Grupos de Trabalho (GT)
GT 060: Experimentos de Ontologia: formas de mundialização desiguais e etnografia como atuar criativo.
Coordenação
Marisol de la Cadena (University of California, Davis), Lucas da Costa Maciel (Memorial University of Newfoundland)
Resumo:
A América Latina é assolada pelo extrativismo, uma prática violenta que esgota e transforma vidas humanas e outras-que-humanas em matéria-prima para a expansão do capital, destruindo os conjuntos mais-que-humanos que conformam territórios de diferença. Chamamos esses processos de formas desiguais de mundialização. No entanto, essa violência não conseguiu anular as possibilidades que surgem do emaranhado entre mundos e que permitem reconhecer não apenas os diversos conjuntos de realidades, mas a aliança, a interferência e a guerra entre eles.
A ontologia como método antropológico compartilha o interesse pela diversidade de mundos. Na América Latina, ele enfatiza a dimensão conflituosa das equivocações, mostrando a criação e atualização de realidades como processos operados em campos de disputa. No entanto, como fazer com que a metodologia vá além do mapeamento de conflitos assimétricos e equivocações? A pesquisa ontológica é capaz de incidir sobre os impasses que mapeia? Como criar formas de se referir a isso etnograficamente? Neste GT exploraremos essas questões, pensando caminhos para a prática etnográfica diante da violência que se acumula, do colonialismo que insiste em não ceder e dos perigos do ressurgimento da ultradireita totalitária, etc. Queremos que este seja um espaço criativo para reposicionar nosso compromisso com a autodeterminação ontológica dos povos, convocando uma antropologia afetada pela ontologia a se engajar no trabalho criativo em prol da autonomia.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Alyne de Castro Costa (PUC-RIO), Alyne de Castro Costa (PUC-RIO)
Resumo: Nos últimos anos, a noção de ontologia vem sendo mobilizada em teorias e análises oriundas de campos do
saber outros que a filosofia. Capitaneada pela antropologia, a chamada virada ontológica expressa o
compromisso de tomar os modos de vida dos povos nativos como realidades legítimas, em vez de meras
representações culturais. Contudo, para estar à altura desse compromisso com o pluralismo ontológico,
bastaria apenas reconhecer a legitimidade desses outros mundos? Como evitar que tal pleito não se converta
numa exigência abstrata por respeito a esses outros, sem nos deixar afetar pelas diferenças entre nossos
mundos? Nesta comunicação, abordarei alguns aspectos que me parecem ainda pouco explorados dessas novas
articulações entre ontologia e política, as quais se tornam ainda mais cruciais diante da ameaça
representada pela crise ecológica global. Mais especificamente, proponho que, para ativar o potencial
político do pluralismo ontológico reivindicado, é preciso entender compromisso em termos de mutualidade e
interdependência: a construção de um mundo onde caibam muitos mundos diz respeito tanto à multiplicidade de
mundos quanto à unidade que encapsula tal multiplicidade ou melhor, o mundo comum que emerge do
reconhecimento da interdependência entre os diversos mundos.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Amiel Ernenek Mejía Lara (UFRB)
Resumo: O que se precisa para se dar conta dessa doença, dessa podridão da humanidade? Não se precisa uma
religião, ou uma ciência, ou uma ideologia. Basta olhar, escutar, sentir. Com a frase, o Subcomandante
Moises problematiza a nova convocação dos indígenas guerrilheiros do México para atravessar a tormenta e
chegar ao outro lado. Uma reflexão desses maias onde a tormenta é à inconformidade da natureza (
) sua a
forma de protestar, cada vez mais forte e cada vez mais terrível, e a experiência sensível da catástrofe
ambiental a maneira de criar um lugar-comum. Mas a tempestade, na reflexão deles, esta dada na propriedade
privada: centro do capitalismo e colonialismo ocidental, opondo-se à catástrofe com sua proposta de
estabelecer extensões da terra recuperada como do comum. Ou seja, sem propriedade, se posicionando assim
num conflito ontológico que contorna a destruição [que] a natureza vai cobrar ao recuperar a terra a do
capitalismo.
Mas essa posição dos Zapatistas, com grande visibilidade, coincide com as de outros movimentos indígenas do
continente menos conhecidos que também se contrapõe, nesse grande conflito ontológico, as políticas de
morte, compartilhando a importância de responder, sob categorias próprias, a guerra entre as relações
impostas pelos não indígena e as relações de humanos, não humanos e mais-que-humanos impedidas pela
propriedade privada, questões que trabalharei procurando um diálogo interepistêmico que acompanha a reflexão
Zapatista e as de duas lutas indígenas junto as quais tenho pesquisado.
Uma delas é a luta pela retomada do território no Nordeste Indígena brasileiro, em particular dos Tupinambá,
a qual, além de ser uma luta contra as fazendas por terras/recursos, é também um embate ontológico para
retomar as relações cerceadas pelas propriedades privadas onde foram capturadas agências de tipos e tempos
diversos que ao voltam à relação, quando as terras são recuperadas pelos indígenas, trazem uma plêiade de
mais-que-humanos que encorajam a abolição dos latifúndios para retomar espaços para humanos, animais,
plantas e outras agências não vivas.
