Grupos de Trabalho (GT)
GT 079: O visível e o in(di)visível: ciências, conhecimentos e produções de mundos.
Coordenação
Guilherme José da Silva e Sá (UNB), Daniel Alves de Jesus Figueiredo (UFMG)
Debatedor(a)
Rafael Antunes Almeida (UNILAB), Flora Rodrigues Gonçalves (Fiocruz)
Resumo:
Historicamente, a produção do conhecimento científico foi inscrita no universalismo ocidental como a forma legítima e hegemônica de descrever o mundo. Em contrapartida, os demais modos de produção de saberes foram alocados à parte das redes científicas e julgados como "crenças, irracionalidades ou formas imprecisas de conhecimento". Entretanto, a partir dos anos 70, o campo dos estudos de Ciências, Tecnologias e Sociedade (CTS) introduz diversos contextos de observação em que a produção dos fatos científicos se difere de outras formas de produção de conhecimento, não pela presunção de sua racionalidade, mas pela maneira específica que os cientistas relacionam a visibilidade da materialidade do mundo ao acionar seres invisíveis em seus laboratórios. Apesar de serem negados discursivamente pelos modernos, os eventos/actantes invisíveis se associam como testemunhas, atores e objetos da manifestação da verdade dos fatos científicos. Este GT se dirige tanto às etnografias das práticas científicas, quanto aos experimentos envolvendo conexões parciais, engajamentos, controvérsias, conflitos, mimesis, fricções e alianças em torno de interesses entre narrativas científicas e não científicas. Também acolheremos trabalhos sobre modos de produção de conhecimentos que disputem as formas de veridição do universalismo e do racionalismo euroamericanos, e/ou invistam em descrições sobre o cenário atual de instabilidade e incertezas epistêmicas manifestas nas primeiras décadas do século XXI.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Ana Paula Henrique Salvan (UFSC)
Resumo: Assim como a Biologia, a Astrobiologia é um campo de investigação que se debruça sobre a vida.
Diferentemente da Biologia, como sugere o prefixo "astro", essa ciência em ascensão nutre ideias
particulares a respeito de seu objeto de estudo e, sobretudo, de onde ele pode ser encontrado. Se você é um
astrobiólogo, você regularmente submete microscópicos terráqueos a condições ambientais típicas de paisagens
além-Terra, como as salmouras de Marte, as nuvens de Vênus e os oceanos salgados de Europa e Encélado. Em
sua prática diária, o macro e o microscópico, o visível e o invisível, o familiar e o alienígena estarão em
permanente contato, em constante negociação.
Tomando como base meu estudo etnográfico com e sobre os astrobiólogos e as astrobiólogas que conduzem
pesquisas no AstroLab ─ primeiro laboratório brasileiro a dedicar-se inteiramente à Astrobiologia
─, proponho seguir as associações mais-que-terrestres invocadas por esses e essas cientistas
durante seus experimentos. Minha intenção é mapear de que forma a Astrobiologia se vale do insólito, do
extremo e do extraterrestre para ensaiar a vida como uma propriedade cósmica em vez de uma particularidade
terrestre.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Ana Paula Pimentel Jacob (UFOPA)
Resumo: Durante a pandemia de COVID-19 houve uma série de pesquisas e investimentos principalmente nas áreas da
saúde em busca de alternativas para sobreviver as incertezas impostas durante a crise sanitária global, que
foi desencadeada após a declaração da pandemia. No Brasil teve-se uma longa discussão sobre o uso compassivo
e off-label de alguns medicamentos em especial destaque a Hidroxicloroquina, os vermífugos e
antiparasitários, tais como Ivermectina. Nos ensaios clínicos, caracterizados como estudos que analisam a
eficácia de determinadas intervenções, há uma série de pesquisas envolvendo tais medicamentos. Sendo assim,
este estudo tem o objetivo de refletir sobre a construção de um saber científico durante a pandemia de
COVID-19 no Brasil. Especificamente, compreender o que, como e as justificativas que alguns cientistas
levaram ao propor estudos que avaliaram a eficácia desses medicamentos no tratamento da COVID-19. Neste
trabalho analiso e reflito a partir da leitura e sistematização de 15 publicações de um grupo de pesquisa na
área da saúde que propôs avaliar a eficácia de diversos medicamentos para o tratamento de COVID-19,
incluindo a Hidroxicloroquina. Além dessas publicações, analiso dez transcrições de entrevistas realizadas
com nove pesquisadores deste grupo, feitas por mim entre setembro de 2022 e fevereiro de 2023. Com este
material faço uma reflexão sobre os ensaios clínicos feitos no Brasil, os principais financiadores desses
estudos, quem são as pessoas que os conduzem e de que forma o Estado contribuiu para a proposição dessas
pesquisas que terminaram por evidenciar que Hidroxicloroquina não é eficaz no tratamento da COVID-19.
Portanto, a medicina que se reconhece por ser baseada em evidencias faz um caminho diferente nesse
período e sua prática em períodos de crise parece ser baseada a partir de evidencias de ineficácia. No
entanto, durante o tempo em que essa produção de evidencias não se consolida, há uma série de aparados,
regulamentos e órgãos que autorizam o uso dessas substancias sem sua devida comprovação científica. Por
isso, a produção de fatos científicos guarda alguma especificidade na pandemia e talvez comum a outras
epidemias. Cria-se lacunas, embaralhamentos e afirmativas sobre tratamentos ainda não evidentemente
eficazes, que repercutem em necropolíticas (CASTRO, 2020) e como se como se constrói o conhecimento
biomédico brasileiro. As reflexões contidas neste trabalho terão como inspiração as obras de Latour e
Woolgar (1997), Martin (1998) e Traweek (1988).
