Grupos de Trabalho (GT)
GT 027: Antropologias da Paisagem: Conhecimentos, Relações e Políticas Multiespécie
Coordenação
Pedro Castelo Branco Silveira (Fundação Joaquim Nabuco), Thiago Mota Cardoso (UFAM)
Debatedor(a)
Karine L. Narahara (UNT), Emmanuel Duarte Almada (UEMG)
Resumo:
Paisagem é uma categoria que tradicionalmente ganhou pouco destaque nas discussões antropológicas, geralmente compreendida a partir de suas dimensões estéticas e representacionais, especialmente aquelas relacionadas ao campo visual. Recentemente, abordagens processuais das paisagens tem ganhado força a partir, por um lado, do questionamento das fronteiras entre natureza e cultura, com autores contemporâneos como Philippe Descola, Tim Ingold e Anna Tsing e, por outro lado, com abordagens que incluem a dimensão da ecologia política e do reconhecimento público de paisagens como patrimônio imaterial de povos e comunidades tradicionais. O GT discutirá as diversas possibilidades do uso do conceito de paisagem na antropologia, incluindo abordagens estéticas e processuais, dimensões visuais, sonoras ou táteis, e suas relações com outros conceitos antropológicos tais como território, terra, lugar, ambiente e patrimônio; com os debates sobre o Antropoceno/Plantationoceno/Capitaloceno; e com as perspectivas de uma etnografia multiespécie e/ou uma antropologia da vida, que excedem as socialidades humanas. São encorajadas experimentações etnográficas que se fazem em diálogos com outras disciplinas que também se utilizam da categoria paisagem, entre elas a geografia, a ecologia e as artes visuais.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Carlos Roberto Calenti Trindade (UFAM)
Resumo: À margem direita do médio Tapajós, o pequeno porto leva a uma casa antiga e dali a uma trilha levemente inclinada, por onde chegamos à capela, pintada de azul contra o verde da mata ao redor. Na penumbra do seu interior, iluminados pelas chamas que brotam das latas de óleo diesel e das velas, pedaços de corpos talhados em madeira se espalham pelo chão e se escoram pelas paredes. Em um lugar privilegiado, de frente à porta de entrada, está uma estátua, a imagem do João Guabiraba, o santo a quem essa capela é dedicada, para quem são feitas todas as promessas materializadas nos objetos daquele lugar e ainda tantas outras no curso do rio. É na relação dos beiradeiros do médio e alto Tapajós com esse santo, que vou me concentrar nessa comunicação, pensando em como essa relação anima e constitui a paisagem intensamente disputada da região e é mobilizada nas lutas políticas de defesa dos territórios.
Eu ouvi sobre o João Guabiraba pela primeira vez ao conversar com seu Luiz de Matos, liderança da comunidade ribeirinha de Pimental. Ele me contou que seu pai, Ernesto, havia feito uma promessa ao “espírito milagroso” para que a construção da hidrelétrica que inundaria a vila não fosse à frente – pedido atendido e promessa paga. Segundo a história que seu Luiz contou, e que descobri ser uma entre várias, o Guabiraba foi um serigueiro da época da escravidão por dívidas. Ele ficou doente enquanto trabalhava e o patrão ordenou que seu melhor amigo o levasse até o alto de um morro e o abandonasse lá, sem qualquer assistência. Quando, muitos dias depois, o patrão permitiu que o amigo voltasse ao lugar, ele encontrou apenas os ossos do Guabiraba. Em um momento de aperto, quando o seringueiro tinha se acidentado numa caçada, a sua esposa sugeriu que ele fizesse uma promessa ao amigo morto. Assim, tendo sido curado na mesma noite, a fama do João Guabiraba se espalhou pelos beiradões do médio e alto Tapajós, onde vive até hoje.
Para mim, a história desse santo emaranha temporalidades, espacialidades e socialidades na paisagem, sua própria existência um emaranhado de histórias que não se fecham numa só narrativa ou em uma entidade dada, mas que se produz e produz relações com outros continuamente. Essas relações são muitas vezes ignoradas nos cálculos que desertificam territórios (especulativa ou concretamente) para a maximização de recursos. Mas os espíritos, entre eles o João Guabiraba, são parte inextricável das disputas que se travam ali, como no caso das hidrelétricas. E, mais importante, eles mediam e produzem relações com o território. Nesse sentido, a capela, cravada em meio a uma complexa justaposição de mapas, entre parques, reservas, terras indígenas etc., é um nó de materiação dessas relações que constituem a paisagem beiradeira do médio e alto Tapajós.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Cristhyan Kaline Soares da Silva (UFRN)
Resumo: A partir do contexto do cerrado no sudoeste piauiense, no recorte da comunidade Indígena Gamela do Vão do Vico e do povoado Matas Localizados no município de Santa Filomena a presente pesquisa etnográfica, possui como pano de fundo a antropologia da paisagem. Por paisagem entendemos um emaranhado de vidas humanas e outras que humanas e topografias que são construídas a partir de encontros e dinâmicas dos humanos e outros que humanos com o meio a sua volta. Tendo em conta que o sudoeste do Piauí, vem enfrentando uma investida do agronegócio nas últimas décadas, nos interessamos nas mudanças e permanências paisagística no contexto do cerrado piauiense habitado por povos tradicionais entre eles o povo indígena Gamela. Os indígenas Gamela vivenciam a paisagem a partir dos brejos, serras, lagoas, roçados etc. na experiência com o território há a construção de diversas formas de interação entre humanos e outros que humanos. Nossa pesquisa em andamento no doutorado de Antropologia Social na UFRN, se baseia no questionamento de como antropólogos podem apreciar paisagens diferentemente de outras áreas temáticas que veem o cerrado como bioma produtivo, como berço das águas, como impulsionador de mercado, ou apenas como bioma multiverso. Nossa proposta metodológica gira em torno do viver com as pessoas na paisagem para assim compartilhar com elas do seu modo de vida. No desenvolvimento da pesquisa estaremos atenta as escutas sensoriais, ou seja, no andamento da etnografia estaremos atentas aos cheiros, sabores, texturas sons e sensações que permeiam a experiencia de estar na paisagem. Nos apropriamos de conceitos e reflexões de Anna Tsing (2015, 2019), Tim Ingold (2011, 2015, 2017), Davi Kopenawa (2016), Eduardo Konh (2013) entre outros autores para embasar a nossa pesquisa. Em suma a pesquisa pretende se estender a partir da antropologia, como as pessoas vivenciam seus territórios e como constroem sociabilidades muiltiéspecie no bioma do cerrado piauiense.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Deanny Stacy Sousa Lemos (UFSCAR)
Resumo: Este itinerário de reflexão busca apresentar o Território Taquaritiua, um espaço rico em história e significado, onde reside o povo Akroá-gamella e uma miríade de outros seres invisíveis, localizado na vasta e diversificada paisagem da baixada maranhense. Trata-se de um cenário multifacetado e multidimensional, cujas camadas de significado transcendem a mera geografia física. Habitado por seres invisíveis conhecidos como seres encantados, bem como por outros seres relacionados à caça, este território é uma é teia de conexão com vários seres. Os seres encantados, entidades que permeiam as narrativas tradicionais, são figuras ancestrais que remontam aos tempos imemoriais, quando se diz que habitavam a região antes mesmo da chegada dos seres humanos.