A outra reflexão é sobre a luta dos Nahuas do Ocidente mexicano pela comunidade a qual há seculos se
contrapõe ao regime colonial, ao regime das fazendas ou ao regime da propriedade coletiva vinda da reforma
agraria da Revolução Mexicana. Formas de propriedade que, mesmo com relações diferentes entre elas, se opõem
ao lugar-comum almejado na ideia de comunidade, a qual não é apenas uma forma de organização social, mas
também uma categoria que engloba os tratos e os acordos coletivos deles com forças não humanas, como ventos,
águas e donos, que garantem a continuidade da comunidade mediante a perpetração de ciclos como o do clima ou
do milho.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Anai Graciela Vera Britos (USP)
Resumo: Neste trabalho que está vinculado à minha pesquisa para a tese de doutorado, apresento conceitos e
ideias surgidas a partir de uma série de intercâmbio de reflexões que venho realizando junto a um pensador
indígena do povo Guarani Mbya sobre plantas, Mata Atlântica, língua e povo Guarani. Através das imagens e
estéticas vegetais contidas nas narrativas, pretendo trazer a originalidade e a relevância dos próprios
relatos e análises deste pensador sobre a cosmologia de seu povo. Os conceitos, reflexões e traduções
guaranis servem aqui como impulso para debater língua guarani e tradução, analisando as formas particulares
que os indígenas traduzem seus mundos à sociedade não-indígena e propor alternativas à tarefa da tradução de
mundos (e não só de palavras) no âmbito de uma antropologia implicada (cf. Albert, 1995). Tendo como foco
essa proposta guarani, tenho a intenção de propor uma experiência de encantamento com os brotos e os
vegetais para compreender não só a poética vegetal do mundo guarani, mas também a sua crítica à noção
ocidental de floresta e Mata Atlântica. O pacto etnográfico que venho construindo com este pensador se
constitui assim em uma tentativa de construção de uma proposta cosmopolítica para traçar pontes entre
universos culturais diferentes, levando a sério o pensamento indígena, que nos exige adquirir consciência
para germinar outros modos de existir.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Anderson Jamar Neves Maciel (UFRGS)
Resumo: O presente trabalho acompanha histórias de pesquisadores indígenas da Plataforma de Antropologia e
Respostas Indígenas a Covid-19 (PARI-C) durante o processo emergencial de vacinação contra Covid-19. Essas
histórias, registradas durante entrevistas e rodas de conversas realizadas no âmbito do estudo de caso sobre
vacinação dos povos indígenas no Brasil no ano de 2021, permitem entrever um dissenso histórico sobre um
equívoco entre o paradigma biomédico que formatam as políticas de atenção à saúde indígena e noções
indígenas de saúde. Ao descrever esse conflito, acentuado pelas políticas negacionistas e de retração de
direitos do Governo do ex-Presidente Jair Bolsonaro (2019 - 2022), busco indicar como problemas sociais
entre mundos incomensuráveis podem ser pensados a partir de intervenções heterogêneas e assimétricas que
propiciam a construção de uma ética específica, localizada e não normativa para a promoção da saúde. Nota-se
que em termos biomédicos, a vacina visa assegurar um futuro físico e biológico contra o novo coronavírus, no
entanto, a forma como os pesquisadores indígenas se relacionam com, e por meio, do imunizante, dá a ver
outros modos de construção de futuros que não se restringe a um corpo físico e biológico, mas envolve a
relação com uma multiplicidade de seres visíveis e invisíveis que compõem o mundo ameríndio. Nesses termos,
o problema social que gravita em torno do processo de vacinação contra a Covid-19 entre os povos indígenas
escapa ao paradigma biomédico de saúde. O que essas histórias nos indicam são caminhos possíveis para a
construção de futuros mais que biológicos, no qual o direito ao acesso à vacinação, a garantia dos direitos
aos territórios indígenas e o reconhecimento dos diferentes modos de vidas dos povos indígenas são elementos
indissociáveis para a promoção da saúde entre os povos indígenas. Nesses termos, argumenta-se que o problema
social que gravita em torno do processo de vacinação contra a Covid-19 entre os povos indígenas envolve não
apenas a proteção de um corpo físico e biológico, mas uma multiplicidade de relações pela qual emergem
noções de saúde, ambientes e corpos.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Beatriz Ribeiro Machado (UNICAMP)
Resumo: Como é viver em meio às ruínas do que foi sua comunidade? Essa era a pergunta que ecoava enquanto,
pela primeira vez, caminhei mergulhada no silêncio perturbador dos destroços de casas repletas de lama em
Paracatu de Baixo, subdistrito de Mariana, MG. Em meio à parte central da comunidade, tudo o que se vê são
escombros e ruínas, fruto dos impactos de megaempreendimentos e violências impostas às comunidades atingidas
que foram deslocadas devido ao rompimento da barragem de Fundão da mineradora Samarco (Vale/BHP). Mediante o
maior desastre minerário da história, o caminho a ser trilhado nos escombros daquilo que foi Paracatu de
Baixo, à luz da etnografia, é o de acompanhar os processos cotidianos de uma família composta pela matriarca
e o patriarca, pais de 11 filhos, vítimas que retornaram para sua casa no território (ar)ruinado. Além dos
que voltaram, alguns filhos optaram por ficar em Mariana. Em meio ao desastre socioambiental, a empresa
responsável, Samarco S.A, passa a reger a autonomia das famílias atingidas através da Fundação Renova. Nesse
cenário, o objetivo central é compreender, a partir destas redes familiares e campos sociais construídos, o
que leva alguns membros das famílias atingidas pelo desastre a retornarem e optarem por viver em um
território devastado e condenado pelo rejeito de metais pesados? E como se dá esse cotidiano em territórios
arruinados? Por fim, esta etnografia trata das relações entre o cotidiano, as agências e reinvenções na vida
de famílias em meio aos escombros e o processo em curso de arruinamentos, protagonizados pelos
megaempreendimentos que devastam o sul Global.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Cecilia Cavalieri (PUC-RIO)
Resumo: Assim como a plantation, a Lactation é um sistema de exploração colonial, imperialista, que se estrutura
sobre quatro patas: 1) grandes latifúndios, 2) monocultura, 3) trabalho escravo e 4) exportação para a
metrópole. Não por acaso, somos a única sociedade a desenhar, de certo modo, a plantation láctea, a
Lactation, como um geoglifo performado por mamíferas bovinas. Lactationoceno, portanto, é uma época
geológica determinante para o modo de vida mamífero e que data da criação do mito da Via Láctea, começando
nas estrelas, passando pelas amas de leite, vacas, cabras e ovelhas, até chegar nos grãos [soja, aveia...].