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Beatriz Judice Magalhães (USP)
Resumo: Embora trate de um aspecto da vida social, o que, portanto, posiciona a área no campo das ciências
humanas e sociais, a Economia foi construída aspirando a um status mais próximo das ciências duras,
mirando-se, mais especificamente, em aspectos da mecânica clássica para construir modelos, e valendo-se,
também, de forte instrumental matemático. No entanto, as abstrações dos modelos e teorias econômicas mais
difundidas trouxeram simplificações que, no contexto da atual crise ecológico-climática, mostram-se, no
mínimo, defasadas, senão mesmo infundadas: ignorar o meio-ambiente, ou tomá-lo como mera externalidade se
mostra uma escolha até mesmo paradoxal para uma área que tem a Física como uma espécie de modelo para
construir suas teorias e metodologias, já que tal abstração entra em contradição com as bases da
Termodinâmica (notadamente, com a Lei da Entropia).
A partir da década de 1960, nasce a chamada Economia Ecológica, que, ao considerar o sistema econômico como
uma inserção em algo maior, o próprio planeta, leva em conta que o crescimento da economia gera impactos no
ambiente, podendo tal crescimento ser, inclusive, caracterizado como antieconômico. A inevitabilidade do
decrescimento, um verdadeiro tabu no campo mais amplo das ciências econômicas, é, portanto, algo considerado
por muitos dos adeptos de tal vertente.
Tendo em vista a emergência climática, a discussão a respeito do chamado Antropoceno, ou, de modo mais
geral, a súbita colisão dos Humanos com a Terra (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 26), refletimos
sobre as possibilidades de a Economia Ecológica ampliar seu campo de adesão, ao mesmo tempo que a negação ou
minimização das questões ambientais por parte das teorias econômicas tradicionais é questionada. Nesse
sentido, perguntamos se as mudanças e incertezas epistêmicas impelidas pela proposição do Antropoceno
poderiam afetar os regimes de verdade estabelecidos no campo da Economia. Estaríamos diante da possibilidade
de um enfraquecimento ou mesmo, de um rompimento da alavanca econômica, que reduziu drasticamente a
complexidade dos engendramentos terrestres (LATOUR, 2021)? Nesse contexto, buscamos realizar considerações
sobre o aguçamento das tensões entre Economia e Economia Ecológica conformado pela crise
ecológico-climática. Tais fricções envolvem aspirações e disputas relativas a regimes de verdade, bem como
possibilidades de reconexões com o atrator Terrestre (LATOUR, 2017).
Referências:
LATOUR, B. Onde estou? Lições do confinamento para uso dos terrestres. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
LATOUR, B. Où atterrir? Comment s´orienter en politique. Paris: La Découverte, 2017.
DANOWSKI, D.; VIVEIROS DE CASTRO, E. Há mundo por vir? Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie:
Instituto Socioambiental, 2015.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Isabel Santana de Rose (UFSC)
Resumo: As discussões envolvendo patentes e psicodélicos trazem a tona uma série de questões éticas, legais e
sociais relevantes. Estas incluem o acesso (ou a possível falta de acesso) a futuros medicamentos e
terapias, e os debates sobre iniciativas de repartição de benefícios e reciprocidade com povos indígenas e
populações tradicionais. As reflexões sobre estes temas têm ganhado visibilidade ao longo dos últimos anos,
paralelamente à expansão das pesquisas biomédicas sobre os potenciais terapêuticos dos psicodélicos e ao
crescente interesse da indústria farmacêutica e de setores corporativos nessas moléculas e tratamentos. Ao
mesmo tempo, ainda parece haver uma lacuna de discussões públicas bem informadas sobre o tópico, bem como de
abordagens interdisciplinares e críticas que abordem as múltiplas complexidades envolvidas no patenteamento
de psicodélicos. Partindo de uma perspectiva antropológica, esta pesquisa procura levantar e debater algumas
dessas complexidades e controvérsias, enfocando os desafios e impasses e também os possíveis caminhos e
soluções indicados pelas e pelos nossos interlocutores.
Palavras-chave: patentes; psicodélicos; indústria farmacêutica; repartição de benefícios.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Jessica Emanuelli Pereira da Cunha (Seduc - CE)
Resumo: Desencantamento do mundo é uma expressão cunhada pelo sociólogo alemão Max Weber para designar um
processo histórico milenar de desmagificação da compreensão da realidade, promovido pela religião e pela
ciência, dando lugar à um modo racional, guiado por práticas científicas e pelo avanço tecnológico, de
explicar o mundo. A destruição das imagens mágicas deu lugar aos processos de racionalização modernos, sendo
o racionalismo ocidental a marca fundamental do homem moderno. Esse processo de desencantamento do mundo se
deu a partir da expulsão dos elementos mágicos do âmago das práticas e crenças das grandes religiões,
através do estabelecimento de uma ética de conduta religiosa. Após a desmagificação das religiões
hegemônicas, ocorreu a desmagificação da sociedade ocidental como um todo, onde qualquer crença metafísica
passa a ser vista como irracional, dando lugar à ciência como o modelo de conhecimento que estabelece a
ordem racional das coisas através de uma concepção causal da natureza e do mundo. Este trabalho tem como
objetivo, através da problematização da noção de desencantamento, ampliar os horizontes do fazer científico,
assim como do fazer político, situando historicamente a construção desses saberes e trazendo para o diálogo
outras epistemologias não hegemônicas. Faremos isso através da etnografia realizada com o coletivo Tambores
de Safo, um grupo artivista que mobiliza categorias e compreensões que extrapolam o fazer científico e o
fazer político hegemônico, trazendo para o centro do debate uma construção artístico-política que se mostra
engajada com o debate decolonial que avança dentro e fora da academia e que se coloca como produtor de
conhecimento, trazendo à tona conceitos forjados no seio de epistemologias subalternizadas e evocando a
noção de encantamento. Tambores de Safo é um coletivo artivista composto por pessoas cisgêneras e
transgêneras, lésbicas, bissexuais e pansexuais, que pretende através da arte mobilizar uma produção de
saber politicamente encantada, bem como valorizar a cultura de matriz afroameríndia e produzir conteúdo