Os encantados são presentes na vida cotidiana dos Akroá-gamella, sendo relacionados como protetores espirituais e donos do território. Suas casas, conhecidas como moradas, são consideradas locais sagrados pelos indígenas, espaços onde o mundo visível se entrelaça com o mundo invisível e nos permite conhecer essa paisagem multidimensional. Esta paisagem multifacetada e rica em diversidade biológica é de suma importância para os Akroá-gamella, pois além de abrigar os encantados e suas moradas, estabelecem uma uma conexão profunda entre o povo e o ambiente que os cerca, influenciando na construção desse corpo-território. Essa relação associativa se manifesta não apenas nas práticas cotidianas dos indígenas, mas também em suas estratégias políticas e de resistência no território.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Emili Almeida da Conceição (UESB)
Resumo: Compreendendo a paisagem como um processo, um indicativo de um mundo em desenvolvimento, atravessado, proponho apresentar o modo como venho abordando a paisagem do rio Paraguaçu, através da minha pesquisa de doutorado ainda em andamento. No intuito de desenhar uma corografia social do Paraguaçu, uma das minhas escolhas metodológicas tem sido a travessia. O rio Paraguaçu é o maior rio localizado inteiramente no estado da Bahia. O curso d’água nomeia a bacia hidrográfica do Paraguaçu, que é considerada por muitos o mais importante sistema fluvial de domínio do estado da Bahia, já que, com mais de 150 afluentes é a responsável pelo abastecimento de água e 60% da população da região da Grande Salvador – capital do estado e região metropolitana - e da cidade de Feira de Santana, segunda cidade mais populosa do estado, através da Barragem da Pedra do Cavalo. O rio vincula três biomas distintos: a mata atlântica, a caatinga e o cerrado. A presença desses três biomas se torna notória pelas alterações da vegetação, da geomorfologia e pela diversidade de modos de ocupação e uso do solo, que vai desde a presença de serras e vales da Chapada Diamantina, passa pela aridez da caatinga, pelos patrimônios materiais e históricos do recôncavo baiano, até o encontro com a Baía de Todos os Santos. Ilhas, enseadas, restingas, lagos de barragens, um leito ora largo, ora estreito e meandros são algumas das formas que aparecem na paisagem do rio. Histórias, pessoas e coisas atravessam e ocupam o leito deste rio, fabricam suas margens, limites e fronteiras, construindo encontros, fazendo laços, barrando o tempo em eventos, resistindo e negociando com o agronegócio e o hidronegócio, enquanto nos apresentam outras possibilidades de conhecimentos que mantém vidas ao longo da vinculação desses biomas.
Desse modo, inspirada na paisagem como uma categoria interessante para abordagens processuais em etnografia (Silveira et al., 2021), proponho descrever e compreender diferentes sentidos construídos, ao passo que diferentes modos de existência vivem com o Paraguaçu, interagem com ele e com outras existências que o habitam, diante dos três biomas percorridos por suas águas. Para tanto, recorro a narrativas de travessias, produzidas a partir da memória e da minha inserção etnográfica, como um meio de testemunhar estes sentidos e descrever a vinculação destes biomas. Assim, esta comunicação objetiva apresentar uma visão geral da paisagem do Paraguaçu, considerando as vinculações entre os três biomas por onde ele passa, os modos de exploração e de lidar com o rio, que decorrem dessas vinculações, a partir da travessia como escolha metodológica.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Emmanuel Duarte Almada (UEMG), Laura Cristina Martins Araujo (UEMG), Pedro Henrique de Jesus Assis (UEMG), Mauricio dos Santos (UFMG)
Resumo: Em 25 de janeiro de 2019, o desastre sociotécnico da Mineradora Vale S.A, causado pelo rompimento das barragens I, IV e IV-A da Mina Córrego do Feijão Brumadinho (MG) atingiu 26 municípios, ocasionou 275 vítimas fatais e deixou inúmeros/as atingidos/as em toda Bacia do Rio Paraopeba. Todavia, sob véu da categoria atingido, há uma diversidade de povos, comunidades e coletivos que experimentam, também de forma diversa, os impactos dos rejeitos em seus territórios e suas vidas em comum com o rio. Dentre estes, encontram-se os Povos de Terreiro, que têm atuado de forma organizada para que as políticas de reparação considerem as vidas humanas e mais-que-humanas que habitam seus territórios e que com eles teciam suas histórias. O objetivo destra pesquisa, ainda em curso, é desenvolver uma etnografia participante junto à comissão de atingidos pelo crime da Vale autonomeada como Povos e Comunidades de Tradição Religiosa Ancestral de Matriz Africana (PCTRAMA), com sede em Betim, a fim de evidenciar alguns conflitos que entendemos serem cosmopolíticos, em que se veem envolvidos amplos coletivos compostos por humanos, mais-que-humanos [santos, nkisis, orixás], e instâncias político-burocráticas como o Estado, Ministério Público, a Defensoria Pública de Minas Gerais e a Vale S.A, todos enredados no conflito e na luta por direitos e reparação socioambiental gerada pelo chamado Desastre de Brumadinho. Até o momento, realizados entrevistas com oito autoridades tradicionais de terreiros, além de caminhadas pelos territórios atingidos e participação em reuniões políticas do PCTRAMA. Os dados produzidos junto a nossos interlocutores indicam de forma evidente a participação ativa dos mais-que-humanos na luta por reparação. Orixás, pedras, plantas, águas, fungos e tantos outros seres, tratados pelas instituições de justiça e empresas como meros elementos das culturas destes povos, são evocados como sujeitos ativos da