Seguindo a proposição de Danowski e V. de Castro em Há Mundo por Vir... [2014], de que o regime semiótico do
mito, indiferente à verdade ou falsidade empírica de seus conteúdos, instaura-se sempre que a relação entre
os humanos como tais e suas condições mais gerais de existência se impõe como problema para a razão,
podemos falar da Via Láctea enquanto mitofísica dado que 1) essa metafísica industrial em relação
extrativista com a substância é alimentada e fortalecida pelo negacionismo da realidade biofísica dos leites
humanos e outros-que-humanos e 2) o comportamento da substância leite e das operações de negação da
realidade levam à constatação de que ambos, leite e negacionismo, são hoje commodities em torno das quais
orbita boa parte da indústriam láctea. Em minha tese de doutorado Notas metafísico-metabólicas de uma
experiência mamífera [2022], parto de uma análise da noção de leite para produzir uma fratura epistêmica no
seio da experiência mamífera ocidental, questionando os persistentes extrativismos, invisibilizações e
lacunas na história do aleitamento humano e outro-que-humano, a partir de perspectivas contracoloniais,
feministas e científicas: Leite não é produto, é um produzir-com. Especular, nesse contexto, sobre
materfuturismos, é pensar-com a presentificação da experiência do cuidado da matéria que deriva do latim,
mater, e que quer dizer, literalmente, mãe e que implica em uma maternagem mais-que-humana e em uma
experiência de parentesco que complexifica e engendra outra sensibilidade diante da afirmação Todo leite é
leite materno. Sujeita oculta da palavra leite, a vaca segue como produto de uma fantasia mítica e símbolo
da questão biocapitalista. Este resumo se expande em encontro com o projeto Making Cow, de Cadena, o qual
pensa e promover uma ética da vida a partir da busca etnográfica de práticas de fabricação de vacas. A
questão do leite não atravessa apenas essa relação interespécies, perfurando a falaciosa divisão
homem/animal, mas também é atravessada por questões de raça, gênero e sexualidade baseadas em uma taxonomia
humanista que faz do tratamento mercantil da espécie um commodity.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Eduardo Santos Gonçalves Monteiro (Funai)
Resumo: Ao longo das últimas décadas, a antropologia tem evidenciado certa dimensão política e poética do
processo de pesquisa, o que se desdobrou numa ampla reflexão sobre as especificidades contextuais
significativas no processo etnográfico, as parcialidades inerentes ao saber científico e a dinâmica complexa
de estabelecimento de acordos locais de pesquisa e de redes de relações com novos atores emergentes. Ao
mesmo tempo, a emergência atual do conceito de Ontologia suscita um campo de reflexões e contribuições para
a crítica política e epistemológica da disciplina antropológica. Nessa esteira, e buscando refletir sobre
modos de relação, comunicação e ação possíveis em meio ao reconhecimento de certa incomensurabilidade entre
mundos, apresento questões preliminares relacionadas a possíveis emaranhamentos, sobreposições e
contradições que emergem do encontro dos campos da antropologia, do indigenismo e da antropologia indígena.
Para tanto, pretendo refletir sobre minha atuação como pesquisador e servidor público da Funai junto ao povo
Auwẽ (Xavante) no leste mato-grossense. Buscarei descrever tensões, riscos e potencialidades de
uma coexistência delicada inerente à posição de pesquisador-servidor, corporificada neste encontro entre
estrutura institucional e engajamento pessoal; entre saberes - científicos ou não -, ação tecnopolítica e
alianças cosmopolítica estabelecidas em meio à divergência. Descrevo, por um lado, a experiência como
funcionário da área de gestão ambiental e territorial é cotidianamente confrontada com marcas persistentes
do problemático histórico de relações entre Funai e os Auwẽ, atravessado por projetos
desenvolvimentistas e por relações assistencialistas. Por outro, aponto como é possível vislumbrar alianças
entre agências estatais e os Auwẽ que, ainda que profundamente tensionadas e sujeitas a riscos de
captura, mostram-se fundamentais na luta indígena contra ameaças ao Cerrado centro-brasileiro. Articulada à
está discussão, pretendo tecer reflexões a respeito de uma antropologia indígena, a partir da discussão de
trabalhos e da ação cosmopolítica de antropólogas indígenas norte-americanas e brasileiras e de minha
própria colaboração com antropólogos auwẽ. Argumento que a razão de ser deste campo está
estreitamente relacionado a uma pragmática cosmopolítica - e, talvez, extra-acadêmica - fundamental para a
constituição e, sobretudo, para a defesa de mundos. Pretendo, com isso, criar ressonâncias entre estes
campos que permitam aventar questões sobre maneiras efetivas de extrapolar o mapeamento abstrato e
conceitual de conflitos e controvérsias e de reencontrar a ação cosmoprática, assumindo posições de sujeito
com responsabilidades éticas sobre regimes de existência específicos.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Fernanda Borges Henrique (IFCH Unicamp)
Resumo: Os Kiriri do Acré habitam uma terra no Sul do estado de Minas Gerais desde 2017 quando deixaram a aldeia
Kiriri de Barra, localizada no Oeste da Bahia, em busca de um lugar em que pudessem dar continuidade em suas
vidas. O deslocamento teve como estopim um conflito familiar entre irmãos, no entanto foi justamente o
desejo de ter uma terra em que pudessem plantar, trabalhar, praticar a ciência e o toré, e viver como
consideram possível que fez com que dezesseis famílias seguissem o cacique Adenilson até o Sul de Minas
Gerais, mais de mil e seiscentos quilômetros distantes de sua antiga aldeia. A ocupação da terra realizada
por essas famílias foi aceita pelo verdadeiro dono do lugar, um velho índio tapuia, que apareceu na ciência,
e com quem os Kiriri negociaram sua estadia no lugar. Por serem índios também, as famílias obtiveram a
permissão do velho índio para ali estabelecerem morada. No entanto, os Kiriri também precisam lidar com
outra esfera de luta para permanecerem na terra desejada. Os sessenta hectares ocupados por essas famílias
têm como seu proprietário legal o estado de Minas Gerais, com quem os Kiriri travaram intensas negociações.
