ISBN: 978-65-87289-36-6 | Redes sociais da ABA:
Grupos de Trabalho (GT)
GT 081: Os limiares do corpo: a circulação de substâncias corporais e a produção de pessoas e relações
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Coordenação
Jane Araújo Russo (UERJ), Fabíola Rohden (UFRGS)
Debatedor(a)
Marina Fisher Nucci (UERJ)

Resumo:
As substâncias que circulam no interior dos corpos de homens e mulheres, cis e transgêneros, sempre foram e são, em diferentes culturas e grupos humanos, portadoras de algum tipo de poder, o que as leva a serem consideradas seja perigosas, seja benfazejas, produtoras de malefícios, poluições ou vantagens para quem com elas entra em contato. Hoje em dia seu poder é cada vez mais retraduzido para uma linguagem bioquímica, tendo inclusive surgido, a partir dessa visada científica e objetivante, um conjunto de novas substâncias invisíveis, mas não por isso menos poderosas. Um poder desencantado e objetificado, mas ainda assim bastante potente, agindo na constituição de corpos e subjetividades e, como consequência, de novos personagens sociais. O objetivo desse GT é acolher trabalhos que, a partir de diferentes tipos de pesquisa, reflitam sobre o modo como as substâncias corporais, sejam elas produzidas pelo corpo ou sintetizadas fora dele, materizalizadas de diferentes formas (como, por um lado, o sangue e o leite materno e, por outro, os hormônios e os neurotransmissores), agem no modo de ser das pessoas, o que pode ocorrer seja através de tratamentos com ou sem indicação médica e de novos tipos de autocuidado, seja de um controle mais ou menos rigoroso da troca de fluidos corporais entre as pessoas.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Síndrome dos Ovários Policísticos: experiências e substâncias em grupos no Facebook
Amandha Sanguiné Corrêa (UFRGS)
Resumo: O presente trabalho parte de discussões no campo do gênero, saúde, hormônios, internet e aprimoramento de si. Como objetivo, busca investigar como os sintomas da Síndrome do Ovário Policístico (SOP) impactam as mulheres, por meio da análise de discursos produzidos e compartilhados em grupos temáticos na rede social Facebook. Esta pesquisa foi desenvolvida no âmbito do projeto Novas formas de circulação de conhecimento e de acesso a tecnologias biomédicas: cenários contemporâneos para transformações corporais e subjetivas (coordenado por Fabíola Rohden – IFCH/UFRGS). A aposta deste trabalho é que as transformações corporais em contextos que extrapolam o cuidado com a saúde, sobretudo a partir de procedimentos motivados pela busca do aprimoramento de si, com foco nos contornos corporais e na performance física, não pode ser apartada das interações e da produção de discursos acerca dos recursos biomédicos, tidos como inovadores e essenciais ao bem-estar estético. Para tanto, partiremos de uma etnografia realizada entre 2020 e 2022, as quais tiveram como foco o acompanhamento de publicações em grupos sobre Síndrome dos Ovários Policísticos no Facebook, balizada com o conteúdo produzido por profissionais da área da saúde no Instagram e o mapeamento e leitura de artigos da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) considerados relevantes para o tema. A Síndrome dos Ovários Policísticos é tratada pelos profissionais da área da saúde como uma síndrome endócrina, metabólica e reprodutiva que atinge entre 6% e 16% das mulheres em idade reprodutiva. Observa-se um aumento no foco dedicado aos efeitos endócrinos da SOP, uma vez que se acredita que os sintomas decorrem principalmente da resistência à insulina, ou seja, a dificuldade deste hormônio em facilitar a entrada da glicose nas células. A resistência à insulina resulta em uma maior quantidade de testosterona livre no corpo das mulheres, dificultando a ovulação, aumentando a irregularidade menstrual e desencadeando outros sintomas característicos da síndrome, como o aumento de pelos, da acne e da queda de cabelo. Através da inserção nos grupos, foi possível investigar as experiências das mulheres que enfrentam a SOP. É importante ressaltar que essas vivências estão intimamente ligadas a aspectos estéticos, pois expressões como acne, excesso de pelos e ganho de peso são interpretadas como indicadores do controle ou descontrole da síndrome. Nos relatos das participantes, observa-se um grande descontentamento quando esses sintomas se manifestam de forma exacerbada, revelando a associação da SOP a padrões tradicionais e restritos de beleza e feminilidade.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Os neurotransmissores e a substancialização da dor na fibromialgia: produzindo uma síndrome orgânica e identidades somáticas.