luta. Xangô, orixá da justiça, está à frente das demandas e lutas destes povos, Dandalunda (a própria água e seus seres) é celebrada em meio à morte/vida do rio e as folhas sagradas renascem e tecem a paisagem arruinada pelo rejeito. A cosmopolítica do PCTRAMA também de desdobrou na produção de um Protocolo de Consulta, uma importante ferramenta interlocução com Estado, empresas e academia e que também reafirma e denuncia violações dos direitos humanos e da natureza frequentemente silenciados em contextos de desastres sociotécnicos. A vida multiespécie, refeita em meio às ruínas do crime da Vale, ao mesmo tempo que ampliam a comunidade de viventes que lutam por reparação e justiça, evidencia outras dimensões do processo de se tonar atingido, resultado das múltiplas formas de ser afetado por humanos e mais que humanos que habitam os terreiros.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Irene Adryane Marciano da Silva (UFPE)
Resumo: A interlocução da dimensão de raça às questões ambientais e suas consequências em escala planetária tem ganhado cada vez mais espaço nas discussões antropológicas. A partir das análises de Bispo dos Santos (2015), Moura Fagundes (2019) e Ferdinand (2022) através da denúncia da ausência de pessoas negras nos debates ambientais, também torna-se importante destacar a questão colonial frente às urgências do antropoceno. Ao colocar em primeiro plano outras epistemologias, destaca-se nesse processo os espaços dos quilombos não só como um refúgio humano e de outras espécies, mas também como um lugar privilegiado para se pensar maneiras de promoção da biodiversidade. Porém, diante das desterritorializações baseadas no racismo ambiental, promoveu-se uma forma de violência particular direcionada às mulheres que vem sendo cada vez mais denunciada (MATOS DA SILVA, 2019; DEALDINA, 2020), este é o caso do Engenho Ilha, na cidade do Cabo de Santo Agostinho (SILVA et al, 2014). Sua formação foi marcada pelo controle por meio da diferenciação fenotípica, desde o período colonial, nas relações de exploração da escravização e um contínuo avanço em busca da ampliação do desenvolvimento econômico local, marcado por sua agressiva exploração ambiental. Desse modo, as mulheres sofrem pela destruição dos espaços comuns, a limitação da circulação no território, exclusão do Estado e estratégias políticas marcadas pela invisibilidade de suas reivindicações. O objetivo deste trabalho é debater este movimento através da feminização do conceito de quilombo (ALMEIDA, 2022) e da etnografia em andamento entre as mulheres do Engenho Ilha, onde relações de responsa-habilidade (HARAWAY, 2023) são refletidas em suas paisagens. Formado por vários sítios e áreas comuns como a Mata do João Grande, o Areeiro, Miranda, Zumbi, Ilha dos Martins, Cajá, e outros, o Engenho Ilha tem promovido através das técnicas desenvolvidas pelas mulheres importantes debates sobre uma noção conservacionista da natureza que tem sido apropriada pelo Complexo de Suape. Através de estratégias desenvolvidas por elas e de seus fazeres ecológicos, é possível destacar uma articulação maior que nos dá pistas para caminhos outros diante da crise socioambiental atual. Desse modo, o que podemos aprender com essas mulheres de quilombos? De que maneira suas ações produzem formas do fazer ecológico? Como elas nos mostram uma vida para além do fim do antropoceno? É a partir desta quebra de fronteiras que busca-se evidenciar suas ações contra-colonizadoras (BISPO DOS SANTOS, 2015; MATOS DA SILVA, 2019) através do aquilombamento de suas ações agroecológicas em espaços políticos de cuidado.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Jaqueline de Araújo Vieira (UFRJ), Izabela Henriques Feffer (UFRJ)
Resumo: Este trabalho tem como objetivo apresentar a categoria paisagem sob a perspectiva de Claude Lévi-Strauss, especialmente por meio da relação do antropólogo com a geologia, área do conhecimento que muito influenciou sua obra, tendo relevante impacto em seu pensamento (GOLDMAN, 2008). Sabendo que a categoria paisagem tem sido acionada na antropologia a partir de debates contemporâneos, principalmente por estar situada entre as fronteiras da relação natureza e cultura - permitindo profícuos diálogos interdisciplinares - nossa ideia é investigar em que medida esta discussão estava presente no pensamento de Lévi-Strauss. Cabe mencionar que debates envolvendo a geologia no campo da antropologia ganharam força nos últimos anos diante de estudos do Antropoceno, o que Maniglier (2023) denomina como virada geológica, além de perspectivas indígenas (DE LA CADENA, 2018) e quilombolas (BISPO DOS SANTOS, 2023) sobre a terra. No caso de Lévi-Strauss, a paisagem, que à primeira vista pode ser descrita como desordenada, passa a ser organizada em sentido estratigráfico, tal qual as estruturas geológicas, garantindo-lhe uma imagem inteligível (GOLDMAN, 2008), lógica de ordenação que orienta o pensamento estrutural. Partindo da análise de alguns textos do autor, especialmente da obra Tristes Trópicos, traremos luz à investida sobre a paisagem em diferentes momentos, realizada por meio de uma instigante descrição etnográfica. A paisagem é evocada pelo antropólogo através das cidades, florestas, viagens e até mesmo nas artes plásticas. Além disso, configura um importante elemento para formulação de sua crítica à ideia de progresso - buscaremos enfatizar no texto. Tendo em vista que a categoria em questão é polissêmica, sendo utilizada por diferentes áreas disciplinares, ressaltamos que não é nossa intenção enquadrar o uso que o autor fez da paisagem de forma unívoca, e sim dimensionar como a inseriu na antropologia.