artístico-político antirracista e anticapitalista. A produção artivista do coletivo Tambores de Safo, que
conjuga arte com política, se faz a partir de uma epistemologia das encruzilhadas, ou seja, a partir da
confluência de diversos saberes e práticas que se atravessam. As encruzilhadas, domínio de Exu, são
dimensões espaciais-teórico-metodológicas que fundamentam os sistemas de pensamento da cosmologia de matriz
africana. Na lógica da encruzilhada, não há silenciamentos, aniquilações e padronizações. Não há uma ordem
única e nem um sentido único de caminhar. Assim, discutiremos noções como reencantamento e ancestralidade na
produção de saber através da etnografia realizada com o coletivo.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Jorge Garcia de Holanda (UFRGS)
Resumo: Com a emergência de um ecossistema digital e de públicos terraplanistas no Brasil e no mundo em meados
da década de 2010, uma série de artefatos audiovisuais de intenção e potencial persuasivo em circulação em
plataformas digitais foi alçada por esse coletivos (integrados por pessoas que, em sua imensa maioria, não
tinham formação ou atuação na ciência oficial) à posição de evidências incontestáveis da veracidade de uma
Terra de formato plano. Esses vídeos são construídos, em linhas gerais, em torno de preocupações relativas à
promoção de uma chamada ciência de verdade (mimetizando e distorcendo retóricas e práticas da ciência
oficial), à demonstração da existência de uma suposta cosmologia bíblica terraplanista (apoiada em
interpretações literais das escrituras cristãs) e/ou ao desvelamento de indícios de forças conspiratórias
atuando em escala global. Neste trabalho, parto do caso de vídeos terraplanistas de testes de curvatura para
direcionar o olhar àquilo que estes youtubers produziram sob o rótulo de ciência de verdade, analisando
como suas formas de valorizar o experimental (associadas a certas demandas por acesso direto e não mediado à
verdade) materializam-se em fabricações estéticas com efeitos de consolidação de um modelo cosmológico
incompatível com uma longa cadeia de fatos estabilizados pela ciência. Busco também descrever as condições
de apartação do terraplanismo em relação a redes tecnocientíficas, apontando alguns elementos para pensar
como a emergência da defesa da Terra Plana enquanto fenômeno de plataformas digitais formou um circuito
próprio de produção e verificação de fatos suficientemente eficaz para a reconstrução de mundo de seus
adeptos.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Letícia Wons (UFPR)
Resumo: Esta pesquisa foi conduzida sob abordagem interdisciplinar na área de Gênero, Ciência e Educação. Desejo
colaborar com o Grupo de Trabalho mostrando que as formas de veridição universalistas da ciência moderna são
alicerçadas em premissas androcêntricas. Assim, desejo enfatizar a imprescindibilidade de considerarmos
vieses de gênero nas práticas científicas e conferir destaque a modos de conhecimento que se esforçam por
escapar de prescrições que violentam corpos menstruantes. A pesquisa é concentrada no coletor menstrual um
objeto de silicone em formato de taça a ser inserido no canal vaginal para recolher o fluxo da menstruação.
Como o substantivo sugere, o objeto coleta o sangue uterino ao invés de absorvê-lo, característica única
entre os dispositivos menstruais. Sua invenção remonta a 1937, atravessando diferentes momentos de
tentativas de comercialização; no Brasil, foi somente a partir da década de 2010 que conquistou um público
consumidor. A fim de compreender sua tardia emergência, investigo transformações nas ordens
prático-simbólicas da menstruação que o uso dos coletores vem promovendo. Para tanto, destaco dois elementos
orientadores: por um lado, ele apresenta propriedades que demandam acuidade de percepção às características
únicas dos corpos das pessoas que o utilizam e possibilita um contato inédito ao sangue menstrual
invulnerado em cor, cheiro, textura e volume, tensionando estigmas menstruais e processos correntes de
alienação corporal. Por outro, a disseminação do coletor ocorre no Brasil a partir de redes de mulheres que
constroem conhecimento através da troca de suas experiências, num movimento horizontalizado que desafia
normas de etiqueta menstrual e imperativos de manter a menstruação sob a alcunha do segredado. Argumento que
a partir do uso desse dispositivo estão ocorrendo transformações nos discursos e práticas considerados
legítimos sobre corpo, saúde, sexualidade e autonomia, principalmente no que concerne à autoridade médica
frente às habilidades de percepção desenvolvidas pelas usuárias do coletor. Como, afinal, a ciência moderna
descreve a ocorrência da menstruação e quais as implicações dessa descrição? Alinho-me aos preceitos
epistemológicos do feminismo perspectivista (standpoint theories), encarando criticamente os valores de
objetividade, racionalismo e fundacionalismo que ocultam o viés androcêntrico na produção de saber
científico.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Levindo da Costa Pereira Junior (UFMG)
Resumo: Se Geertz afirmou famosamente que somos todos nativos, sintetizando o espirito subversivo da noção
fundacional da antropologia a de cultura (no plural), que conjurou a ideia de uma única e maiúscula cultura,
coube a Wagner afirmar além dessa equidade de fato (grande contribuição do conceito clássico de cultura) a
equivalência de direito entre os discursos do antropólogo e do nativo, bem como a situação de pressuposição
recíproca desses discursos, permanecendo ao mesmo tempo fiel a letra mas transformando o espírito (ou
agência) da noção de cultura.
Salmon, Skafish e Charbonnier, p. ex, associam o deslocamento pretendido pelo giro ontológico, estimulado
pelas antropologias pós-wagnerianas, tentativa contemporânea de reativar a potência outrora
desestabilizadora da cultura. Trata-se, para eles, de reativá-la, já que o multiculturalismo liberal
trivializou a ideia de pluralidade cultural: it is precisely [the] confinement of difference that recourse
to the term ontology was aimed at thwarting.
Assim, se a potência da noção de cultura (no plural) desafiou outrora a Civilização, agora seria a hora e a
vez de outro pluralismo, dessa vez ontológico, desequilibrar a moderna Natureza, não sem a ajuda de Gaia
(mais que uma reativação, uma irrupção; uma alien-acão) e das multinaturezas indígenas. Outros mundos,
conceitos alterados, alien-noções.