Ana Carolina Verdicchio Rodegher (UNICAMP)
Resumo: A fibromialgia (FM) é uma síndrome com alta incidência em mulheres, que se caracteriza principalmente por dores musculoesqueléticas crônicas e por manifestações de fadiga, distúrbios do sono e alterações cognitivas e psiquiátricas. Parte das chamadas Síndromes Funcionais (SF), definidas pela ausência de lesão anatômica e pela falta de explicação causal dos seus sintomas e de seu aparecimento nos indivíduos, até hoje ela não obteve consenso quanto à sua etiologia (causa de seus sintomas). Pesquisas recentes realizadas através de neuroimagens, entretanto, indicam como a principal hipótese etiológica da síndrome uma desordem no processamento da dor como fator determinante para seu aparecimento e desenvolvimento. Esses estudos apontam o Sistema Nervoso Central (SNC) como a possível sede da afecção e sugerem a existência de disfunções nos neurotransmissores como a chave para compreensão da percepção exacerbada da dor em pessoas com fibromialgia. Nesta proposta de trabalho, pretendo analisar a hipótese da disfunção dos neurotransmissores como uma forma de substancialização da dor na fibromialgia, que passa a ser compreendida como um fenômeno predominantemente orgânico, a partir deste argumento. Em um plano mais geral, esta hipótese médico-científica corrobora com os variados repertórios discursivos e práticos que elegem o sistema nervoso e, em especial, o cérebro, como lócus privilegiado para compreender a constituição física, psíquica e sociocultural dos indivíduos. Informada por este debate, proponho refletir os neurotransmissores como uma substância que é, a um só tempo, produto e produtora de subjetividades, identidade, sujeitos e relações. No caso analisado, as pessoas com fibromialgia são produzidas (e produtoras) não só pela substância neurotransmissores”, mas pelos diferentes sentidos e efeitos que essa substância permite mobilizar no cotidiano. Destaco, por fim, o uso da hipótese da disfunção dos neurotransmissores como uma estratégia de legitimação da fibromialgia por parte das pacientes. Em um contexto de disputa pelo reconhecimento social de doenças que não apresentam lesão ou causa definida, tomar os neurotransmissores como a substância central que define a síndrome é um modo de materializar a sua existência como uma afecção somática e validar os corpos, vozes e identidades que carregam a dor consigo.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Copylefts no contexto brasileiro: Manipulações hormonais inventivas de gênero e relações (extra) médicas
Ana Clara Martins Krueger (PUC-RIO)
Resumo: Paul Preciado (2018) afirma que após a Segunda Guerra Mundial explicita-se um processo no qual o governo biomolecular (fármaco-) e semiótico-técnico (-porno) tomam conta expressivamente do sistema capitalista. Isso se materializa, em um diálogo foucaultiano, nos campos da psicologia, da sexologia e da endocrinologia. O uso sintético dos hormônios seria um exemplo desse fenômeno. Preciado (2022) argumenta que esse uso é controlado e endereçado para o controle de certos grupos da população. Por sua vez, o termo Copyleft (Preciado, 2018), em contraponto com a palavra copyright, determina aqueles e aquelas que acreditam que os hormônios utilizados para as chamadas transições de gênero não deveriam estar sob controle das indústrias farmacêuticas, nem sob regimento do governo. Minha apresentação pretende refletir sobre vivências próximas dessa caracterização no contexto brasileiro, abordando pessoas que se hormonizam de forma caseira ou independente devido a diferentes fatores, mas, de todo modo, escapando das recomendações do regulamento médico e da diligência do Estado. Entretanto, meu argumento é que, cercadas e cercados pela precarização, medo e preconceito, essas experiências não se encaixam completamente na teoria-prática de Preciado. O objetivo do trabalho é exercitar um olhar cuidadoso para quem, por algum motivo, percorre trajetórias de manuseio hormonal inventivas de gênero fora de qualquer um dos acompanhamentos médicos estabelecidos idealmente pela