Palavras chave: Lévi-Strauss, paisagem, geologia, estruturalismo
Referências
BISPO DOS SANTOS, Antonio. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu Editora/PISEAGRAMA, 2023. 112 pp.
DE LA CADENA, Marisol. Natureza incomum: histórias do antropo-cego. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 69, p. 95-117, abr. 2018.
GOLDMAN, M. Lévi-Strauss, a ciência e outras coisas. In: Queiroz, R.C de; Freire Nobre, R. (orgs) Lévi-Strauss. Leituras brasileiras, p.73.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996 [1955].
MANIGLIER, P. Quantas Terras? A virada geológica na antropologia. In: Danowski, D; Viveiros de Castro, E; Saldanha, R (orgs) Os Mil Nomes de Gaia: do Antropoceno à Idade da Terra, volume 2, 2023.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Lais Maria Rodrigues Oliveira (UFAM)
Resumo: Estudos de Ecologia Histórica têm mostrado que a floresta amazônica, longe de um ecossistema natural, é o resultado de ações antrópicas de longa duração (Balée, 1998). Pesquisas em ecologia e botânica têm revelado que a Amazônia é um dos maiores centros de domesticação do mundo (Clement et al, 2010), apresentando quase duas centenas de espécies com algum nível de domesticação, dentre elas a mandioca (Manihot esculenta) e o açaí (Euterpe oleracea). No campo da antropologia, os estudos atuais têm mostrado que a prática da coleta é muito mais que uma simples subtração de frutos, constituindo-se num requintado processo de manejo da floresta e processamento de produtos para fins alimentares e outros (Mendes dos Santos, 2016).
Estes produtos da floresta, conhecidos e manejados historicamente pelas populações amazônicas, juntamente com aqueles oriundos da agricultura familiar, estão presentes ao longo do ano nas feiras de Manaus. Durante minha trajetória como pesquisadora me vi de encontro com várias espécies, entre elas o tucumã (Astrocaryum aculeatum). O tucumã é o fruto da palmeira popular na região norte, existindo duas espécies do fruto mais conhecidas como o Tucumã do Amazonas ( (Astrocaryum aculeatum)) e o Tucumã do Pará (Astrocaryum vulgare, Mart.), o primeiro é comum encontrá-lo nas feiras de Manaus, principalmente por ser um dos principais por ser um dos ingredientes presentes no lanche X-Caboquinho amplamente consumido no café da manhã e lanche da tarde dos habitantes de Manaus (Shanley et al., 2005). Além do consumo pelos humanos, o tucumã também é consumido pelos não-humanos, ele é fonte de alimento de animais silvestres como macaco, arara, paca, tatu e a cutia (Dasyprocta). Dentre esses animais a protagonista é a cutia, porque ela é responsável por dispersar o tucumã, ela costuma enterrar as sementes para procurá-las depois e ao esquecer essas sementes acabam germinando (Shanley et al., 2005).
Deste modo, os humanos coletores e a cutia são espécies que se cruzam caminhos por suas vivências, principalmente quando se trata do tucumã, por esse motivo o trabalho pretende entender os modos de se relacionar entre esses seres. Pensando com Ingold (2000) sobre a questão da história dos caçadores-coletores que não está escrita nas páginas e ancorando o trabalho no conceito de socialidade de Tsing (2019) que não faz distinção entre humanos e não-humanos pois inclui ambos, este trabalho busca estreitar o foco do estudo e abordar a partir de uma etnografia da coleta do tucumã as relações entre humanos e não humanos observando os modos de construção do conhecimento e formas de se relacionar com essa espécie em que a maioria das vezes não aparecem nos estudos, levando em consideração as histórias e trajetórias desses sujeitos com o tucumã.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Leonardo Bruno Barbosa (UFJF)
Resumo: Neste estudo, exploro a intersecção entre fotografia, paisagem e relações multiespécies, tendo como cenário o município de Botumirim, Minas Gerais, Brasil. Através da narrativa de minha jornada como fotógrafo e pesquisador, acompanho o trabalho do fotógrafo e observador de aves, Manoel Freitas, mergulhando na prática da fotografia de aves como uma forma de engajamento com o território. Este trabalho é impulsionado por uma curiosidade inicial sobre a fotografia como meio de conexão com o ambiente, evoluindo para uma investigação acadêmica durante o meu doutorado.
A pesquisa se ancora na teoria antropológica que vê o conhecimento como emergente dos "caminhos de vida", proposta por autores como Tim Ingold, Philippe Descola e Bruno Latour, para discutir a fotografia de aves no contexto das relações multiespécies, tendo, neste caso, referências importantes como Donna Haraway e Vinciane Despret. A descoberta da Rolinha do Planalto (Columbina cyanopis) em Botumirim, previamente considerada extinta, e o subsequente influxo de fotógrafos de natureza na região, fornecem um palco para observar como a fotografia atua como uma ponte entre humanos e não-humanos, revelando uma complexa teia de relações e conhecimentos.