Mas se agora se trata de transformar o espírito do conceito de natureza, é preciso avaliar simetricamente as
contribuições vindas tanto de antropologias dos modernas quanto dos extramodernos. Daí a proposta de pensar
o conceito de Gaia ao lado de teorias e conceitos extramodernos bem à primeira vista equivalentes a esta
noção proposta por antropólogos e filósofos diversamente associados ao giro ontológico, bem como por
cientistas relacionados ao que se poderia chamar talvez de virada antropocênica nas ciências da natureza.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Luísa Reis Castro (Universidade do Sul da Califórnia (USC))
Resumo: Há mais de cem anos, campanhas de saúde pública no Brasil tentam eliminar o mosquito Aedes aegypti, uma
espécie conhecida por seu papel na transmissão de vírus patogênicos como febre amarela, dengue, Zika e
chikungunya. Não obstante esses esforços, o A. aegypti continua a proliferar por todo o Brasil. Como parte
de uma nova iniciativa, técnicos e agentes de saúde estão liberando mosquitos nas ruas e becos do Rio de
Janeiro. Esses insetos estão infectados com uma bactéria chamada Wolbachia, um micróbio que reduz
significativamente a capacidade do A. aegypti de transmitir vírus. Nesse caso, as picadas desse mosquito
modificado ainda seriam um aborrecimento, mas não mais uma preocupação de saúde constante e implacável. Ao
transformar o antigo inimigo em um novo aliado, proponentes dessa estratégia estão propondo também uma
mudança na biopolítica maisquehumana: da erradicação à coexistência. De novembro de 2017 a julho de 2018,
realizei pesquisa etnográfica com agentes de saúde pública e técnicos e pesquisadores do projeto Wolbachia
implementando tal estratégia no Rio.
Devido ao longo histórico de tentativas e fracassos do Brasil em reduzir as arboviroses, meus interlocutores
caracterizavam o país, e mais especificamente o Rio de Janeiro, como um local ideal para testar a estratégia
Wolbachia. Além disso, eles argumentavam que, considerando a projeção da expansão geográfica do A. aegypti
causada pelas mudanças climáticas, as ecologias de mosquitos no Brasil seriam um prenúncio do que ainda está
por vir em outros países, principalmente na Europa e Estados Unidos.
Esta apresentação visa investigar como a ecologia da história do Brasil (adaptando aqui a proposta de Hannah
Landecker por uma biologia da história) é entendida como o futuro alhures. Para tal, examino
etnograficamente de que maneira cientistas e técnicos do projeto Wolbachia instrumentalizavam as relações
historicamente constituídas entre humanos, mosquitos e vírus para reimaginar possíveis futuros multiespécie.
Ao propor pensar uma (futura) ecologia da história busco repensar as relações espaciotemporais entre Norte
Global e Sul Global em um contexto de transformações planetárias. Ou seja, busco oferecer uma forma de
compreender o momento atual, mas, ao mesmo tempo, resistir à reificação de certos lugares como o passado ou
futuro.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Marcos de Almeida Matos (UFAC)
Resumo: Ao longo dos últimos cem anos pelo menos dois modos de fazer território se enfrentam nas margens do alto
rio Iaco, afluente da margem direita do alto rio Purus: de um lado, as iniciativas para demarcar terras e
seringais, descrever e fixar grupos e lugares, territorializar conjuntos de pessoas, estabelecer direitos e
prerrogativas quanto aos modos de produzir e de viver, e consolidar o domínio sobre as principais vias de
comunicação; de outro, as viagens pelos varadouros que conectam as cabeceiras dos rios, viagens de canoa
para trocar coisas e fazer festas junto a coletivos distantes, coletivos que se organizavam ao redor de
pessoas maiores ou antigas, os grandes sogros e sogras que abriram lugares, criaram seus filhos, que
periodicamente saiam em viagem para visitar parentes distantes. Esse contraste heurístico entre duas formas
de territorialidade pode ser pensado à luz de uma comparação entre os relatos sobre a invasão do alto rio
Iaco, aqueles registrados no arquivo colonial e aqueles que são narrados pelos wutsrukatenni manxineru (os
velhos que conhecem as histórias). Uma transformação interessante desse contraste por ser elaborada também
quando se comparam os recentes processos de construção de empreendimentos voltados para a comercialização
futura de créditos de carbono que lançam mão de técnicas de construção de inventários florestais e do uso
extensivo de tecnologias de georreferenciamento; e a mobilização pela identificação, delimitação e
demarcação da Terra Indígena Riozinho do Iaco, que procura fazer o Estado reconhecer a ocupação tradicional
de um território. Os modos de conhecer e descrever são formas de estabilizar terras e coletivos que
constituem territórios sobrepostos e em disputa. A comunicação proposta pretende refletir sobre a natureza e
os efeitos destas diferenças entre as formas de conhecer e entre as formas de ocupar a terra.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Mariana Esteves Petruceli (UNB)
Resumo: A epidemia de Zika na Região Metropolitana de Recife (RMR), que ocorreu entre 2015 e 2017, afetou
majoritariamente famílias de baixa renda, negras e pardas, com baixa escolaridade e moradoras de bairros já
negligenciados pelo Estado. À época, a resposta científica foi formulada a partir do encontro da classe
científica com essa parcela da população a partir de mutirões de saúde, pesquisas clínicas e acompanhamento
periódico em projetos que mesclavam a assistência clínica e a pesquisa científica.
A produção científica possui ritmos e necessidades que, muitas vezes, não acompanham as demandas das
populações beneficiadas. Tal questão se faz presente na vasta produção antropológica sobre a experiência de
famílias afetadas pelo Zika Vírus e suas intercorrências (Valim, 2017; Carneiro; Fleischer, 2018; Alves,
2020), bem como as demandas organizadas pelas associações (Scott, 2018). De acordo com pesquisas com as
famílias afetadas, muitas destas se queixaram da falta de retornos por parte dos cientistas, bem como pelo
assédio científico sofrido, e optaram por não participar de demais projetos de pesquisa.
