direitos aos territórios indígenas e o reconhecimento dos diferentes modos de vidas dos povos indígenas são elementos indissociáveis para a promoção da saúde entre os povos indígenas. Nesses termos, argumenta-se que o problema social que gravita em torno do processo de vacinação contra a Covid-19 entre os povos indígenas envolve não apenas a proteção de um corpo físico e biológico, mas uma multiplicidade de relações pela qual emergem noções de saúde, ambientes e corpos.
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Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
(Sobre)viver nas ruínas: deslocamentos e processos de (re)territorialização em contexto de desastre
Beatriz Ribeiro Machado (UNICAMP)
Resumo: Como é viver em meio às ruínas do que foi sua comunidade”? Essa era a pergunta que ecoava enquanto, pela primeira vez, caminhei mergulhada no silêncio perturbador dos destroços de casas repletas de lama em Paracatu de Baixo, subdistrito de Mariana, MG. Em meio à parte central da comunidade, tudo o que se vê são escombros e ruínas, fruto dos impactos de megaempreendimentos e violências impostas às comunidades atingidas que foram deslocadas devido ao rompimento da barragem de Fundão da mineradora Samarco (Vale/BHP). Mediante o maior desastre minerário da história, o caminho a ser trilhado nos escombros daquilo que foi Paracatu de Baixo, à luz da etnografia, é o de acompanhar os processos cotidianos de uma família composta pela matriarca e o patriarca, pais de 11 filhos, vítimas que retornaram para sua casa no território (ar)ruinado. Além dos que voltaram, alguns filhos optaram por ficar em Mariana. Em meio ao desastre socioambiental, a empresa responsável, Samarco S.A, passa a reger a autonomia das famílias atingidas através da Fundação Renova. Nesse cenário, o objetivo central é compreender, a partir destas redes familiares e campos sociais construídos, o que leva alguns membros das famílias atingidas pelo desastre a retornarem e optarem por viver em um território devastado e condenado pelo rejeito de metais pesados? E como se dá esse cotidiano em territórios arruinados? Por fim, esta etnografia trata das relações entre o cotidiano, as agências e reinvenções na vida de famílias em meio aos escombros e o processo em curso de arruinamentos, protagonizados pelos megaempreendimentos que devastam o sul Global.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Mitofísicas do Lactationoceno x Manifestos Materfuturistas
Cecilia Cavalieri (PUC-RIO)
Resumo: Assim como a plantation, a Lactation é um sistema de exploração colonial, imperialista, que se estrutura sobre quatro patas: 1) grandes latifúndios, 2) monocultura, 3) trabalho escravo e 4) exportação para a metrópole. Não por acaso, somos a única sociedade a desenhar, de certo modo, a plantation láctea, a Lactation, como um geoglifo performado por mamíferas bovinas. Lactationoceno, portanto, é uma época geológica determinante para o modo de vida mamífero e que data da criação do mito da Via Láctea, começando nas estrelas, passando pelas amas de leite, vacas, cabras e ovelhas, até chegar nos grãos [soja, aveia...]. Seguindo a proposição de Danowski e V. de Castro em Há Mundo por Vir... [2014], de que o regime semiótico do mito, indiferente à verdade ou falsidade empírica de seus conteúdos, instaura-se sempre que a relação entre os humanos como tais e suas condições mais gerais de existência se impõe como problema para a razão, podemos falar da Via Láctea enquanto mitofísica dado que 1) essa metafísica industrial em relação extrativista com a substância é alimentada e fortalecida pelo negacionismo da realidade biofísica dos leites humanos e outros-que-humanos e 2) o comportamento da substância leite e das operações de negação da realidade levam à constatação de que ambos, leite e negacionismo, são hoje commodities em torno das quais orbita boa parte da indústriam láctea. Em minha tese de doutorado Notas metafísico-metabólicas de uma experiência mamífera [2022], parto de uma análise da noção de leite para produzir uma fratura epistêmica no seio da experiência mamífera ocidental, questionando os persistentes extrativismos, invisibilizações e lacunas na história do aleitamento humano e outro-que-humano, a partir de perspectivas contracoloniais, feministas e científicas: Leite não é produto, é um produzir-com”. Especular, nesse contexto, sobre materfuturismos, é pensar-com a presentificação da experiência do cuidado da matéria que deriva do latim, mater, e que quer dizer, literalmente, mãe e que implica em uma maternagem mais-que-humana e em uma experiência de parentesco que complexifica e engendra outra sensibilidade diante da afirmação Todo leite é leite materno”. Sujeita oculta da palavra leite, a vaca segue como produto de uma fantasia mítica e símbolo da questão biocapitalista. Este resumo se expande em encontro com o projeto Making Cow, de Cadena, o qual pensa e promover uma ética da vida a partir da busca etnográfica de práticas de fabricação de vacas”. A questão do leite não atravessa apenas essa relação interespécies, perfurando a falaciosa divisão homem/animal, mas também é atravessada por questões de raça, gênero e sexualidade baseadas em uma taxonomia humanista que faz do tratamento mercantil da espécie um commodity.