Neste contexto, discuto a dualidade entre o háptico e o óptico, conforme explorado por Deleuze e Guatarri, e como essa dualidade se manifesta na prática fotográfica. A fotografia de aves, neste sentido, não é apenas um ato óptico de captura de imagens, mas também uma experiência háptica de estar no mundo, um modo de conhecer através da imersão e do envolvimento sensorial com o ambiente e suas espécies habitantes.
Através da análise dessa prática fotográfica em Botumirim, argumento que a fotografia de natureza pode ser uma ferramenta de engajamento e de construção de novos conhecimentos. As imagens capturadas não servem apenas como documentação, mas também como pontes para um entendimento mais profundo das interconexões entre seres humanos, outras espécies e o ambiente, incentivando uma reflexão sobre coexistência, conservação e as políticas multiespécies que emergem dessas relações.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Lucas Timoteo de Oliveira (USP)
Resumo: Este trabalho visa investigar as práticas de territorialidade dos Suruwaha, povo indígena Arawa, cujo território se localiza no sudoeste do estado do Amazonas. Os Suruwaha transitam em uma rede de caminhos, entre malocas, roçados e floresta, onde se engajam em socialidades sociocósmicas que constituem uma paisagem densamente povoada. Apesar dos deslocamentos constantes em seu território, os Suruwaha raramente ultrapassam a região de ocupação tradicional que, neste caso, coincide com os limites da Terra Indígena Zuruahã. Nesse contexto, coloca-se a seguinte questão: quais os efeitos de descrever as práticas de ocupação espacial dos Suruwaha ao tomar a paisagem como categoria analítica que busca destacar as dimensões concretas e vividas do espaço? Ao voltar o olhar para a paisagem, levando em conta a articulação entre o modo indígena de apropriação do território com o conceito estatal de Terra Indígena, o interesse é ampliar a compreensão da relação entre os Suruwaha e o território que ocupam, o que possibilita uma apreensão de nuances das práticas territoriais e contribui para uma compreensão mais abrangente dessa relação. O objetivo é apresentar percepções etnográficas a respeito dos modos de construção e experimentação das paisagens a partir de uma etnografia dos lugares e dos modos de ocupação territorial, em que humanos (incluindo gentes estrangeiras/inimigas), plantas, animais e espíritos se movimentam e interagem em uma rede de caminhos que conecta florestas, roçados e malocas. Neste trabalho, apresento resultados preliminares de pesquisa em andamento, os quais colocam, em primeiro plano, as práticas que caracterizam uma territorialidade em transformação, num movimento de atualização das concepções e das formas de apropriação do espaço no contexto contemporâneo, em que a ocupação tradicional se articula com a Terra Indígena. Como contribuição, espera-se ampliar as perspectivas para uma investigação sobre os processos de transformação das territorialidades dos Suruwaha.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Luis Miguel Barboza Arias (UFRGS)
Resumo: Neste artigo, faço uma reflexão crítica do conceito de "paisagem" com base na incorporação de uma perspectiva multiespécie. Proponho que os agenciamentos e as capacidades performativas das vitalidades outras-que-não-humanas são aspectos relevantes no estudo das redes de relacionamentos em torno das quais os territórios de coexistência multiespécie são (re)configurados. Esta discussão continua elementos analíticos formulados em minha pesquisa de doutorado. Retomo os relacionamentos humano-taltuzas que ocorrem em um território rural da Costa Rica para construir um estudo de caso empírico. As taltuzas (Rodentia: Geomyidae) são roedores fossoriais. Na região norte de Cartago (província da Costa Rica), indivíduos da espécie Heterogeomys heterodus constroem túneis em terrenos destinados à produção de hortaliças, nos quais entram com a intenção de se alimentarem. Isso levou à sua designação como "espécie-praga" nas atividades agrícolas. Ao mesmo tempo, a espécie é endêmica do país e tem uma área de distribuição limitada, o que levou à sua inclusão na lista de espécies ameaçadas ou com populações reduzidas. Neste artigo, mobilizo essa ambivalência para argumentar que "desenvolvimento", "sustentabilidade" e "progresso" são categorias antropocêntricas que precisam ser repensadas em relação às contingências e à complexidade dos mundos de vida situados. Por outro lado, as taltuzas propõem narrabilidades sobre os modos de habitar que enriquecem nossa compreensão dos "paisagens outras-que-não-humanas", e até mesmo podem nos ajudar a entender melhor a relação entre os ciclos do carbono e do nitrogênio e os solos.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Luisa Gonçalves Girardi (Opi)
Resumo: A comunicação coloca em cena a conexão entre lugares e pessoas entre os Kahyana, Katxuyana e Yatxkuryana, povos (-yana) da família Karib originários dos rios Trombetas (Kahu), Cachorro (Katxuru) e Jascuri (Yatxkuri), na porção norte-brasileira da Amazônia Guianense. Com atenção aos acontecimentos que constituem o início dos tempos (panano wetxitpïrï), considero essa conexão para descrever as histórias multiespecíficas que fabricam a paisagem trombetana, fértil de lugares e personagens nomeados (re)lembrados por gerações sucessivas em seu incessante movimento pelo território. Aldeias antigas, cachoeiras, caminhos, montanhas e palmeirais são alguns dos condutores desta descrição: concebidos como imagens, contam sobre a continuidade, a duração e a temporalidade da paisagem – dizem, em suma, da historicidade terrena, condição da existência dos Kahyana, Katxuyana e Yatxkuryana no contexto contemporâneo. O artigo dedica-se, pois, à dinâmica mnemônica elicitada pelos movimentos vivenciados por estes povos, destacando a mutualidade que enunciados como “nós somos a terra” sustentam.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Luiz Felipe Rocha Benites (UFRRJ)