O recrutamento de sujeitos se tornou um tema recorrente durante minhas entrevistas com profissionais da
saúde e pesquisadores durante minha incursão etnográfica à Região Metropolitana de Recife (RMR) em maio de
2022. Demonstrando que a dificuldade em engajar os sujeitos de pesquisa não apenas dificultava o andamento
dos empreendimentos de pesquisa em si, mas também da formulação de uma resposta científica à epidemia
vigente.
Desse modo, esse trabalho tem como objetivo apresentar a questão do recrutamento de sujeitos de pesquisa no
contexto da pesquisa sobre o Zika em Recife/PE a partir da perspectiva dos cientistas. Apoiada nos escritos
da Crítica Feminista à Ciência e Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia, pretendo discutir sobre os embates
entre pesquisadores e pesquisados, tal como abordado por Steven Epstein (2008) e demais autores da área,
apresentando os recursos acionados e as dificuldades enfrentadas neste processo.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Marina Paixão Rodrigues de Lima (UFMG)
Resumo: A Mitologia, ou o estudo dos mitos é um dos campos compartilhados entre a História e a Antropologia.
Nessa última, as narrativas míticas ganharam destaque a partir do século XX, à medida que a pesquisa
etnográfica se estabelecia nas regiões sob colonização. A transposição de certos elementos da grade
analítica dos mitos de sociedades antigas, como a Grega, para a análise das narrativas indígenas pode ser
objeto de problematização, na medida em que se tratam de mundos diferentes em tempo, espaço e realidade.
Nesse sentido, o trabalho é uma experimentação crítica sobre a utilização da categoria mito nos estudos
etnológicos e a dicotomia estabelecida entre mito e pensamento. De um lado, o pensamento caracterizado como
reflexivo, filosófico, positivo, científico, um tanto-faz de adjetivações típicas do discurso da Modernidade
e, de outro, o mito, ora colocado em oposição a filosofia, ora a ciência, mas sempre, implícita ou
explicitamente, em posição de inferioridade, estático no tempo, grudado a dimensão concreta e não reflexiva,
e nunca um sistema de conhecimento capaz de descrever, refletir e agir sob a realidade. Realizo uma breve
análise de três textos, curiosamente todos de autoria francesa, relevantes nos estudos das narrativas
míticas, buscando, em um primeiro momento, descrever o que os autores caracterizam como mito e como
pensamento, e apontar os aspectos em que se aproximam. O percurso analítico parte da abordagem de
Jean-Pierre Vernant (1990), acerca do mito e do pensamento grego, passa pela abordagem estruturalista dos
mitos no contexto ameríndio, trabalhando com a proposta de Claude Lévi-Strauss (1987), e se finaliza com as
reflexões de Pierre Clastres (1990) acerca do conjunto de narrativas do povo Guarani, dentre os quais
pesquisou na década de 1960. Depois da exploração dos conceitos de cada autor, proponho a crítica. Para
isso, recorro a Mauro Almeida (2013) e o seu reconhecimento da existência de conflitos entre ontologias.
Busco mostrar como o fazer etnológico dos autores explorados trata os sistemas de conhecimento indígenas a
partir de pressupostos ontológicos não-indígenas, e como esse tratamento não é pacífico, mas conflitivo.
Argumento que pensar o conjunto de narrativas indígenas da mesma maneira que se pensa sobre os mitos gregos,
isto é, sobre as histórias míticas de origem da Modernidade, é forçar incompatibilidades, é lidar
conflituosamente com o pensamento indígena, mesmo que com uma roupagem relativista. Por fim, em um último
momento do trabalho, apresento alternativas indígenas para o tratamento teórico das narrativas dos povos
ameríndios e uma reflexão sobre o que é e o que pode ser ciência para além dos moldes modernos, baseando-me
no trabalho do antropólogo João Paulo Lima Barreto (2018), do povo Yepamahsã (Tukano).
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Mateus Oka de Farias (UNICAMP)
Resumo: Na região rural de Boa Vista, localizada no município de Gilbués (PI), as práticas de conhecimento de
cientistas e de mateiros se encontram pragmaticamente. As pesquisadoras são estudantes do comportamento de
macacos-prego (Sapajus libidinosus) da Universidade de São Paulo, e os sertanejos são contratados por elas
como assistentes de campo que coletam, in loco, diariamente dados empíricos desses primatas. Dentre as
concordâncias e as controvérsias partilhadas nessa relação, um dos pontos considerados pacíficos é o do
reconhecimento individual dos macacos por nomes pessoais. Saber reconhecer individualmente um macaco é,
tanto para mateiros como para cientistas, um bom sinal da competência para estudar primatas e uma conquista
só alcançada pelo tempo dedicado em campo na companhia dos animais. No entanto, os sertanejos e as
pesquisadoras parecem se valer de métodos por vezes divergentes, ou com ênfases diferentes, para o
reconhecimento dos macacos. Os mateiros, treinando-me na prática, me dizem com frequência que cê tem que ver
além do que nóis vê. Esta é uma asserção própria dos sertanejos, para quem conhecer os macacos parece
envolver operações intelectuais menos óbvias do que a descrição de aspectos morfológicos e relacionais,
elencados pelas cientistas como pistas para reconhecer os macacos. Isto é, se ambas as partes indicam, em
graus distintos, fazer uso de procedimentos como a comparação, a discriminação, e a identificação de
contextos e relações, no caso dos mateiros há ainda um tipo de imaginação, ou criação, envolvida no processo
de conhecer os macacos, o que não é explícito discursivamente entre as pesquisadoras. Antes de elaborar um
contraste final entre essas formas de conhecer e se relacionar com os macacos, o que parece é que tanto para
os mateiros como para as cientistas a observação de primatas não se realiza por meio de uma visibilidade
direta e transparente dos animais, mas é aprendida e negociada com eles. Assim, o objetivo desta comunicação
é de apresentar uma pesquisa baseada em um trabalho de campo com primatólogas, mateiros e macacos-prego,
alargando o campo das controvérsias que constituem as práticas de conhecimento e de reconhecimento dos
macacos, e as filosofias implicadas nestas práticas. Com isso, talvez possam ser recriadas as distâncias e
as aproximações entre os conhecimentos científicos e não-científicos, de modo que o exercício nos inspire a
desacelerar o estabelecimento de fronteiras definitivas entre os saberes.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Mayra Nascimento Fonseca (UFG)
Resumo: Resumo: O ensaio retoma trechos de uma entrevista realizada em 2023 com a Dra. Debora Rosa, médica
brasileira especialista com reconhecida atuação em ginecologia natural, para discutir os motivos que
atualmente delimitam quando um conhecimento é nomeado como ciência válida e quando é nomeado como curanderia
ou crendice, nos atendimentos relacionados à saúde da mulher. Em sua atuação profissional clínica e
acadêmica, Dra. Debora Rosa menciona antibióticos, banhos de ervas, cirurgias e vaporizações do útero como
procedimentos que têm o mesmo nível de importância. Ela retoma a ciência dos homens brancos, o conhecimento
das mulheres, a sabedoria das plantas e ervas. Equipara protocolos da medicina formal às receitas oriundas
dos saberes localizados de mulheres afro indígenas. Tudo isso gera uma conduta, uma ecologia de práticas,
ainda pouco frequente na ginecologia brasileira. Um trabalho que atrai cada vez mais adesão de mulheres e
críticas dos conselhos dos profissionais de saúde que não reconhecem a ginecologia natural como uma
especialidade médica.