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Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Antropologia Indígena, indigenismo, antropologia: algumas questões preliminares acerca de conexões possíveis
Eduardo Santos Gonçalves Monteiro (Funai)
Resumo: Ao longo das últimas décadas, a antropologia tem evidenciado certa dimensão política e poética do processo de pesquisa, o que se desdobrou numa ampla reflexão sobre as especificidades contextuais significativas no processo etnográfico, as parcialidades inerentes ao saber científico e a dinâmica complexa de estabelecimento de acordos locais de pesquisa e de redes de relações com novos atores emergentes. Ao mesmo tempo, a emergência atual do conceito de Ontologia suscita um campo de reflexões e contribuições para a crítica política e epistemológica da disciplina antropológica. Nessa esteira, e buscando refletir sobre modos de relação, comunicação e ação possíveis em meio ao reconhecimento de certa incomensurabilidade entre mundos, apresento questões preliminares relacionadas a possíveis emaranhamentos, sobreposições e contradições que emergem do encontro dos campos da antropologia, do indigenismo e da antropologia indígena. Para tanto, pretendo refletir sobre minha atuação como pesquisador e servidor público da Funai junto ao povo A’uwẽ (Xavante) no leste mato-grossense. Buscarei descrever tensões, riscos e potencialidades de uma coexistência delicada inerente à posição de pesquisador-servidor, corporificada neste encontro entre estrutura institucional e engajamento pessoal; entre saberes - científicos ou não -, ação tecnopolítica e alianças cosmopolítica estabelecidas em meio à divergência. Descrevo, por um lado, a experiência como funcionário da área de gestão ambiental e territorial é cotidianamente confrontada com marcas persistentes do problemático histórico de relações entre Funai e os A’uwẽ, atravessado por projetos desenvolvimentistas e por relações assistencialistas. Por outro, aponto como é possível vislumbrar alianças entre agências estatais e os A’uwẽ que, ainda que profundamente tensionadas e sujeitas a riscos de captura, mostram-se fundamentais na luta indígena contra ameaças ao Cerrado centro-brasileiro. Articulada à está discussão, pretendo tecer reflexões a respeito de uma antropologia indígena, a partir da discussão de trabalhos e da ação cosmopolítica de antropólogas indígenas norte-americanas e brasileiras e de minha própria colaboração com antropólogos a’uwẽ. Argumento que a razão de ser deste campo está estreitamente relacionado a uma pragmática cosmopolítica - e, talvez, extra-acadêmica - fundamental para a constituição e, sobretudo, para a defesa de mundos. Pretendo, com isso, criar ressonâncias entre estes campos que permitam aventar questões sobre maneiras efetivas de extrapolar o mapeamento abstrato e conceitual de conflitos e controvérsias e de reencontrar a ação cosmoprática, assumindo posições de sujeito com responsabilidades éticas sobre regimes de existência específicos.
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Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Alcances da etnografia para pensar equivocações: encontros de mundos e a categoria terra a partir dos Kiriri do Acré
Fernanda Borges Henrique (IFCH Unicamp)
Resumo: Os Kiriri do Acré habitam uma terra no Sul do estado de Minas Gerais desde 2017 quando deixaram a aldeia Kiriri de Barra, localizada no Oeste da Bahia, em busca de um lugar em que pudessem dar continuidade em suas vidas. O deslocamento teve como estopim um conflito familiar entre irmãos, no entanto foi justamente o desejo de ter uma terra em que pudessem plantar, trabalhar, praticar a ciência e o toré, e viver como consideram possível que fez com que dezesseis famílias seguissem o cacique Adenilson até o Sul de Minas Gerais, mais de mil e seiscentos quilômetros distantes de sua antiga aldeia. A ocupação da terra realizada por essas famílias foi aceita pelo verdadeiro dono do lugar, um velho índio tapuia, que apareceu na ciência, e com quem os Kiriri negociaram sua estadia no lugar. Por serem índios também, as famílias obtiveram a permissão do velho índio para ali estabelecerem morada. No entanto, os Kiriri também precisam lidar com outra esfera de luta para permanecerem na terra desejada. Os sessenta hectares ocupados por essas famílias têm como seu proprietário legal o estado de Minas Gerais, com quem os Kiriri travaram intensas negociações. Em muitas dessas reuniões de negociação estive presente como antropóloga, nossa antropóloga, como algumas vezes me apresentaram aos agentes estatais. Em outras ocasiões também fui convidada pelo chefe da aldeia, o cacique Adenilson, e sua esposa, a também liderança Carliusa, a compor mesas em eventos acadêmicos para falar da situação da aldeia. Em todas essas ocasiões, o saber científico produzido pela antropologia fora solicitado como uma espécie de prova para dizer que aquelas pessoas eram indígenas que já haviam acordado sua estadia com o verdadeiro dono daquele lugar. Nesse sentido, sob os olhos da ontologia como método, este trabalho tem como objetivo discutir os alcances da etnografia para pensar as equivoções geradas a partir do encontro de mundos, neste caso pensando especificamente no que terra pode significar para os Kiriri e o que o mesmo termo quer dizer ao estado de Minas Gerais.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
O menino ribeirinho antropólogo e o Opará: modos criativos de narrar e descrever transformações paisagísticas, humanas e mais que humanas nas águas e margens do São Francisco em mundos fraturados.