Em muitas dessas reuniões de negociação estive presente como antropóloga, nossa antropóloga, como algumas
vezes me apresentaram aos agentes estatais. Em outras ocasiões também fui convidada pelo chefe da aldeia, o
cacique Adenilson, e sua esposa, a também liderança Carliusa, a compor mesas em eventos acadêmicos para
falar da situação da aldeia. Em todas essas ocasiões, o saber científico produzido pela antropologia fora
solicitado como uma espécie de prova para dizer que aquelas pessoas eram indígenas que já haviam acordado
sua estadia com o verdadeiro dono daquele lugar. Nesse sentido, sob os olhos da ontologia como método, este
trabalho tem como objetivo discutir os alcances da etnografia para pensar as equivoções geradas a partir do
encontro de mundos, neste caso pensando especificamente no que terra pode significar para os Kiriri e o que
o mesmo termo quer dizer ao estado de Minas Gerais.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Igor Luiz Rodrigues da Silva (FASVIPA)
Resumo: Opará rio mar, é o nome originário dado pelos povos Tupis-Guarany que habitavam as margens e as águas do
rio que comumente e desde 1501 se convencionou chamar de rio São Francisco. O maior rio em extensão
totalmente brasileiro surge no território de Minas Gerais e percorre vastos biomas e paisagens até desaguar
no Oceano, entre de Alagoas e Sergipe. Ao longo de mais de 2 bilhões de anos, o velho rio rasgou as
entranhas do mundo, transformou paisagens, viu seu poder moldar vidas, relações. Os ventos, as erosões,
secas e cheias, sedimentos, espécies variadas, seres mais que humanos, povos originários, faziam e fazem
parte de sua constituição, de suas modelagens lenticas, sem grandes rupturas e aprisionamentos. Porém, nos
últimos 500 anos, ele se viu estancado, preso por construções imensas de barragens, canais de concreto,
pedra e ferro, fruto processos coloniais, industriais, da transformação de suas águas em objeto de
apropriação pelo capital. Ao passo que essas catástrofes humanas, de tomadas de territórios originários iam
sendo ocupados pela domesticação de paisagens, corpos humanos e mais que humanos, resistências e
contradomesticações ajudaram a construir novos sentidos e significados das comunidades ribeirinhas ao longo
do rio. Neste sentido, este trabalho, inspirado na tese de doutorado defendida em 2022, cujo título é: Há um
rio que vive e navega em meus sonhos, um Preto Velho me contou: memórias, paisagens e práticas do São
Francisco, nas ruinas do Antropoceno, tem o objetivo de narrar, a partir de minhas próprias
experiênciações, memórias, práticas e relação com o rio, o que venho chamando de antropologia ribeirinha,
imersa nos movimentos das marolas, das vazões e correntezas de um rio múltiplo e habitado por relações
multiespecies, bem como de memórias fluidas, simbióticas produzidas no seio das minhas famílias de
barqueiros, canoeiros, pescadores, tornando a relação ribeirinho e antropólogo, sem divisões, sem
hierarquizações, sem conflitos científicos e metodológicos. Para além da produção de conhecimento moldado
com base em conceitos ocidentais e canônicos, estabeleço como método e metodologia, o encontro com sonhos,
com habilidades e técnicas entrelaçadas no meu corpo, na minha escrita vinculada ao mergulho, nado, pesca,
canoagem, desde a minha infância até os dias atuais. Bem como os encontros, diálogos, aconselhamentos com
modos particulares de se relacionar com as entidades, seres, orixás, cânticos, ritos e incorporações, como
sendo um iniciado na Umbanda, para assim para que a vida do rio, não seja ela mesma, pensada e apropriada
continuamente pelas visões de mundo coloniais e para que a antropologia não seja parte desse processo brutal
de domesticação dos mundos e conhecimentos.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Izabela Santarelli Ferraz (UFMG)
Resumo: Assimilar a existência de múltiplos mundos é o que nos faz descobrir, desde o concreto, a história
aberta postulada por Walter Benjamin (2005). A partir de realidades outras, nos deparamos com o possível,
aquilo que questiona o ilusório sentido único da história. Vislumbrar esses possíveis exige de nós lidarmos
com o desconforto produzido pelo fato de que a história não possui uma razão, tampouco um sentido linear de
progresso: os sujeitos a fazem, com suas imperfeições inerentes à condição de humanidade. No atual contexto,
a crise que transcorre suscita diferentes problemas e efeitos a distintos sujeitos, demarcando, assim, um
tempo propício para questionar os pressupostos sob os quais acreditamos viver, possibilitando, então, uma
reinvenção política. Se a crise afirma que não existe mais história, que nada fazemos, e seria a mão
invisível esse sujeito oculto, a contradizemos, nos colocando enquanto sujeitos histórico-políticos no
tempo-de-agora de Benjamin (2005), carregado de possibilidades subversivas.
Além de perceber as potencialidades quando compartilhamos sentidos com os outros, Marisol de la Cadena
propõe dar uma chance política ao equívoco (2018, p. 112), reconhecendo espaços de reivindicações num mundo
com muitos mundos, ontologicamente distintos. Aqui, propomos pensar também em outros pressupostos
necessários para fazer possível a cosmopolítica de Isabelle Stengers (2018), reclamando, como proposição e
aposta pois ela não nos promete nada, a reunião de sujeitos que levam à arena política suas cosmovisões.
Lidamos, assim, com outro desconforto, abrigado desde o locus epistêmico do qual partimos: ao mesmo tempo,
pretendemos não somente o fazer daqueles diálogos possíveis, mas aceitar que não vamos entender tudo ou até
mesmo nada daquilo que os outros nos dizem enquanto representantes de mundos outros, mas nem por isso
deixamos de tentar.