Palavras-chave: Ciência. Ecologia das práticas. Saberes localizados. Ginecologia natural. Tecnologias de
gênero.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Renato Jacques de Brito Veiga (USP)
Resumo: Uma amostra de água subterrânea, realizada num poço artesiano às margens do rio Paraopeba, atingido por
um crime/desastre cometido pela Vale S.A., aponta uma certa quantidade de uma determinada "substância
química de interesse". Tal quantificação, acima dos parâmetros legais, gera um "cálculo de risco" que indica
que a utilização daquela água pode aumentar as chances de se desenvolver doenças de pele. A princípio, a
população ribeirinha, que utiliza tal água para o banho, dentre outras atividades, se sente assistida, visto
que os problemas de pele ganharam proporções inéditas após o crime/desastre. Contudo, numa reunião
devolutiva, o coordenador técnico do projeto em questão afirma à população que esses estudos apenas avaliam
"riscos e probabilidades", mas não são capazes de estabelecer "nexo de causa" entre a presença da substância
identificada (e o risco a ela atribuído) e o adoecimento factual da população, o que só seria possível com a
realização de outros tipos de estudo. Está instaurado o conflito. Tal relato, baseado em fatos reais, é
fruto do meu trabalho atual como auditor do Ministério Público de Minas Gerais no processo de reparação após
o crime/desastre cometido pela Vale S.A. em Brumadinho, mais especificamente nos Estudos de Avaliação de
Risco à Saúde Humana. Com este trabalho, busco: a) debater as elaborações e disputas em torno do conceito de
"risco"; b) compreender as fragilidades e incertezas que embasam a "ciência do risco", em especial no que se
refere ao risco à saúde humana em razão do contato com contaminantes químicos; c) debater as elaborações e
disputas em torno do conceito de "reparação socioambiental".
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Ricardo Alexandre Pereira de Oliveira (UNB)
Resumo: Proponho apresentar um dos capítulos da tese de doutorado (em elaboração) acerca do Centro de Pesquisa
Indígena (CPI), uma iniciativa da União das Nações Indígenas (UNI) e de professores da Universidade Católica
de Goiás (UCG) que abarcou projetos-piloto voltados a combinar conservação ambiental, desenvolvimento
socioeconômico de comunidades de diferentes povos e a formação de pesquisadores indígenas nas áreas de
Biologia e Direito. A iniciativa ocorreu entre 1989 e 1996 e teve como pilares a tentativa de consolidar um
movimento pan-indígena no país, a interseção com o ambientalismo através de ONGs transnacionais, e a
transformação da relação entre ciências naturais e povos indígenas.
Em 1979, Daniel Gross e colaboradores criaram um modelo para explicar as interrelações entre degradação
ambiental e envolvimento de comunidades indígenas no mercado, comparando esse quadro entre os
Kayapó-Mekrãgnoti, os Xavante (de Pimentel Barbosa), os Bororo (de Gomes Carneiro) e os Canela
(Ramkokamekra), em que sugeriram a irreversibilidade do processo desencadeado pela intensificação da caça,
que se tornaria inviável devido à sedentarização forçada pelo avanço da fronteira econômica/agropecuária
(Gross et al, 1979). Esse modelo foi contestado por pesquisadores de campo, que enfatizaram características
históricas, políticas e cosmológicas da relação entre povos indígenas do Brasil Central e a natureza (SANTOS
et al, 2014). Em 1989, uma parceria entre professores da UCG, a ONG Núcleo de Cultura Indígena (da UNI) e a
Associação Xavante de Pimentel Barbosa (AXPB) resultou na criação do Projeto Jaburu, voltado ao manejo da
fauna cinegética e ao aproveitamento econômico da flora do cerrado, em conexão com o CPI, sediado em uma
chácara na região metropolitana de Goiânia. Os projetos obtiveram financiamento de diversas organizações
ecologistas internacionais, além do apoio de instituições de pesquisa nacionais, como a Embrapa e a
ESALQ-Piracicaba, além de departamentos da própria UCG. Naquele contexto, uma equipe formada por um zoólogo
e caçadores Xavante tentou aferir o status de populações de espécies animais silvestres quanto a condições
de reprodução biológica e a riscos de extinção local. Outra equipe foi formada para executar o
reflorestamento das áreas degradadas pela agropecuária, que os Xavante haviam retomado. Uma terceira equipe
foi formada para dar existência a uma fábrica indígena voltada ao beneficiamento de frutos do cerrado. Em
meio a sonhos de anciãos Xavante, teorias da conservação, princípios econômicos e utopias sociopolíticas do
período da redemocratização do país, os projetos-piloto associaram redes que até então agiam de modo
separado, criando conexões parciais entre os atores, que experimentaram a criação e a dissolução da
iniciativa.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Roxana Ruiz Buendía (UFSB)
Resumo: Um ano depois de ter começado o doutorado em Estado e Sociedade, pela Universidade
Federal do Sul da Bahia, em março de 2022, me mudei para a Reserva Extrativista (Resex)
de Canavieiras, área de estudo da pesquisa que iria começar a desenvolver junto a
lideranças pesqueiras artesanais. No anteprojeto propunha analisar o processo de formação
de pescadoras artesanais da Resex como lideranças políticas que lutam pelo território do
qual suas comunidades tradicionais dependem, ao conduzir uma pesquisa participativa nos
termos assinalados por Alfonso Torres Carrillo: investigação que envolve as pessoas
afetadas por uma situação considerada por elas mesmas como uma problemática social, na
sua identificação, estudo e solução, para o fortalecimento do coletivo. Na primeira ocasião
que tive para conversar com algumas lideranças da Resex, lhes expliquei que o projeto era