Igor Luiz Rodrigues da Silva (FASVIPA)
Resumo: Opará rio mar, é o nome originário dado pelos povos Tupis-Guarany que habitavam as margens e as águas do rio que comumente e desde 1501 se convencionou chamar de rio São Francisco. O maior rio em extensão totalmente brasileiro surge no território de Minas Gerais e percorre vastos biomas e paisagens até desaguar no Oceano, entre de Alagoas e Sergipe. Ao longo de mais de 2 bilhões de anos, o velho rio rasgou as entranhas do mundo, transformou paisagens, viu seu poder moldar vidas, relações. Os ventos, as erosões, secas e cheias, sedimentos, espécies variadas, seres mais que humanos, povos originários, faziam e fazem parte de sua constituição, de suas modelagens lenticas, sem grandes rupturas e aprisionamentos. Porém, nos últimos 500 anos, ele se viu estancado, preso por construções imensas de barragens, canais de concreto, pedra e ferro, fruto processos coloniais, industriais, da transformação de suas águas em objeto de apropriação pelo capital. Ao passo que essas catástrofes humanas, de tomadas de territórios originários iam sendo ocupados pela domesticação de paisagens, corpos humanos e mais que humanos, resistências e contradomesticações ajudaram a construir novos sentidos e significados das comunidades ribeirinhas ao longo do rio. Neste sentido, este trabalho, inspirado na tese de doutorado defendida em 2022, cujo título é: Há um rio que vive e navega em meus sonhos, um Preto Velho me contou: memórias, paisagens e práticas do São Francisco, nas ruinas do Antropoceno, tem o objetivo de narrar, a partir de minhas próprias experiênciações, memórias, práticas e relação com o rio, o que venho chamando de antropologia ribeirinha, imersa nos movimentos das marolas, das vazões e correntezas de um rio múltiplo e habitado por relações multiespecies, bem como de memórias fluidas, simbióticas produzidas no seio das minhas famílias de barqueiros, canoeiros, pescadores, tornando a relação ribeirinho e antropólogo, sem divisões, sem hierarquizações, sem conflitos científicos e metodológicos. Para além da produção de conhecimento moldado com base em conceitos ocidentais e canônicos, estabeleço como método e metodologia, o encontro com sonhos, com habilidades e técnicas entrelaçadas no meu corpo, na minha escrita vinculada ao mergulho, nado, pesca, canoagem, desde a minha infância até os dias atuais. Bem como os encontros, diálogos, aconselhamentos com modos particulares de se relacionar com as entidades, seres, orixás, cânticos, ritos e incorporações, como sendo um iniciado na Umbanda, para assim para que a vida do rio, não seja ela mesma, pensada e apropriada continuamente pelas visões de mundo coloniais e para que a antropologia não seja parte desse processo brutal de domesticação dos mundos e conhecimentos.
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Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
OS MUNDOS POSSÍVEIS DIANTE DA CRISE: fazer política com os outros no tempo-de-agora
Izabela Santarelli Ferraz (UFMG)
Resumo: Assimilar a existência de múltiplos mundos é o que nos faz descobrir, desde o concreto, a história aberta postulada por Walter Benjamin (2005). A partir de realidades outras, nos deparamos com o possível, aquilo que questiona o ilusório sentido único da história. Vislumbrar esses possíveis exige de nós lidarmos com o desconforto produzido pelo fato de que a história não possui uma razão, tampouco um sentido linear de progresso: os sujeitos a fazem, com suas imperfeições inerentes à condição de humanidade. No atual contexto, a crise que transcorre suscita diferentes problemas e efeitos a distintos sujeitos, demarcando, assim, um tempo propício para questionar os pressupostos sob os quais acreditamos viver, possibilitando, então, uma reinvenção política. Se a crise afirma que não existe mais história, que nada fazemos, e seria a mão invisível esse sujeito oculto, a contradizemos, nos colocando enquanto sujeitos histórico-políticos no tempo-de-agora de Benjamin (2005), carregado de possibilidades subversivas. Além de perceber as potencialidades quando compartilhamos sentidos com os outros, Marisol de la Cadena propõe dar uma chance política ao equívoco (2018, p. 112), reconhecendo espaços de reivindicações num mundo com muitos mundos, ontologicamente distintos. Aqui, propomos pensar também em outros pressupostos necessários para fazer possível a cosmopolítica de Isabelle Stengers (2018), reclamando, como proposição e aposta pois ela não nos promete nada, a reunião de sujeitos que levam à arena política suas cosmovisões. Lidamos, assim, com outro desconforto, abrigado desde o locus epistêmico do qual partimos: ao mesmo tempo, pretendemos não somente o fazer daqueles diálogos possíveis, mas aceitar que não vamos entender tudo ou até mesmo nada daquilo que os outros nos dizem enquanto representantes de mundos outros, mas nem por isso deixamos de tentar. Partimos, então, do pressuposto de que os problemas complexos não vêm acompanhados de respostas. Quando nos propomos a dialogar, aceitamos que tudo é mera tentativa no fazer histórico-político profano. Qualquer ação humana não passa, assim, de uma aposta, mas exatamente aí reside a possibilidade de manter vivos os múltiplos mundos. No entanto, nem tudo vale: apostamos naquelas ações que são, por sua vez, potencializadas pela reunião dos sujeitos políticos (Stengers, 2018). Somente a reunião do nós com os outros é capaz de trazer à luz do dia as reivindicações passadas e presentes que o tempo-de-agora gesta, fazendo nascer o futuro. Para isso, nossa proposta passa pela hipótese de que reconhecer os outros como sujeitos políticos requer que os reconheçamos também enquanto sujeitos históricos, fazendo com que a proposta benjaminiana de escovar a história a contrapelo nunca tenha sido tão imperativa.