Resumo: Esta comunicação tem por finalidade examinar a materialidade ativa da água na composição da socialidade mais-que-humana que emerge nas paisagens às margens do Rio São Francisco, em sua porção norte-mineira. Inspirado na noção de materiação (mattering), cunhada por Karen Barad em sua abordagem materialista-performativa, busco pensar a capacidade agencial da água, sem separar suas dimensões semióticas e materiais, na conformação de paisagens em movimento permanente. Partindo das ideias dos habitantes do povoado de Ribanceira, comunidade ribeirinha e quilombola, situada às margens do rio São Francisco, sobre os movimentos das águas do rio e das chuvas, traço uma breve reflexão sobre o rio e seu entorno como um fenômeno em devir intra-ativo em que as fronteiras e propriedades dos componentes das paisagens sanfranciscanas vão sendo moldadas em práticas relacionais mais-que-humanas.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Luiza de Albuquerque Leite Vieira (UFSM), José Marcos Froehlich (UFSM)
Resumo: Esta comunicação apresenta recortes de minha pesquisa etnográfica conduzida durante o mestrado no Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UFSM. Um dos objetivos centrais da pesquisa foi observar e analisar como as práticas de cuidado moldam a formação de refúgios, influenciando na (re)configuração da habitabilidade multiespécies. O olhar desta pesquisa concentrou-se na história de duas famílias de permacultores e suas espécies companheiras, observando sua interação com a paisagem circunscrita no que hoje é a Estação de Permacultura Jerivá. Ao longo de três anos, por meio de técnicas de cuidado que provocaram perturbações lentas, muitas vezes orientadas pelas noções de design da permacultura, foi surgindo uma mancha de habitabilidade em meio a uma paisagem arruinada pela lógica da plantation. A partir de práticas de cuidado com o solo, essas histórias costuradas pela “agulha da permacultura” mostram a importância da conexão com o processo e a indeterminação dos encontros na criação de refúgio, lugares que possibilitam a renovação da diversidade biossocial após distúrbios significativos. Estudar refúgios em tempos urgentes nos oferece não apenas referências de projetos de compor-mundo habitável; também nos ensina que criar refúgio não significa necessariamente se livrar do fracasso, ou do “colapso”, como alvitrou um dos permacultores da Estação. Por isso a esperança é “fragmentada”, estamos cercados de incertezas, porém, mais do que nunca, devemos continuar respondendo ao problema.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Maria Clara Ribeiro Moreira (UFMG), Luiza Reis do Nascimento (UFMG)
Resumo: Vivemos em um mundo de ruínas, sobre escombros de muitos mundos. O arruinamento é uma constante, e habitamos as paisagens que se fazem da perturbação.
O texto aborda a coexistência entre ruína e esperança no mundo contemporâneo, enfatizando a importância de construir alianças e relações de parentesco em uma escala ecológica, questionando a definição moderna que separa natureza-cultura. Ao contar a história de uma muda de Pixirica, uma planta que veio do Assentamento Terra Vista, no Sul da Bahia, e viajou por diferentes mãos até chegar ao coletivo Paisagismo de Guerrilha em Belo Horizonte. A muda foi, então, plantada em meio ao entulho num terreno de bota-fora, iniciando uma empreitada de construir, ali, uma horta comunitária.
Essa jornada destaca as complexas interações entre humanos e não humanos, as suas alianças e os conflitos dos encontros nas paisagens. O texto propõe uma reflexão sobre as possibilidades de vida e sobre o fazer parentesco no contexto do capitaloceno, na urbanidade com seus ecossistemas de ruína, questionando a dicotomia entre natureza e cultura e buscando transformar imaginários a partir de uma ecologia política multiespécie.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Matheus Henrique Pereira da Silva (UFSCAR)
Resumo: O foco deste trabalho são as paisagens multiespecíficas que compõe a manifestação de um modo de vida e de uma naturezacultura alimentar tradicional ligado ao gado bubalino e bovino, bem como as fazendas, as pastagens nativas, aos campos e as famílias tradicionais da Ilha de Marajó na Amazônia paraense: a vida dos queijos marajoaras. A partir de uma etnografia em andamento em fazendas, dos Municípios de Soure e Cachoeira do Arari, sobre as relações multiespecíficas envolvendo a criação sistemática de animais na pecuária e as paisagens dos campos naturais busca-se seguir os emaranhados que produzem o queijo dentro de ecologias: do pasto à sala de ordenha, à sala de fabricação de queijo, à prateleira e além.
O queijo do Marajó historicamente é produzido na região dos campos, onde predomina a atividade da pecuária, sendo a região composta por rios, lagos, mangues, praias e igarapés, além de vastas campinas e pastagens nativas diversas que subsidiam a atividade. A produção de queijo se restringia, inicialmente, às fazendas na microrregião do Arari desde o século XVIII, sendo feito, originalmente, com leite bovino, o chamado queijo tipo manteiga, de produção de pequenas famílias. A partir do final da década de 1920 e início de 1930, quando da inserção da desnatadeira no processo produtivo, iniciou-se a diferenciação dos queijos. Surgia o queijo tipo creme predominante nas fazendas de Soure. Enquanto esse é mais cremoso e comum em Soure, o tipo manteiga é mais rústico e comum em Cachoeira do Arari, além de possuírem diferenças quanto ao nível de gordura, textura, produtividade e durabilidade (tempo de prateleira).
A safra do leite/queijo ocorre na época de lactação a partir de maio até setembro/outubro quando as vacas estão produzindo leite com suas crias pequenas, embora a produção continue em algumas fazendas e queijarias com uma produção menor até a seca severa no veraneio. A sazonalidade impacta diretamente no ciclo do leite visto os animais dependerem das pastagens nativas para o aumento da produção de leite. O leite oriundo das fazendas é comercializado in natura nos municípios de Soure e Cachoeira do Arari através da venda em varejo, de porta e porta, nas padarias, ou ainda, para as queijarias que atuam de forma independente.