Partimos, então, do pressuposto de que os problemas complexos não vêm acompanhados de respostas. Quando nos
propomos a dialogar, aceitamos que tudo é mera tentativa no fazer histórico-político profano. Qualquer ação
humana não passa, assim, de uma aposta, mas exatamente aí reside a possibilidade de manter vivos os
múltiplos mundos. No entanto, nem tudo vale: apostamos naquelas ações que são, por sua vez, potencializadas
pela reunião dos sujeitos políticos (Stengers, 2018). Somente a reunião do nós com os outros é capaz de
trazer à luz do dia as reivindicações passadas e presentes que o tempo-de-agora gesta, fazendo nascer o
futuro. Para isso, nossa proposta passa pela hipótese de que reconhecer os outros como sujeitos políticos
requer que os reconheçamos também enquanto sujeitos históricos, fazendo com que a proposta benjaminiana de
escovar a história a contrapelo nunca tenha sido tão imperativa.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
João Lucas Moraes Passos (Ministério dos Povos Indígenas)
Resumo: Em abril de 1984, um grupo de cerca de 200 guerreiros da aldeia de Gorotire, aldeia ao leste da Terra
Indígena Kayapó, resolveu empreender uma expedição guerreira a um garimpo localizado no interior do seu
território. Acamparam, realizaram seus rituais guerreiros durante a noite e, no amanhecer do dia, irromperam
na cabeceira da pista de pouso, principal ligação entre o garimpo e as cidades próximas. Hoje clandestino, o
garimpo de Maria Bonita era, na época, comandado pelo próprio Estado brasileiro, que tinha a exclusividade
da compra do ouro coletado ali. Os guerreiros de Gorotire ocuparam o garimpo e disseram que sairiam apenas
se o governo atendesse a duas demandas: a demarcação de seu território e o aumento da porcentagem dos lucros
da exploração de ouro que competia aos Gorotire. Essa última demanda pode a princípio contrastar com a
imagem de guardiões da floresta construída por algumas lideranças mebêngôkre, mais destacadamente líderes
como Cacique Raoni, Tuíre e Paulinho Paiakan.
Esse trabalho se propõe a discutir as formas de mundialização mebêngôkre nessas frestas, ou como algumas
comunidades mebêngôkre fazem seu mundo em um contexto marcado pela presença em intensidade variável há mais
de quatro décadas de invasores em seu território, especialmente garimpeiros ilegais. Esse emaranhado também
inclui as relações e divergências políticas com outros grupos mebêngôkre, que muitas vezes se traduzem
inclusive na própria relação com o garimpo.
A TI Kayapó que, juntamente com outras 5 TIs contíguas, compõe o maior território indígena demarcado do
planeta é terra indígena brasileira mais afetada pela exploração de ouro. Essa exploração se concentra
especialmente na porção leste do território, área de domínio do grupo denominado Gorotire, o primeiro grupo
a estabelecer relações pacíficas estáveis com os não indígenas, ainda na década de 1940. Desde 1970, o
garimpo de ouro está presente no território gorotire, mas os últimos anos testemunharam uma destruição sem
precedentes. O avanço da tecnologia da destruição, aliado ao aumento sucessivo do valor do ouro no mercado
internacional, causaram na última década uma mudança brusca de uma garimpagem mais artesanal para um
maquinário devastador. Nesse cenário, marcado pelas gigantescas crateras do garimpo, os Gorotire tentam
constantemente construir seu mundo em um emaranhado de exploração e conflitos com os não indígenas e com
outros grupos mebêngôkre. Isso é especialmente interessante se pensarmos que a forma de mundialização
característica dos Mebêngôkre é marcada ao mesmo tempo por uma constante busca de partes mais-que-humanas
para uma produção ritual da humanidade (nomes, cantos, indumentária) e um embate político entre diferentes
grupos mebengokre para uma produção social de coletivos humanos.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
José Miguel Nieto Olivar (USP)
Resumo: Esta apresentação conecta a discussão sobre política ontológica com o campo da saúde coletiva no Brasil.
O campo da saúde e as disputas entorno do cuidado compõem de forma ativa processos vigentes de mundialização
desigual. Ao extrativismo dominante se articulam processos intensos de adoecimentos e expulsões, bem como
os aplainamentos ontológicos próprios da velha biopolítica. O projeto-rede Cosmopolíticas do Cuidado no
fim-do-mundo: gênero, fronteiras e agenciamentos pluri-epistêmicos com a saúde pública, produz informação
sobre coletivos sociais que sempre ocuparam posições de necessitados em saúde, de vulnerabilizados e
carentes, para evidenciar como sustentam saberes e mundos capazes de disputar o Mundo, de contra-domesticar
o Estado, e de colocar em ação formas interessantes -e conflitivas-, de cuidado e saúde. O projeto baseia-se
em relações de aliança com trabalhadoras sexuais, mulheres indígenas amazônicas, mulheres vítimas do sistema
prisional, travestis em regiões de fronteira e agricultoras urbanas pobres que plantam nas ruínas. O
trabalho etnográfico com estes coletivos mostra as distâncias,
equivocações e trânsitos político-ontológicos entre o que pode ou não pode ser humano, humanizado ou
humanizável, o que deve ou não caber no Mundo, na Saúde, no Saber; o que pode ou deve ser cuidado, as
presenças e relações que compõem os
mundos, corpos e territórios. Começamos a evidenciar também alianças, confluências e distâncias transversais
entre estes coletivos e destes com o campo da saúde. Por outro lado, evidenciamos como os campos acadêmicos
da saúde coletiva e da antropologia são interpelados por demandas de maior justiça epistêmico-ontológica a
partir da presença de coletivos antirracistas, contra-coloniais, transfeministas, etc.. Percebemos a
necessidade de reflorestar os repertórios teórico-metodológicos da antropologia. Apresentamos desafios
metodológicos (teóricos, éticos e políticos) para a etnografia, buscando novas proposições e revisitando