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Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Nos cantos do ouro: mundialização mebêngôkre em tempos de garimpo
João Lucas Moraes Passos (Ministério dos Povos Indígenas)
Resumo: Em abril de 1984, um grupo de cerca de 200 guerreiros da aldeia de Gorotire, aldeia ao leste da Terra Indígena Kayapó, resolveu empreender uma expedição guerreira a um garimpo localizado no interior do seu território. Acamparam, realizaram seus rituais guerreiros durante a noite e, no amanhecer do dia, irromperam na cabeceira da pista de pouso, principal ligação entre o garimpo e as cidades próximas. Hoje clandestino, o garimpo de Maria Bonita era, na época, comandado pelo próprio Estado brasileiro, que tinha a exclusividade da compra do ouro coletado ali. Os guerreiros de Gorotire ocuparam o garimpo e disseram que sairiam apenas se o governo atendesse a duas demandas: a demarcação de seu território e o aumento da porcentagem dos lucros da exploração de ouro que competia aos Gorotire. Essa última demanda pode a princípio contrastar com a imagem de guardiões da floresta construída por algumas lideranças mebêngôkre, mais destacadamente líderes como Cacique Raoni, Tuíre e Paulinho Paiakan. Esse trabalho se propõe a discutir as formas de mundialização mebêngôkre nessas frestas, ou como algumas comunidades mebêngôkre fazem seu mundo em um contexto marcado pela presença em intensidade variável há mais de quatro décadas de invasores em seu território, especialmente garimpeiros ilegais. Esse emaranhado também inclui as relações e divergências políticas com outros grupos mebêngôkre, que muitas vezes se traduzem inclusive na própria relação com o garimpo. A TI Kayapó que, juntamente com outras 5 TIs contíguas, compõe o maior território indígena demarcado do planeta é terra indígena brasileira mais afetada pela exploração de ouro. Essa exploração se concentra especialmente na porção leste do território, área de domínio do grupo denominado Gorotire, o primeiro grupo a estabelecer relações pacíficas estáveis com os não indígenas, ainda na década de 1940. Desde 1970, o garimpo de ouro está presente no território gorotire, mas os últimos anos testemunharam uma destruição sem precedentes. O avanço da tecnologia da destruição, aliado ao aumento sucessivo do valor do ouro no mercado internacional, causaram na última década uma mudança brusca de uma garimpagem mais artesanal para um maquinário devastador. Nesse cenário, marcado pelas gigantescas crateras do garimpo, os Gorotire tentam constantemente construir seu mundo em um emaranhado de exploração e conflitos com os não indígenas e com outros grupos mebêngôkre. Isso é especialmente interessante se pensarmos que a forma de mundialização característica dos Mebêngôkre é marcada ao mesmo tempo por uma constante busca de partes mais-que-humanas para uma produção ritual da humanidade (nomes, cantos, indumentária) e um embate político entre diferentes grupos mebengokre para uma produção social de coletivos humanos.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Disputar a Saúde, refazer o Público: aprendizados e desafios do projeto Cosmopolíticas do Cuidado no fim-do-mundo.