legislação brasileira ou recomendações feitas por manuais de saúde. Parte-se, então, da investigação acerca da relação entre o convívio com/consumo das tecnologias de gênero (De Lauretis, 1987), dos processos de autonomia vinculadas ao sujeito e do uso dos medicamentos de gênero, termo cunhado por Débora Diniz e Rosana Castro (2011). Elaboro, assim, com base na produção de Jane Russo e Ana Teresa A. Venâncio (2006), uma pequena discussão acerca das diretrizes médicas como o DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders). Com uma análise inspirada em autores como Foucault (1985), Preciado (2018), De Lauretis (1987) e Butler (2018), essa pesquisa se baseia em dois estudos de caso com pessoas que consumiram ou consomem hormônios sexuais dentro do perfil caracterizado anteriormente, vivência a qual este trabalho designa como autônoma, mas que também compreende como a criação/fissura de diversas relações entre indivíduos e instituições.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Experiências transmasculinas: a ingestão de testosterona, as modificações corporais e a constituição de uma identidade masculina
Andressa de Freitas Ribeiro (UNILAB)
Resumo: Este artigo trata do processo de ingestão de testosterona e seus efeitos em experiências transmasculinas. Para tanto, utiliza a metodologia da análise de narrativas de vida de quatro homens trans, da cidade de Salvador-Ba. O artigo fundamenta-se na análise de narrativas sobre o período de hormonização em experiências de transição entre uma expressão corporal de gênero a outra. A hormonização inicia-se após o reconhecimento da identidade de homem trans. As narrativas demonstram que o início da hormonização é marcado por uma ambiguidade corporal que os interlocutores denominam de adolescência dos hormônios. Esta ambiguidade deixa de existir a partir, principalmente, da emergência de dois signos corporais: a constituição de uma barba, através do crescimento dos pelos faciais, e o engrossamento da voz. O artigo tem por objetivo compreender esse período de ingestão da testosterona, na trajetória de vida de homens trans, e dos seus efeitos tanto físicos quanto psicossociais, interpretando as modificações corporais à luz dos significados sociais atribuídos aos corpos.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
A busca por biomarcadores de transtornos mentais: notas introdutórias sobre as relações entre luz, vida, informação e loucura
Arthur Alexandre Maccdonal (UFRGS)
Resumo: O presente trabalho pretende refletir sobre pesquisas científicas contemporâneas situadas na intersecção entre biologia molecular, genética, bioquímica e bioinformática e que voltam seus esforços para a identificação de biomarcadores de transtornos mentais. Inspirando-se no trabalho de Hans-Jorg Rheinberger (2000), pretende-se explorar como os vários elementos que organizam técnicas, experimentações e conceitos científicos, nos mostram os novos arranjos entre as práticas biomédicas contemporâneas e suas materialidades. Segundo Rheinberger, as conquistas epistêmicas fundamentais do início da história da biologia molecular estão atreladas a duas condições: A primeira diz respeito à migração do interesse de pesquisa para elaboração de modelos de sistemas biofísicos, bioquímicos e genéticos simples, como bactérias, vírus e macromoléculas. A segunda se refere ao desenvolvimento tecnológico no âmbito da biofísica, bioquímica e genética, como a cristalografia de raio X, ultracentrifugação analítica, cromatografia, dentre outras. Assim, se quisermos observar o processo de estabilização de moléculas, genes e de quaisquer outros marcadores biológicos, precisamos orientar nosso olhar à coprodução das teorias científicas e das técnicas. Ao nos voltarmos sobre o espaço de tradução entre a técnica, experimentação e a elaboração de conceitos científicos, poderemos obter outras imagens da relação entre saber/poder a partir daquilo que se faz antes de um biomarcador tornar-se um fato científico. Neste cenário, substâncias corporais molecularizam-se sob a forma de proteínas, metabolitos e transcriptomas em sua relação com dispositivos laboratoriais e algoritmos, articulando-se em uma crescente infraestrutura cujo desenho experimental estabelece relações entre luz, vida, informação e loucura, apontando para os limiares de regimes biopolíticos contemporâneos e rearticulando o velho debate acerca dos determinantes biológicos da loucura.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Dentro do corpo, além da pele: uma análise etnográfica da testosterona como substância de relacionalidade