importantes proposições latino-americanas (Freire, Fals Borda e outres). Este repertório emergente ajuda a
situar disputas e tensões no campo da saúde na linha de conflitos político-ontológicos descritos no Brasil e
em outros contextos latino-
americanos. Ele nos mostra como, a pesar de seu compromisso com os direitos humanos, de toda sua tradição
democrática e progressista, de todas as aberturas à participação social e à humanização, o campo da saúde
coletiva/pública tem ainda
em aberto o desafio de levar a serio outros modelos de cuidado, a possibilidade da pluriversalidade, a
exuberância onto-epistêmica das suas margens externas, os limites do excepcionalismo humano, entre outras
coisas.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Leon Patrick Afonso de Souza (UFG)
Resumo: Neste trabalho, apresento algumas observações sobre a crise ecológica percebida, vivida e sentida pelos
ribeirinhos e os mundos existentes com o rio São Francisco, na região de Buritizeiro e Pirapora, em Minas
Gerais: com as enchentes, a temperatura e oxigênio das águas, os peixes, as plantas, as pedras, a cachoeira,
a piracema. Os contratempos, que de acordo com um pescador é um desajuste profundo no tempo do calendário,
no tempo climático e entre esses dois, estão acontecendo porque desde a colonização o rio São Francisco vem
sendo ocupado por formas violentas, que na pesquisa identifico como um habitar colonial ribeirinho,
atualizado constantemente pelo poder exercido sobre todas as formas de existir. Os contratempos não são uma
ameaça ou aquilo que pode chegar com uma crise ecológica futura, muito menos com ajustes para uma transição
energética. Como veremos, eles estão acontecendo como resultado da instalação histórica de infraestruturas
de energia elétrica, mineração, irrigação e dos quebra-cabeças da plantation sobre os mundos do rio São
Francisco. Desde que iniciei a pesquisa de mestrado, em 2022, alguns encontros (com pescadores, vazanteiro e
com um artista) me instigam a pensar que outras formas de resistência e enfrentamento ao habitar colonial
ribeirinho emergem diante dos contratempos, pois os ribeirinhos estão construindo alianças estéticas,
políticas e ontológicas para conjurar a crise ecológica. No reencontro com os mundos do rio, já que nasci em
Buritizeiro e vivi lá até os dezoito anos de idade, tenho aprendido sobre como criar, viver e resistir entre
essas mudanças, mas também sobre as possibilidades para uma antropologia ribeirinha, que esteja cada vez
mais atenta e sensível às alianças entre formas de existir que compõem os mundos ribeirinhos.
Palavras-chave: Cosmopoéticas; crise ecológica; rio São Francisco; ontologias; antropologia ribeirinha.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Lucas Carvalho de Jesus (UFMG)
Resumo: Em um contexto de colapso climático, expansão urbana, construção desenfreada de edifícios e
infraestruturas públicas e privadas, urge pensar em outras possibilidades de habitar. Os territórios
indígenas e suas tecnologias ancestrais são reconhecidos como alternativas para se pensar outros modos de
estar no mundo de forma compartilhada com muitos seres, ao contrário dos modos predominantes nas cidades
brasileiras modernas. A partir da ideia de Marisol de la Cadena do não somente, aprendi a expandir
a prática da tradução acolhendo a multiplicidade e as diferenças percebidas quando estamos entre
mundos. Em visita recente à Terra Indígena Xakriabá, conversávamos sobre o que era arquitetura e não
chegávamos a um acordo. As definições não estavam erradas. Mas não
eram só aquilo. O que talvez possamos chamar de arquitetura Xakriabá não é a mesma coisa
que chamamos de arquitetura na universidade ou em outro lugar. Não eram as mesmas
práticas, eram diferentes. Esse processo de tradução feito com mal-entendidos
só é um problema se a nossa intenção for que o entendimento seja
único. A equivocação, desse modo, não é algo a ser
evitado. No território Xakriabá, arquitetura também era o processo coletivo de
construção das casas tradicionais e suas reverberações ou
não nas práticas construtivas atuais, as lutas e conquistas pela
diferenciação do espaço escolar indígena, as práticas de
retomada que geram os diversos espaços comunitários, etc. Mas para o povo
Xakriabá, não. O que chamávamos de arquitetura, para eles, era a vida cotidiana, parte
da ontologia Xakriabá. Talvez o conceito de arquitetura estivesse em germinação, ali naquele encontro e
diálogo com a universidade. Aprendemos juntos que habitar o território exige constantes
negociações cosmopolíticas com as águas, os bichos, a terra, os tempos, as pessoas e todo o mundo ontológico
Xakriabá. A presente proposta pretende, a partir desses aprendizados etnográficos, imaginar formas
compartilhadas de fazer arquitetura, no diálogo entre a universidade e o território Xakriabá, ancorada em
algumas questões: O que as práticas espaciais Xakriabá podem nos ensinar sobre
arquitetura? Como considerar as práticas tradicionais nos processos de
aproximação para que o conceito e a prática de arquitetura que chegam ao
território Xakriabá não sejam os mesmos que discordamos na cidade? Como pensar
processos, práticas e pesquisas compartilhadas de arquitetura a partir dos encontros com os povos
indígenas?
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Mario Blaser (MU)
Resumo: La visualizacion de los equivocos que ocurren en el encuentro entre formas de hacer mundos ha devenido
en una movida analitica regular. En un terreno donde divergencias ontologicas eran negadas, dicha movida era
crucial. Sin embargo, el terreno ha cambiado un poco, en muchos ambitos la divergencia ontologica ha pasado
de ser negada a ser afirmada (a veces con bases bastante endebles). En este contextp se hace necesario
re-enmarcar la tarea:?cual es el sentido hoy de marcar las divergencias ontologicas?