José Miguel Nieto Olivar (USP)
Resumo: Esta apresentação conecta a discussão sobre política ontológica com o campo da saúde coletiva no Brasil. O campo da saúde e as disputas entorno do cuidado compõem de forma ativa processos vigentes de mundialização desigual”. Ao extrativismo dominante se articulam processos intensos de adoecimentos e expulsões, bem como os aplainamentos ontológicos próprios da velha biopolítica. O projeto-rede Cosmopolíticas do Cuidado no fim-do-mundo: gênero, fronteiras e agenciamentos pluri-epistêmicos com a saúde pública, produz informação sobre coletivos sociais que sempre ocuparam posições de necessitados em saúde, de vulnerabilizados e carentes, para evidenciar como sustentam saberes e mundos capazes de disputar o Mundo, de contra-domesticar o Estado, e de colocar em ação formas interessantes -e conflitivas-, de cuidado e saúde. O projeto baseia-se em relações de aliança com trabalhadoras sexuais, mulheres indígenas amazônicas, mulheres vítimas do sistema prisional, travestis em regiões de fronteira e agricultoras urbanas pobres que plantam nas ruínas”. O trabalho etnográfico com estes coletivos mostra as distâncias, equivocações e trânsitos político-ontológicos entre o que pode ou não pode ser humano, humanizado ou humanizável, o que deve ou não caber no Mundo, na Saúde, no Saber; o que pode ou deve ser cuidado, as presenças e relações que compõem os mundos, corpos e territórios. Começamos a evidenciar também alianças, confluências e distâncias transversais entre estes coletivos e destes com o campo da saúde. Por outro lado, evidenciamos como os campos acadêmicos da saúde coletiva e da antropologia são interpelados por demandas de maior justiça epistêmico-ontológica a partir da presença de coletivos antirracistas, contra-coloniais, transfeministas, etc.. Percebemos a necessidade de reflorestar os repertórios teórico-metodológicos da antropologia. Apresentamos desafios metodológicos (teóricos, éticos e políticos) para a etnografia, buscando novas proposições e revisitando importantes proposições latino-americanas (Freire, Fals Borda e outres). Este repertório emergente ajuda a situar disputas e tensões no campo da saúde na linha de conflitos político-ontológicos descritos no Brasil e em outros contextos latino- americanos. Ele nos mostra como, a pesar de seu compromisso com os direitos humanos, de toda sua tradição democrática e progressista, de todas as aberturas à participação social e à humanização, o campo da saúde coletiva/pública tem ainda em aberto o desafio de levar a serio outros modelos de cuidado, a possibilidade da pluriversalidade, a exuberância onto-epistêmica das suas margens externas, os limites do excepcionalismo humano, entre outras coisas.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Cosmopoéticas ribeirinhas: alianças com o rio São Francisco para fazer-mundo entre os contratempos
Leon Patrick Afonso de Souza (UFG)
Resumo: Neste trabalho, apresento algumas observações sobre a crise ecológica percebida, vivida e sentida pelos ribeirinhos e os mundos existentes com o rio São Francisco, na região de Buritizeiro e Pirapora, em Minas Gerais: com as enchentes, a temperatura e oxigênio das águas, os peixes, as plantas, as pedras, a cachoeira, a piracema. Os contratempos, que de acordo com um pescador é um desajuste profundo no tempo do calendário, no tempo climático e entre esses dois, estão acontecendo porque desde a colonização o rio São Francisco vem sendo ocupado por formas violentas, que na pesquisa identifico como um habitar colonial ribeirinho, atualizado constantemente pelo poder exercido sobre todas as formas de existir. Os contratempos não são uma ameaça ou aquilo que pode chegar com uma crise ecológica futura, muito menos com ajustes para uma transição energética. Como veremos, eles estão acontecendo como resultado da instalação histórica de infraestruturas de energia elétrica, mineração, irrigação e dos quebra-cabeças da plantation sobre os mundos do rio São Francisco. Desde que iniciei a pesquisa de mestrado, em 2022, alguns encontros (com pescadores, vazanteiro e com um artista) me instigam a pensar que outras formas de resistência e enfrentamento ao habitar colonial ribeirinho emergem diante dos contratempos, pois os ribeirinhos estão construindo alianças estéticas, políticas e ontológicas para conjurar a crise ecológica. No reencontro com os mundos do rio, já que nasci em Buritizeiro e vivi lá até os dezoito anos de idade, tenho aprendido sobre como criar, viver e resistir entre essas mudanças, mas também sobre as possibilidades para uma antropologia ribeirinha, que esteja cada vez mais atenta e sensível às alianças entre formas de existir que compõem os mundos ribeirinhos. Palavras-chave: Cosmopoéticas; crise ecológica; rio São Francisco; ontologias; antropologia ribeirinha.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Arquiteturas compartilhadas: inventando práticas negociantes com o povo Xakriabá