Dessa maneira, ao seguir o emaranhado da vida dos queijos marajoaras é possível problematizar as paisagens marajoaras que o constituem de três modos: 1) a relação da criação com o trabalho animal, neste caso, das pastagens nativas à ordenha manual, como um modo de incorporação dos animais as paisagens; 2) a emergência dos queijos nas queijarias a partir do manejo microbiopolítico; e por fim, 3) as relações entre queijo, paisagem e sazonalidade de onde emergem modos de vida multiespecíficos.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Pedro Rocha de Almeida e Castro (UFMG)
Resumo: Nesta apresentação, vamos explorar as relações entre toponímia, narrativas míticas, benzimentos e outras formas de expressão simbólica assentadas nos lugares que compõem a paisagem da bacia do Uaupés, no noroeste do Amazonas. Os dados utilizados nesta reflexão são provenientes da pesquisa colaborativa realizada pelos povos Kotiria e Kubeo em 2016, no âmbito da elaboração do Plano de Gestão Territorial e Ambiental Kotiria e Kubeo, do qual participamos como colaboradores. Dentro do largo escopo do PGTA KK, o mapeamento de lugares "sagrados", isto é, lugares com nome e com história, que figuram nos "benzimentos" e narrativas míticas destes povos, ocupou um lugar central. Foram mapeados 713 lugares nomeados, sendo 482 lugares identificados como parte do território Kotiria (67%) e 231 lugares no território Kubeo (33%). Tratam-se de marcos geográficos (como rios, igarapés, lagos, canais, praias, cachoeiras, estirões, poços, ilhas, pedras, areais, serras, chavascais, etc.) que possuem nomes próprios e contrastam com seções territoriais que não possuem nomes próprios.
Vamos argumentar que a análise comparativa dos dados Kotiria e Kubeo sobre os lugares nomeados nos permite pensar em "imaginários compartilhados" ou – como preferimos colocar – em uma espacialidade comum enquanto uma dimensão simbólica que estrutura o pensamento sobre o território. Espacialidade não deve ser entendida como uma categoria vazia, fria e objetiva em oposição aos lugares enquanto uma categoria carregada de sentido. Pensamos que a espacialidade articula as formas do pensamento cultural, enquanto os lugares articulam as substâncias que expressam as noções de territórios e mundos. Logo, podemos falar de uma espacialidade específica, no caso Kotiria e Kubeo, mas que também é compartilhada com outros povos do Alto Rio Negro e quiçá alhures. Neste contexto, pensar em termos de “paisagem” permite que se alinhe em um mesmo “plano de consistência” os diferentes níveis da experiência de humanos e não-humanos que a compõem, passando ao largo de uma divisão estanque entre natureza e cultura, que de resto seria alheia ao pensamento indígena.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Renan Martins Pereira (Universidade de São Paulo)
Resumo: No sertão, ‘criação’ é o nome que se dá ao rebanho de bodes e cabras. Mas onde ‘se criam’ os bichos, também ‘se criam’ as plantas, as terras, as águas e as gentes. E por que não as paisagens e as memórias? As transformações no ecossistema da Caatinga e os efeitos da crise ecológica são debatidos de diferentes maneiras pelos sertanejos com quem faço pesquisa de campo em Floresta, município do semiárido pernambucano. Secas cada vez mais duradouras e severas; chuvas menos regulares e distribuídas; desertificação; espécies invasoras de plantas; desmatamento para produzir lenha, madeira e estradas; urbanização; construção de obras de impacto, como barragens e hidrelétricas; cercamentos de campos de uso comum; poluição, transposição e vazão de rios e riachos. Estas e outras formas de ação antrópica, ao mesmo tempo que contribuem para a transformação da mata nativa, criam paisagens e memórias multiespécies, com as quais criadores, vaqueiros, agricultores, pecuaristas e fazendeiros narram, imaginam, significam e preservam o universo ao seu redor. Dessa maneira, o regime ecológico na Caatinga será analisado nesta apresentação a partir de discursos, imagens, memórias e histórias sobre formas particulares de viver, habitar, perceber e criar a vida nesse bioma. Falar de árvores como umbuzeiros, quixabeiras, aroeiras, caraibeiras, por exemplo, é falar de paisagens, lugares e lembranças de pessoas, famílias e acontecimentos históricos. Falar de chuvas, minas, lagoas, rios e riachos é falar de cheias, secas e das águas quando ‘sangram’ e levam ‘fartura’ para as casas sertanejas. Falar de açudes, cacimbas, barreiros e poços - assim como das ‘criações’ (caprinos), do ‘gado’ (bovino), do ‘animal’ (equinos, asininos e muares) e da ‘caça’ (preás, mocós, tatus, pebas, emas, seriemas etc.) -, é falar de paisagens centenárias de fazendas e ribeiras, com suas tecnologias e infraestruturas, com seus viventes e criaturas, que povoam as lembranças de infância e juventude, as histórias, os valores e os costumes do ‘povo antigo’. Mas como as memórias e paisagens sertanejas se tornam criações umas das outras? E quais os limites desse processo de criação à medida que as coisas e a vida se transformam radicalmente na Caatinga? Estas e outras perguntas têm o objetivo de tensionar relações estabelecidas pelo pensamento antropológico entre o passado e o presente, o tradicional e o contemporâneo, a duração e a mudança, o mito e a história, o natural e o artificial. Tais relações serão analisadas à luz da antropologia, sobretudo, em sua interlocução com os estudos multiespécies, a literatura, a ecologia e a geografia, a fim de pensar também nos rendimentos analíticos de conceitos como os de “lugar”, “habitat”, “ambiente” e “território” vigentes nesses diferentes campos de conhecimento.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Sthevson Lourran de Melo Santos (UFPB)