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Patrik Thames Franco (UNEMAT)
Resumo: Quando se discute segurança pública no Brasil, é comum a percepção de que a polícia é "que mais mata e
morre". Por um lado, há as pessoas afetadas pela letalidade policial especialmente os jovens negros e
pobres; por outro, os agentes enfrentam um sistema hierárquico que coloca praças sob o comando dos oficiais,
dentro de uma estrutura conhecida como "militarismo". Eles também lidam com diversas condições de sofrimento
e doença, assédio, autoritarismo, violência e, frequentemente, suicídio, que os afeta mais do que os
confrontos em serviço. Inspirado na ideia de que "o abismo não nos divide, nos circunda", de Wislawa
Szymborska, mencionada por Isabelle Stengers (2015), e seguindo uma antropologia simétrica (Latour, 1994),
esta comunicação apresenta dados preliminares de uma etnografia a partir de ativistas ex-policiais
militares. Suas criações e engajamentos políticos dissidentes oferecem compreensões diferentes dos problemas
típicos da autoridade generalista de um imperativo universalista. A existência de múltiplos mundos e a
aceitação de tempos difíceis desfazem grandes divisões como entre "militar" e "civil" e promovem atos
criativos que inventam novas formas de resistir à dominação das instâncias de poder. À maneira do desbunde
contracultural, os interlocutores mobilizam outras políticas, dentre as quais, agenciamentos a partir do
humor, da grosseria, do insulto, da injúria, da sátira e, enfim, da transgressão à ordem, valor maior do
"militarismo"; que, de modo agonístico, habilita, nos termos de Stengers, possibilidades de resistência à
barbárie.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Renata Freitas Machado (Université Paris Cité)
Resumo: Durante uma visita às instalações da empresa Dow química em agosto de 2022, uma engenheira de minas me
mostra uma pedra de sal embalada em filme plástico para evitar o contato com a umidade. Meu olhar se fixa na
pedra, exibida como uma lembrança na prateleira do armário. "Não existe mais nenhuma assim", comenta a
engenheira. Esse único exemplar de sal revela aos meus olhos a materialidade ubíqua, mas invisível, na vida
dos habitantes de Matarandiba, uma pequena ilha próxima a Salvador (BA).
O trabalho de extração de sal na ilha consiste em perfurar cerca de 1200 metros abaixo do nível do mar. Após
a perfuração, as máquinas injetam água com alta pressão para recuperar o sal. Este pode então circular
dentro dos dutos e atravessar o território da ilha, passando pelos manguezais, para chegar ao continente. Em
nenhum momento, os habitantes veem o sal.
Nesse sentido, tento mostrar que não apenas o sal e sua extração são invisíveis, mas que os danos sociais e
ambientais causados por essa extração foram dissimulados pela empresa mineradora. Nixon (2011) qualifica
como "violência lenta" a maneira como os danos ocorrem progressivamente e fora do alcance dos olhos" (2011:
2). A violência lenta tem como corolário à "resistência lenta", o modo como os coletivos humanos e não
humanos afetados pelos efeitos dessa violência reagem e resistem gradualmente aos seus impactos (Babidge
2019). Nesse texto, vou me concentrar na resistência das mulheres marisqueiras e dos mangues à exploração do
solo e subsolo em um território que optei nomear de "salgado".
Para entender as questões relacionadas ao sal na ilha, é preciso retroceder ao início dos anos 1960. A
comunidade não possui rede elétrica. Ela depende da produção artesanal do sal para garantir a conservação de
peixes e frutos do mar. Mas, no final dos anos 1970, uma primeira rede elétrica é instalada, e uma empresa
americana se estabelece nas terras da ilha para explorar os depósitos de sal.
A exploração acelerada dos recursos minerais leva a uma devastação sem precedentes dos territórios habitados
por grupos indígenas e/ou afrodescendentes na América Latina. Ela impõe uma ontologia única na qual a
natureza é vista como um recurso destinado a alimentar a indústria capitalista (La Cadena; Blaser, 2018).
No caso de Matarandiba, a exploração do sal se baseia no controle da circulação de sal nos tubos e controle
de humanos, animais e plantas. Proponho realizar uma etnografia de relações multi-espécies para entender
como as atividades de extração transformam as paisagens dos manguezais e da Mata Atlântica (Tsing 2017). Por
estar no centro das interações com os humanos, animais e microorganismos presentes nos manguezais, o sal
(salgema, salmoura, substância química) constitui o ponto de partida desta análise.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Rui Massato Harayama (UFOPA)
Resumo: Neste trabalho apresentaremos reflexões a partir do trabalho de campo entre povos Wai Wai no Norte do
Pará, nas Terras Indígenas Trombetas-Mapuera e Nhaumundá-Mapuera. Os dados etnográficos referem-se às
incursões em campo desde 2018 e com concentração nos anos de 2020 a 2023. A relação dos povos Wai Wai com o
Estado nacional, sobretudo em sua caracterização étnica e na descrição da língua, foram organizados a partir
do contato com os missionários do Unevangelized Fields Mission na década de 1940, e que levaram os primeiros
serviços de saúde e educação. Esse contato gerou um processo de mudança e transformação com o abandono
expresso de práticas consideradas xamânicas e quaisquer outras que não seguissem os ensinamentos dos
missionários e a biomedicina ocidental, com especial atenção à interdição do uso das plantas medicinais e
das rezas e sopros. Com a transferência dos serviços de saúde e educação para o poder público, a partir da
década de 1990, os indígenas waiwai passaram a ser atendidos, no caso da saúde, por políticas desenhadas
pelo Ministério da Saúde e hoje coordenadas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena. É nesse lastro
histórico de relações colonialistas entre povos indígenas e não-indígenas que nos deparamos com os casos de
pacientes psiquiátricos e que fazem uso de psicofármacos repassados pelas equipes de saúde. A estratégia de
pesquisa de participar de forma engajada na compreensão desses diagnósticos, os medicamentos utilizados, os