Lucas Carvalho de Jesus (UFMG)
Resumo: Em um contexto de colapso climático, expansão urbana, construção desenfreada de edifícios e infraestruturas públicas e privadas, urge pensar em outras possibilidades de habitar. Os territórios indígenas e suas tecnologias ancestrais são reconhecidos como alternativas para se pensar outros modos de estar no mundo de forma compartilhada com muitos seres, ao contrário dos modos predominantes nas cidades brasileiras modernas. A partir da ideia de Marisol de la Cadena do não somente, aprendi a expandir a prática da tradução acolhendo a multiplicidade e as diferenças percebidas quando estamos entre mundos. Em visita recente à Terra Indígena Xakriabá, conversávamos sobre o que era arquitetura e não chegávamos a um acordo. As definições não estavam erradas. Mas não eram só aquilo. O que talvez possamos chamar de arquitetura Xakriabá não é a mesma coisa que chamamos de arquitetura na universidade ou em outro lugar. Não eram as mesmas práticas, eram diferentes. Esse processo de tradução feito com mal-entendidos só é um problema se a nossa intenção for que o entendimento seja único. A equivocação, desse modo, não é algo a ser evitado. No território Xakriabá, arquitetura também era o processo coletivo de construção das casas tradicionais e suas reverberações ou não nas práticas construtivas atuais, as lutas e conquistas pela diferenciação do espaço escolar indígena, as práticas de retomada que geram os diversos espaços comunitários, etc. Mas para o povo Xakriabá, não. O que chamávamos de arquitetura, para eles, era a vida cotidiana, parte da ontologia Xakriabá. Talvez o conceito de arquitetura estivesse em germinação, ali naquele encontro e diálogo com a universidade. Aprendemos juntos que habitar o território exige constantes negociações cosmopolíticas com as águas, os bichos, a terra, os tempos, as pessoas e todo o mundo ontológico Xakriabá. A presente proposta pretende, a partir desses aprendizados etnográficos, imaginar formas compartilhadas de fazer arquitetura, no diálogo entre a universidade e o território Xakriabá, ancorada em algumas questões: O que as práticas espaciais Xakriabá podem nos ensinar sobre arquitetura? Como considerar as práticas tradicionais nos processos de aproximação para que o conceito e a prática de arquitetura que chegam ao território Xakriabá não sejam os mesmos que discordamos na cidade? Como pensar processos, práticas e pesquisas compartilhadas de arquitetura a partir dos encontros com os povos indígenas?
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Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Mas alla del equivoco
Mario Blaser (MU)
Resumo: La visualizacion de los equivocos que ocurren en el encuentro entre formas de hacer mundos ha devenido en una movida analitica regular. En un terreno donde divergencias ontologicas eran negadas, dicha movida era crucial. Sin embargo, el terreno ha cambiado un poco, en muchos ambitos la divergencia ontologica ha pasado de ser negada a ser afirmada (a veces con bases bastante endebles). En este contextp se hace necesario re-enmarcar la tarea:?cual es el sentido hoy de marcar las divergencias ontologicas?

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Perspectivas Dissidentes e Criatividade na Segurança Pública Brasileira
Patrik Thames Franco (UNEMAT)
Resumo: Quando se discute segurança pública no Brasil, é comum a percepção de que a polícia é "que mais mata e morre". Por um lado, há as pessoas afetadas pela letalidade policial especialmente os jovens negros e pobres; por outro, os agentes enfrentam um sistema hierárquico que coloca praças sob o comando dos oficiais, dentro de uma estrutura conhecida como "militarismo". Eles também lidam com diversas condições de sofrimento e doença, assédio, autoritarismo, violência e, frequentemente, suicídio, que os afeta mais do que os confrontos em serviço. Inspirado na ideia de que "o abismo não nos divide, nos circunda", de Wislawa Szymborska, mencionada por Isabelle Stengers (2015), e seguindo uma antropologia simétrica (Latour, 1994), esta comunicação apresenta dados preliminares de uma etnografia a partir de ativistas ex-policiais militares. Suas criações e engajamentos políticos dissidentes oferecem compreensões diferentes dos problemas típicos da autoridade generalista de um imperativo universalista. A existência de múltiplos mundos e a aceitação de tempos difíceis desfazem grandes divisões como entre "militar" e "civil" e promovem atos criativos que inventam novas formas de resistir à dominação das instâncias de poder. À maneira do desbunde contracultural, os interlocutores mobilizam outras políticas, dentre as quais, agenciamentos a partir do humor, da grosseria, do insulto, da injúria, da sátira e, enfim, da transgressão à ordem, valor maior do "militarismo"; que, de modo agonístico, habilita, nos termos de Stengers, possibilidades de resistência à barbárie.