apenas minha chave de entrada à Universidade e um ponto de partida para a co-construção
do tema da pesquisa junto com elas. Também salientei que, dada a metodologia usada, o
tema não era fixo e que poderia ser alterado a partir da relação que construíssemos e com o
contexto no geral. As lideranças acolheram a ideia de fazer uma pesquisa participativa e
deram sugestões de tal importância que, desde esse momento, a orientadora, o co-
orientador acadêmicos e eu os passamos a reconhecê-los plenamente enquanto co-
orientadores temáticos da pesquisa. Durante os primeiros meses de convivência com as
lideranças, me foram relatadas histórias de racismo intelectual sofridas pessoalmente. Esse
termo foi usado apenas por uma liderança, mas sua essência tem sido vivenciada pelas demais: desprezo que
acadêmicas e técnicas manifestam diante do uso do conhecimento tradicional em cenários de gestão ambiental
pública, como a gestão compartilhada de
Unidades de Conservação, no caso, a Resex. Dentre os temas mencionados pelas
lideranças, a discriminação étnico-epistemológica foi o que me causou maior impacto e, por
tanto, tem sido meu guia para o amadurecimento da pesquisa. Com o apoio da orientadora e
co-orientador acadêmicos, atualmente reconheço à horizontalidade epistêmica como um
elemento teoricamente implícito nas abordagens da pesquisa participativa, mas que,
também, se constitui como seu grande desafio. A construção moderna de ciência é contraria
a quaisquer ideias de horizontalidade. Portanto, integrá-la de forma teórica e,
especialmente, prática na pesquisa implica uma radical desconstrução e re-construção do
que se entende por investigação. Propostas teóricas que apontam nessa direção, como a
Ecologia dos Saberes e o Encontro de Saberes, se baseiam na construção de
conhecimento a partir da prática e inclusão de saberes não acadêmicos. É o que farei: mostrar,
em um caso, como isso pode acontecer.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Thais Valim (UFRN)
Resumo: Quando a palavra Zika entrou na vida de Laura Gomes, ela tinha 25 anos recém completados. Havia dado à
luz Gabriel, seu primeiro filho. A gestação de Laura começou tranquila: nas primeiras duas consultas,
estava tudo certo. Na terceira, quando ela foi fazer o ultrassom morfológico, o exame acusou a
microcefalia. Os médicos, segundo Laura, não souberam explicar muito bem o que estava acontecendo. Uma
resposta aparentemente menos incerta veio após o nascimento do garoto: A microcefalia de seu filho está
associada à infecção pelo Vírus Zika, explicou um neurologista. Ele perguntou se ela havia tido algum
sintoma durante a gestação e, naquele momento, Laura lembrou-se que, realmente, lá pelo segundo mês de
gestação, algumas manchinhas vermelhas pipocaram por todo o seu corpo, mas foram embora e não lhe trouxeram
preocupação. Depois daquela primeira interação, a palavra Zika não saiu mais da vida de Laura e sua família.
Havia Zika no laudo que ela precisava obter para acessar alguns direitos do filho; havia Zika nas
reportagens da mídia sobre crianças como seu filho, sobre famílias como a sua; o Zika estava na boca de
pesquisadores que cruzavam seu cotidiano, em folhetos do Ministério da Saúde, no código de doenças. Uma vez,
durante uma palestra, Laura contou para a plateia sobre a primeira vez que foi falar em público, diante de
tantas pessoas. Em um tom cômico, ela relatou que estava tão nervosa que, quando recebeu uma pergunta,
esqueceu o nome da palavra... Zika! Ao contar essa história, ela deu uma honesta gargalhada. Como ela
poderia esquecer justamente a palavra Zika? Essa palavra penetrou seu cotidiano e nada deixou no lugar.
Esta palavra que passou a identificar, classificar e conectar tantos aspectos de sua vida. Até chegar em
seus ouvidos como a causa da microcefalia de seu filho, contudo, o Zika passou por um longo percurso. Neste
paper, procuro pensar nessa rede de transformações do Vírus da Zika: das salas de reunião onde ele ocupava o
lugar de hipótese da microcefalia até um marcador de laudo exigido para a obtenção de benefícios sociais.
Para isso, procuro, a partir de um conjunto de entrevistas com epidemiologistas que trabalharam na resposta
científica a essa epidemia, recuperar algumas das práticas, dinâmicas e articulações que fizeram a SCVZ
saltar de uma hipótese para um fato científico, emergindo como uma nova "entidade nosológica".
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Vinicius Kauê Ferreira (UERJ)
Resumo: A partir de uma pesquisa etnográfica sobre a circulação acadêmica dos cientistas sociais indianos que
fazem carreira na Europa, proponho uma reflexão sobre o papel desempenhado pelo não-dito e pelo silêncio em
uma etnografia do meio acadêmico. Meu trabalho de campo, que consistiu na observação participante em dois
centros de pesquisa especializados em estudos sobre a Ásia do Sul, um na Inglaterra e outro na Alemanha,
mostrou que uma etnografia da vida acadêmica inevitavelmente enfrenta tabus e 'inomináveis' (Mills and Berg,
2010: 336), mas também um lugar ambíguo do corpo e das emoções na construção de trajetórias acadêmicas
(Bourdieu, 2003 [1997]). Nesse contexto, acabei por recorrer a uma antropologia da "linguagem não
representativa" (Favret-Saada, 1977) a fim de compreender o potencial comunicativo das interações
face-a-face e das trocas não verbais (Goffman, 1974). No contexto do meu trabalho de campo, rapidamente
percebi que a palavra falada era frequentemente menos importante do que certa corporeidade, visto que o
enunciado de certas experiências, sentimentos ou opiniões poderia tomar a forma de uma espécie de afirmação
implícita cuidadosamente construída ao longo ato de testemunho.