Arthur Leonardo Costa Novo (UFRN)
Resumo: O uso de testosterona sintética, substância de comercialização controlada no Brasil, é uma prática que tem sido descrita na literatura antropológica como parte fundamental de processos de transição de gênero de indivíduos que buscam se posicionar socialmente no gênero masculino. Sujeitos trans que vivem identidades de gênero de homem, homem trans, homem transexual e outras identidades transmasculinas aplicam o "hormônio masculino" periodicamente, atribuindo a essa substância efeitos androgênicos de crescimento da massa muscular, engrossamento da voz e aumento dos pelos faciais, mas também alterações psicológicas, em sensibilidades e em emoções. Todos esses fatores fazem da testosterona uma substância fundamental na construção da identidade de gênero desses sujeitos. Neste artigo, contudo, busco analisar o modo como a testosterona atua não apenas no corpo e subjetividade dos indivíduos que transicionam para o gênero masculino, mas na produção de relações com outros homens trans, amigos/as e familiares. A circulação de testosterona pode ou não incluir médicos, consultórios e ambulatórios, mas extrapola e expande os limites da medicalização da transição de gênero. A partir de dados de uma pesquisa de campo etnográfica realizada ao longo de um ano com famílias de sujeitos trans, analiso casos de mães que aplicam testosterona nos filhos e em amigos dos filhos, homens trans que aplicam hormônio em outros homens trans, amigos que ajudam uns aos outros a conseguir receitas ou ampolas de testosterona e a fazer a aplicação. Nesse sentido, discuto a compreensão dos sujeitos a respeito dos significados de receber e aplicar testosterona, assim como os efeitos atribuídos ao hormônio sobre as interações e afetos em relacionamentos íntimos e familiares. Argumento, por fim, que a testosterona circula em redes que se fazem e refazem. Essas redes podem ter caráter efêmero e situacional, mas em muitos casos formam vínculos duradouros, adensando relacionamentos, transformando outros e atuando não só nos processos de construção de identidades de gênero, mas na constituição de pessoas e relacionalidades.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Da remodelação dos contornos corporais ao tratamento de endometriose: gestrinona em circuitos de aprimoramento e práticas terapêuticas
Camila Silveira Cavalheiro (UFRGS)
Resumo: Em abril de 2023 o Conselho Federal de Medicina publica a Resolução CFM nº 2.333/23, que proíbe a prescrição de esteroides androgênicos e anabolizantes nos contextos onde o uso destas substâncias visa melhorias estéticas, ganho de massa muscular e melhoria de desempenho esportivo. Apesar de fazer referência ao uso de qualquer formulação de testosterona (Inciso I, Art. 3º), a nota anexa à Resolução cita nominalmente apenas uma substância anabolizante: a gestrinona. Hormônio sintetizado na década de 1960, é consumido quase que exclusivamente por mulheres cisgênero através de diferentes formas e vias de administração, como comprimidos, óvulos vaginais e implantes hormonais. No Brasil, é particularmente difundido através dos implantes hormonais, também conhecidos como chip da beleza”. Em julho de 2022, a gestrinona foi incluída na Lista C5 do Anexo I da Portaria ANVISA nº 344/1998, que sumariza as substâncias anabolizantes de uso controlado no Brasil. Apesar da literatura biomédica contemporânea indicar que a substância está relacionada a práticas de aprimoramento estético, esportivo e sexual, como exemplificado pela Resolução citada e pela inclusão na Lista C5, ela também