Resumo: Banhado pelas águas salgadas do oceano atlântico de um lado, e pelas águas doces do Rio Paraíba do outro, o Dique de Cabedelo - localizado no litoral norte paraibano no município de Cabedelo - é uma paisagem em constante movimento, desde o cenário áqueo até suas faixas de areia. Se constituindo como um dos cartões postais da Paraíba, o dique é um espaço de lazer e sociabilidade, de encontros e desencontros. É também uma paisagem em que se desenha um grande tráfego de embarcações aduaneiras, que perpassam as águas doces até o Porto de Cabedelo, seguindo o oceano Atlântico. Com uma história marcada pela caça às baleias no século XX, o dique se demarcou como atrativo para a pesca, seja ela legal (ou não), seja esportiva (ou não). Tendo em vista que a dimensão do atrativo pesqueiro é uma constante presente no local, percebe-se uma relação de simbiose, nutrida pelo envolvimento não apenas do pescador e do pescado, mas também de outras vidas, como os botos e as gaivotas e os pequenos vórtices que se formam nessa interdependência com os que estão no solo, no mar, e nos céus. No entanto, desde 2020 uma construção em grande escala circunda as adjacências do dique. E, a partir de 2021, foi divulgado que trata-se da construção de uma orla para expandir o turismo local. À luz de uma etnografia multiespécies (Kirksey, Helmreich, 2020) e do desenho como artefato de análise etnográfica (Azevedo, 2016), este trabalho analisa as nuances de tais reformas e seus impactos nas dinâmicas das relações e socialidades dos seres que transitam e habitam o dique, sejam eles humanos ou não humanos. Também busco desenvolver a ideia de ondas de concreto como conceito chave para análise que permite entender a troca da terra pelo cimento e, com isso, o esquecimento da mata e da areia. Trago como questionamento: o que muda quando a paisagem muda? E para buscar responder a essa indagação, atento para as temporalidades e os ritmos dos sujeitos humanos e não humanos que de algum modo experienciam os eventos que ocorrem no dique.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Valentina Cortinez (UFSC)
Resumo: O trabalho traz uma descrição das relações e atores, humanos e mais que humanos, que compunham a paisagem costeiro marinho da região de Chiloé antes da entrada da grande industria do salmão no mar interior do arquipelago. Em particular, o trabalho apresenta o "Pilcán" instancia específica dos modos de vida do arquipélago de Chiloé que refere tanto o fenômeno das maiores e mais baixas marés quanto às varias relações, prácticas e técnicas que eram ativadas a partir do movimento do mar.
O trabalho se fundamenta no material etnográfico recolhido entre novembro do ano 2021e janeiro do ano 2022 entre comunidades indígenas Mapuche-Williche do sul do arquipélago de Chiloé, na patagônia chilena, região fortemente atingida pela apropriação privada de espaços e recursos marinhos por grandes indústrias aquícolas.
Inspirada nas discussões e conceitos que ampliam a noção de ambiente e o definem como um espaço eminentemente relacional (Bateson, Gibson, Ingold, Tsing), o travalho descreve as varias relações, conhecimentos, praticas e técnicas que eram ativadas e atualizadas com ocasião da recolhida do mar, bem como a relevancia que tinha dito fenomeno na organização da vida cotidiana das comunidades. A densa trama de relações entre humanos junto a elementos não humanos nessa instancia especifica, bem como a insistencia dessa lembrança nas conversações com as pessoas, faz refletir sobre o quanto é espuria a distinção entre fenomenos naturais e sociais no cotidiano das populações tradicionais. Igualmente, o trabalho interpela para avançar a uma melhor compreensão do que está em jogo – eticamente, politicamente e epistemologicamente – quando se promove um modelo de exploração do mar que simplifica as relações que sustentam essa paisagem aos códigos que orientam o mundo do mercado e das mercadorias.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Yvisson Martins Gonçalves de Lima Sabino (FACEPE)
Resumo: Em tempos de negação do comitê das Ciências Geológicas para decretar a nova era denominada antropoceno, é possível percebermos cada vez mais o sobreaquecimento, as mudanças aceleradas e drásticas que perturbam as paisagens do planeta. A presente pesquisa, de caráter inicial, não pretende focar em contextos internacionais de crise ambiental, mas o toma enquanto plano de fundo, redimensionando o foco para um problema local que irrompe no território pernambucano, o Rio Ipojuca, considerado o terceiro rio mais poluído do Brasil, segundo o IBGE (2010). Devido à sua larga extensão que atravessa mais de onze cidades, faço o recorte geográfico na cidade de Caruaru, que para além do turismo, contém nas suas águas uma quantidade massiva de resíduos químicos e toneladas de lixo. Afetando não somente os humanos, mas também as plantas e os animais (Ver ALYNE COSTA, 2015), a poluição das infraestruturas atuantes na cidade, se ramifica e deixa os rastros da destruição que prejudica a população local. Assim sendo, busco, através do fazer etnográfico, compreender as realidades dos seres humanos e não humanos, as ontologias (Ver KOHN, 2015), entre o discurso científico e dos moradores, em torno do rio Ipojuca. Por meio disso, podemos constatar lembranças de um tempo que ecoa nas memórias das pessoas – atividades de pesca, lazer, doenças, bem como investigar as atuais relações e práticas permeadas de saudosismo e dos desmontes ontológicos. Desse modo, quais narrativas estão sendo construídas a partir desse problema ambiental? É possível falarmos de ontologia política (ESCOBAR 2015)? De “mal entendidos produtivos”? (Ver BRUCE ALBERT, 1995). A visão de Tsing (2020) para o antropoceno é de um fragmento, uma mancha que deixa a sua marca na paisagem, como os subúrbios, por exemplo. O pesquisador deverá estar atento na sua contribuição etnográfica, não somente interessado em acrescentar detalhes pormenores naquilo que já foi estabelecido, até por outras ciências como as da área da natureza, mas de “refazer” o que entendemos do antropoceno. Desse modo, provocamos uma abertura para a compreensão das desigualdades existentes no campo, em que a justiça social não deverá ser desentrelaçada na nossa análise (TSING, 2020).