Nesta exposição, exploro em detalhes uma situação etnográfica que, apesar de específica, permite uma
reflexão mais ampla sobre as palavras e o corpo na construção de conhecimento antropológico. A situação em
questão diz respeito a duas entrevistas realizadas com uma das minhas interlocutoras na Inglaterra, diretora
de um centro de pesquisa londrino. Como uma "mulher de pele escura" (dark skinned sendo o termo amplamente
empregado na Índia), nascida numa família de classe baixa e de casta mista, esta pesquisadora falou
repetidamente dos "desafios" de sua vida num ambiente dominado por pessoas de origens sociais privilegiadas,
de altas castas e de pele clara (fair skinned). Ainda que ela falasse muito sobre esses desafios, ficaria
claro para mim que havia uma mensagem que permanecia no nível de "conhecimentos não declarados, até mesmo
venenosos" (Das, 2007) que não era jamais articulada. Apesar do fato de que ela faz conexões diretas entre
discriminação de classe, casta e gênero, migração e vida acadêmica, duas coisas eram evidentes: havia uma
dimensão corporalizada no seu testemunho que constituía, ao mesmo tempo, o objeto de sua reflexão e uma
forma de "dizer"; e, para além do dito, ela tecia conexões que apenas expressavam algo quando analisados à
luz do seu ato de testemunho em sua totalidade.
Em suma, sugiro que uma análise antropológica do silêncio implica ir além da fixação disciplinar sobre o
"representado", ou seja, a palavra falada, o ato realizado ou a imagem. Aqui, atos fragmentários de
comunicação tornam-se elementos etnográficos centrais.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
William Paulino Rosa (UNICAMP)
Resumo: Minha pesquisa de doutorado em antropologia social investiga os usos, sentidos e processos de
materialização da saúde da população negra nas práticas e saberes médicos e nas políticas de saúde.
Promulgada em 2009 no Brasil, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) oferece
orientações e evidências sobre as doenças mais prevalentes para pessoas autodeclaradas pretas e pardas,
destacando como raça e racismo produzem efeitos concretos nos processos de nascimento, vida e morte. Neste
trabalho, busco descrever alguns impasses encontrados durante o trabalho de campo, que tem sido conduzido
desde março de 2023, centrados no suposto descolamento entre saberes e práticas, além da invisibilidade da
saúde da população negra no cotidiano de um centro de saúde de atenção primária. Tais impasses conduzem-me a
buscar o que está ausente, em vez de levar a sério apenas o que está presente. Minha atenção à prática
surgiu, precisamente, após um evento etnográfico no qual uma profissional de um grande hospital público da
cidade de São Paulo interpelou um médico-pesquisador em sua apresentação de evidências científicas sobre os
impactos do racismo nos processos de saúde e adoecimento, dizendo mas, quando vamos à prática é tudo
diferente. Assim, sobre quais diferenças ela se refere? Inicialmente, minha proposta com a pesquisa de
doutorado era focar nos processos de produção de conhecimento científico sobre saúde da população negra na
medicina. No entanto, ao longo do trabalho de campo, percebi a importância de atentar-me a como esses
saberes fazem-se presentes ou não nas práticas, já que, na visão dos sujeitos da pesquisa, há mais
descolamentos do que aproximações. Diante disso, compreendi que seria necessário um esforço etnográfico para
tornar visível coisas que estão supostamente invisíveis, uma vez que a saúde da população negra, assim como
raça e racismo, não são deliberadamente acionados nas práticas médicas, mesmo estando presentes através de
suas ausências. Por fim, tomo emprestada a ponderação feita pela funcionária do hospital e a torno uma
pergunta especulativa para este trabalho: por quais motivos, quando vamos à prática, tudo é diferente?
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Wither Favalessa dos Santos (UFES)
Resumo: O convite para "colocar os pés na lama" durante uma apresentação sobre meu projeto de pesquisa desafiou
minha abordagem em relação às ondas gravitacionais, especialmente após uma discussão sobre a metáfora da
"onda de lama" em um trabalho da minha orientadora. Essa comparação destacou a necessidade de uma postura
etnográfica na pesquisa. Ao explorar o Programa de Pós-Graduação em Astrofísica, Cosmologia e Gravitação
(PPGCosmos) na UFES, percebi a presença das ondas gravitacionais em várias atividades, incluindo
publicações, cursos e eventos como o Inverno Astrofísico. Destaco neste trabalho a percepção etnográfica da
participação das Ondas Gravitacionais como fenômeno/metáfora na solução de um problema que remete a física
newtoniana chamado de ação a distância. Os artigos reunidos no Cadernos de Astronomia publicados pelo
PPGComos abordam a detecção das ondas gravitacionais e sua contextualização histórica, destacando uma
narrativa intrigante sobre o experimento do interferômetro de Michelson. Originalmente, esse experimento,
desenvolvido no século XIX por Michelson e Morley, visava confirmar a existência de um éter como meio de
propagação da luz, mas contrariou essa hipótese. O aparato, baseado na sobreposição de feixes de luz, não
mostrou diferença de fase esperada se o éter estivesse presente. Isso desafiou a visão de que a luz
necessitava de um meio físico para se propagar. Apesar de inicialmente visto como um fracasso, esse
experimento tornou-se revolucionário, servindo de base para a teoria da relatividade restrita de Einstein e
estabelecendo um princípio análogo ao utilizado na detecção de ondas gravitacionais, abrindo espaço para
explicações mais complexas sobre a ação a distância de interações fundamentais como a eletromagnética e
principalmente a gravitacional.