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Viver com o sal : O que nos contam as pessoas, as plantas e os animais que vivem com o sal
Renata Freitas Machado (Université Paris Cité)
Resumo: Durante uma visita às instalações da empresa Dow química em agosto de 2022, uma engenheira de minas me mostra uma pedra de sal embalada em filme plástico para evitar o contato com a umidade. Meu olhar se fixa na pedra, exibida como uma lembrança na prateleira do armário. "Não existe mais nenhuma assim", comenta a engenheira. Esse único exemplar de sal revela aos meus olhos a materialidade ubíqua, mas invisível, na vida dos habitantes de Matarandiba, uma pequena ilha próxima a Salvador (BA). O trabalho de extração de sal na ilha consiste em perfurar cerca de 1200 metros abaixo do nível do mar. Após a perfuração, as máquinas injetam água com alta pressão para recuperar o sal. Este pode então circular dentro dos dutos e atravessar o território da ilha, passando pelos manguezais, para chegar ao continente. Em nenhum momento, os habitantes veem o sal. Nesse sentido, tento mostrar que não apenas o sal e sua extração são invisíveis, mas que os danos sociais e ambientais causados por essa extração foram dissimulados pela empresa mineradora. Nixon (2011) qualifica como "violência lenta" a maneira como os danos ocorrem progressivamente e fora do alcance dos olhos" (2011: 2). A violência lenta tem como corolário à "resistência lenta", o modo como os coletivos humanos e não humanos afetados pelos efeitos dessa violência reagem e resistem gradualmente aos seus impactos (Babidge 2019). Nesse texto, vou me concentrar na resistência das mulheres marisqueiras e dos mangues à exploração do solo e subsolo em um território que optei nomear de "salgado". Para entender as questões relacionadas ao sal na ilha, é preciso retroceder ao início dos anos 1960. A comunidade não possui rede elétrica. Ela depende da produção artesanal do sal para garantir a conservação de peixes e frutos do mar. Mas, no final dos anos 1970, uma primeira rede elétrica é instalada, e uma empresa americana se estabelece nas terras da ilha para explorar os depósitos de sal. A exploração acelerada dos recursos minerais leva a uma devastação sem precedentes dos territórios habitados por grupos indígenas e/ou afrodescendentes na América Latina. Ela impõe uma ontologia única na qual a natureza’ é vista como um recurso destinado a alimentar a indústria capitalista (La Cadena; Blaser, 2018). No caso de Matarandiba, a exploração do sal se baseia no controle da circulação de sal nos tubos e controle de humanos, animais e plantas. Proponho realizar uma etnografia de relações multi-espécies para entender como as atividades de extração transformam as paisagens dos manguezais e da Mata Atlântica (Tsing 2017). Por estar no centro das interações com os humanos, animais e microorganismos presentes nos manguezais, o sal (salgema, salmoura, substância química) constitui o ponto de partida desta análise.

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Diagnósticos de saúde mental e bem-viver, apontamentos etnográficos a partir do caso dos indígenas wai wai do Norte do Pará
Rui Massato Harayama (UFOPA)
Resumo: Neste trabalho apresentaremos reflexões a partir do trabalho de campo entre povos Wai Wai no Norte do Pará, nas Terras Indígenas Trombetas-Mapuera e Nhaumundá-Mapuera. Os dados etnográficos referem-se às incursões em campo desde 2018 e com concentração nos anos de 2020 a 2023. A relação dos povos Wai Wai com o Estado nacional, sobretudo em sua caracterização étnica e na descrição da língua, foram organizados a partir do contato com os missionários do Unevangelized Fields Mission na década de 1940, e que levaram os primeiros serviços de saúde e educação. Esse contato gerou um processo de mudança e transformação com o abandono expresso de práticas consideradas xamânicas e quaisquer outras que não seguissem os ensinamentos dos missionários e a biomedicina ocidental, com especial atenção à interdição do uso das plantas medicinais e das rezas e sopros. Com a transferência dos serviços de saúde e educação para o poder público, a partir da década de 1990, os indígenas waiwai passaram a ser atendidos, no caso da saúde, por políticas desenhadas pelo Ministério da Saúde e hoje coordenadas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena. É nesse lastro histórico de relações colonialistas entre povos indígenas e não-indígenas que nos deparamos com os casos de pacientes psiquiátricos e que fazem uso de psicofármacos repassados pelas equipes de saúde. A estratégia de pesquisa de participar de forma engajada na compreensão desses diagnósticos, os medicamentos utilizados, os prontuários e os núcleos familiares, mediando os enunciados biomédicos para os pacientes indígenas, possibilitou conhecer diferentes formas de compreender o processo etiológico e com isso a explicação dos desequilíbrios sociocosmológicos, e que na concepção das equipes de saúde são compreendidas como doenças subjetivas e ligadas à psique humana. O quadro se agrava pelo modo como as políticas oficiais de saúde tem se apropriado das teorias do bem-viver, que quando transferidas em políticas públicas acabam replicando estereótipos colonialistas sobre indigeneidade e conhecimentos tradicionais. No caso analisado, as equivocações ocorrem entre as compreensões sobre os processos etiológicos nativos que compreendem seres não-humanos e os processos etiológicos da política governamental que apontam as compreensões xamânicas como respostas culturais a uma natureza universal, gerando estratégias cosmopolíticas de composição entre essas duas compreensões de mundo. Observamos que mesmo após a implementação de uma política de saúde norteada pelo princípio da atenção diferenciada e da interculturalidade, as respostas das equipes de saúde baseiam-se em um processo de controle das queixas dos pacientes indígenas e transformadas em problemas subjetivos de explicação psicossomática.