prontuários e os núcleos familiares, mediando os enunciados biomédicos para os pacientes indígenas,
possibilitou conhecer diferentes formas de compreender o processo etiológico e com isso a explicação dos
desequilíbrios sociocosmológicos, e que na concepção das equipes de saúde são compreendidas como doenças
subjetivas e ligadas à psique humana. O quadro se agrava pelo modo como as políticas oficiais de saúde tem
se apropriado das teorias do bem-viver, que quando transferidas em políticas públicas acabam replicando
estereótipos colonialistas sobre indigeneidade e conhecimentos tradicionais. No caso analisado, as
equivocações ocorrem entre as compreensões sobre os processos etiológicos nativos que compreendem seres
não-humanos e os processos etiológicos da política governamental que apontam as compreensões xamânicas como
respostas culturais a uma natureza universal, gerando estratégias cosmopolíticas de composição entre essas
duas compreensões de mundo. Observamos que mesmo após a implementação de uma política de saúde norteada pelo
princípio da atenção diferenciada e da interculturalidade, as respostas das equipes de saúde baseiam-se em
um processo de controle das queixas dos pacientes indígenas e transformadas em problemas subjetivos de
explicação psicossomática.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Simone Lopes Silva (UFPA)
Resumo: Este estudo busca compreender a agência e circularidade de plantas de cura e cuidados físicos e
espirituais, no setor de ervas do Ver-o-Peso, na cidade de Belém, no estado do Pará, uma das mais antigas e
tradicionais feiras da América Latina. Considerando que esses processos estabelecem uma relação intima entre
humanos e vegetais a partir de sistemas de conhecimentos de povos da Amazônia, associados a medicina
tradicional e ao universo natural das plantas, buscam solucionar questões de saúde, de modo que pessoas que
possuem experiência com este tipo de medicina desenvolvem práticas espirituais, que dialogam com a agência
vegetal. Contudo, a relação humana com as plantas tem sido motivo de especulação capitalista, geralmente
encaradas e instrumentalizadas para os interesses humanos, mas de pouco ou nenhum interesse sobre as
espécies de plantas que atuam com seus hábitos, diversidade e presença na vida das pessoas. As plantas têm
histórias de vida e participam do cotidiano da cidade, desde as mangueiras que ladeiam suas avenidas aos
frascos de garrafadas comercializadas nas feiras, dando seu próprio testemunho existencial, por meio de suas
sombras, seus frutos, suas raízes e suas capacidades de cura. As bases teóricas metodológicas desta pesquisa
buscam um diálogo etnográfico e interdisciplinar com que expressamente vem sendo chamado de epistemologia
vegetal, ou virada vegetal (COCCIA, 2018) que considera as plantas criadoras do mundo, interferindo,
modificando, interagindo e organizando a vida dos seres humanos. Em seguida, contribuindo, as Vozes Vegetais
(OLIVEIRA et al., 2022) abordando a relação entre seres humanos e plantas, com palavras convidativas para
ouvir, aprender e vegetar com as plantas: semear a terra, raízes da diversidade, sociabilidades vegetais e
colher frutos, considerando a inteligência, sensibilidade e capacidade de comunicação das plantas (MANCUSO,
2019) entre si e nas suas relações com os seres humanos. De modo que, descentralize da ideia da natureza, em
especial os agentes vegetais como mero instrumento humano, e sim atores protagonistas de histórias,
promotores de uma diversidade epistêmica.
Palavras-chave: Agência. Circularidade. Cuidados. Plantas. Amazônia.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Sonia Regina Lourenço (UFMT)
Resumo: Esta comunicação é resultado das etnografias realizadas com os coletivos quilombolas em Chapada dos
Guimarães e Poconé, no estado de Mato Grosso nos últimos 11 anos. Pretende-se descrever como a cosmologia
destes coletivos negros se constitui de composições de zonas ontológicas de coexistências de seres humanos e
não humanos, criando posições cosmopolíticas de enfrentamento ao geontopoder que insiste em desvitalizar os
territórios quilombolas. Os saberes de mulheres e homens quilombolas sobre o corpo, a terra e os
territórios, incluem fluxos de vida nas roças, jardins, rios, serras e bocainas, delineando a paisagem e os
modos de habitabilidade entre as multiespécies. Os quilombos são mundos relacionais de resistência às
devastações produzidas pela geopolítica e o geontopoder, especialmente do agronegócio que afeta os
territórios quilombolas e de povos indígenas no centro oeste brasileiro. Desde que a população africana
deixou de ser escravizada e os povos originários sobreviveram ao extermínio do poder colonial, os
territórios destes coletivos se tornaram verdadeiros refúgios de humanos e outros seres não humanos. Os
quilombos decidiram ficar com o problema (Haraway, 2023), desde que passaram a existir na América Latina,
retomando suas terras em modos de existência sempre marcados por tempos de urgências, tentativas de
extermínio, recriando-se contra as práticas econômicas e políticas de exclusão e genocídio. Os quilombos
existem como cosmopolíticas desestabilizadoras do Estado-nação, e buscam se colocar de modo contra-colonial
diante das variações do racismo que atingem seus modos de vida. O que se quer dizer com a designação
cosmopolíticas quilombolas? De um ponto de vista especulativo, seguimos as ideias formuladas por Stengers
(2007, 2010, 2015, p. 446) e Debaise e Stengers (2016) para pensar os modos de existência nos quilombos como
uma das situações concretas que nos provocam a abandonar teorias generalizantes da modernidade que tentam
encapsular e situar as alteridades de humanos e de outros seres tais como divindades, espíritos, visagens,
ancestrais sob o crivo do multiculturalismo ou encerrar mundos relacionais em oposições entre real e
imaginado, ficção e realidade. Inspirada pela teoria da bolsa ficção de Úrsula K. Le Guin, a etnografia
levou a sério as relações entre as plantas, os corpos, as casas, as benzeções e os mutirões como
micropolíticas contra-o-Estado (Clastres, 2003) na composição de seus mundos.