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Epistemologia vegetal: agência e circularidade das plantas de cura e cuidados no Ver-o-Peso
Simone Lopes Silva (UFPA)
Resumo: Este estudo busca compreender a agência e circularidade de plantas de cura e cuidados físicos e espirituais, no setor de ervas do Ver-o-Peso, na cidade de Belém, no estado do Pará, uma das mais antigas e tradicionais feiras da América Latina. Considerando que esses processos estabelecem uma relação intima entre humanos e vegetais a partir de sistemas de conhecimentos de povos da Amazônia, associados a medicina tradicional e ao universo natural das plantas, buscam solucionar questões de saúde, de modo que pessoas que possuem experiência com este tipo de medicina desenvolvem práticas espirituais, que dialogam com a agência vegetal. Contudo, a relação humana com as plantas tem sido motivo de especulação capitalista, geralmente encaradas e instrumentalizadas para os interesses humanos, mas de pouco ou nenhum interesse sobre as espécies de plantas que atuam com seus hábitos, diversidade e presença na vida das pessoas. As plantas têm histórias de vida e participam do cotidiano da cidade, desde as mangueiras que ladeiam suas avenidas aos frascos de garrafadas comercializadas nas feiras, dando seu próprio testemunho existencial, por meio de suas sombras, seus frutos, suas raízes e suas capacidades de cura. As bases teóricas metodológicas desta pesquisa buscam um diálogo etnográfico e interdisciplinar com que expressamente vem sendo chamado de epistemologia vegetal, ou virada vegetal (COCCIA, 2018) que considera as plantas criadoras do mundo, interferindo, modificando, interagindo e organizando a vida dos seres humanos. Em seguida, contribuindo, as Vozes Vegetais (OLIVEIRA et al., 2022) abordando a relação entre seres humanos e plantas, com palavras convidativas para ouvir, aprender e vegetar com as plantas: semear a terra, raízes da diversidade, sociabilidades vegetais e colher frutos, considerando a inteligência, sensibilidade e capacidade de comunicação das plantas (MANCUSO, 2019) entre si e nas suas relações com os seres humanos. De modo que, descentralize da ideia da natureza, em especial os agentes vegetais como mero instrumento humano, e sim atores protagonistas de histórias, promotores de uma diversidade epistêmica. Palavras-chave: Agência. Circularidade. Cuidados. Plantas. Amazônia.

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Cosmopolíticas Quilombolas: corpo, terra e os territórios multiespécie
Sonia Regina Lourenço (UFMT)
Resumo: Esta comunicação é resultado das etnografias realizadas com os coletivos quilombolas em Chapada dos Guimarães e Poconé, no estado de Mato Grosso nos últimos 11 anos. Pretende-se descrever como a cosmologia destes coletivos negros se constitui de composições de zonas ontológicas de coexistências de seres humanos e não humanos, criando posições cosmopolíticas de enfrentamento ao geontopoder que insiste em desvitalizar os territórios quilombolas. Os saberes de mulheres e homens quilombolas sobre o corpo, a terra e os territórios, incluem fluxos de vida nas roças, jardins, rios, serras e bocainas, delineando a paisagem e os modos de habitabilidade entre as multiespécies. Os quilombos são mundos relacionais de resistência às devastações produzidas pela geopolítica e o geontopoder, especialmente do agronegócio que afeta os territórios quilombolas e de povos indígenas no centro oeste brasileiro. Desde que a população africana deixou de ser escravizada e os povos originários sobreviveram ao extermínio do poder colonial, os territórios destes coletivos se tornaram verdadeiros refúgios de humanos e outros seres não humanos. Os quilombos decidiram ficar com o problema (Haraway, 2023), desde que passaram a existir na América Latina, retomando suas terras em modos de existência sempre marcados por tempos de urgências, tentativas de extermínio, recriando-se contra as práticas econômicas e políticas de exclusão e genocídio. Os quilombos existem como cosmopolíticas desestabilizadoras do Estado-nação, e buscam se colocar de modo contra-colonial diante das variações do racismo que atingem seus modos de vida. O que se quer dizer com a designação cosmopolíticas quilombolas”? De um ponto de vista especulativo, seguimos as ideias formuladas por Stengers (2007, 2010, 2015, p. 446) e Debaise e Stengers (2016) para pensar os modos de existência nos quilombos como uma das situações concretas que nos provocam a abandonar teorias generalizantes da modernidade que tentam encapsular e situar as alteridades de humanos e de outros seres tais como divindades, espíritos, visagens, ancestrais sob o crivo do multiculturalismo ou encerrar mundos relacionais em oposições entre real e imaginado, ficção e realidade. Inspirada pela teoria da bolsa ficção de Úrsula K. Le Guin, a etnografia levou a sério as relações entre as plantas, os corpos, as casas, as benzeções e os mutirões como micropolíticas contra-o-Estado (Clastres, 2003) na composição de seus mundos.