é utilizada no tratamento de condições como endometriose e miomas. Entre as décadas de 1980 e 2010, a gestrinona chegou a ser comercializada no Brasil para tratamento destas condições, mas os registros destes medicamentos foram cancelados a pedido dos próprios laboratórios. Dentre os efeitos colaterais relacionados ao seu uso, destacam-se aqueles atribuídos às características androgênicas da substância, como ganho de massa muscular, aumento da oleosidade de pele e cabelos, acne, engrossamento da voz e hipertrofia de clitóris. Seja no tratamento da dor crônica causada pela endometriose ou na conformação dos contornos corporais, a gestrinona é uma substância cuja circulação está atrelada a sua capacidade de transformar corpos e subjetividades. Na presente ocasião, apresento os resultados parciais de uma pesquisa exploratória, onde estive inserida em três grupos de usuárias de gestrinona na rede social Facebook. Estou particularmente interessada nos relatos que explicitam os processos de transformação – hormonal, fisiológica, corporal, subjetiva e de estilo de vida – (co)produzidos através e no uso da gestrinona. Através da análise de testes clínicos e da mediação de efeitos colaterais indesejados, realizada com o uso de outros medicamentos e substâncias, as usuárias enfatizam o papel ativo que desempenham nas suas práticas terapêuticas ou de transformação corporal. Estes relatos, narrados em primeira pessoa, demonstram como as mulheres passam a adquirir e produzir um conhecimento altamente especializado, desconhecido pelos próprios médicos/as endocrinologistas.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
"Ele desliga o corpo": Questionamentos de pacientes com Síndrome dos Ovários Policísticos sobre o uso do anticoncepcional como tratamento
Carolina Andrei Fischmann (usp), Cristiane da Silva Cabral (USP)
Resumo: O questionamento acerca dos riscos à saúde por conta do uso de anticoncepcionais hormonais figurou pela primeira vez em 1970 durante uma CPI no Senado norte-americano conhecida como Nelson Pill Hearings que expôs publicamente os riscos cardiovasculares associados ao estrogênio presente na pílula (MARKS, 2001). A partir de 2014, há uma nova onda de notícias sobre os riscos destes medicamentos no Brasil e uma explosão de grupos de mulheres em redes sociais para discutir opções naturais de contracepção, embasando-se em uma espécie de feminismo da diferença (KLÖPPEL; ROHDEN, 2019; SANTOS, 2018). Contudo, desde a década de 1990, a indústria farmacêutica tem diversificado o marketing das pílulas anticoncepcionais e focado em seus potenciais benefícios de saúde, como o controle da acne, da síndrome pré-menstrual e da regularidade menstrual (WATKINS, 2012), mas poucas pesquisas qualitativas investigaram a percepção de usuárias sobre o uso terapêutico dos anticoncepcionais. Uma das condições reprodutivas nas quais a contracepção hormonal é considerada o padrão-ouro do tratamento medicamentoso é a síndrome dos ovários policísticos (SOP) (TEEDE, 2023; MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2019). Ela é a endocrinopatia mais frequente em mulheres em idade reprodutiva, com uma prevalência estimada entre 6% e 19% no Brasil, dependendo do critério diagnóstico utilizado (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2019). A SOP é uma doença multifatorial de apresentação heterogênea e com repercussões em diversos sistemas - reprodutivo, obstétrico, metabólico, dermatológico, psicológico, além de ser um fator de risco para doenças cardiovasculares (TEEDE et al, 2023). A partir de sete entrevistas semiestruturadas com mulheres de 18 a 35 anos com diagnóstico formal de SOP vivendo na cidade de São Paulo, foi realizado um estudo sobre as percepções de mulheres jovens quanto ao diagnóstico de SOP, sua interação com profissionais de saúde e os tratamentos utilizados. Um tópico de grande atenção é o fato de que todas as entrevistadas já fizeram uso de anticoncepcional, mas deixaram de utilizá-lo por entenderem que ele não estava, de fato, tratando a sua condição. Utilizando a crítica feminista sobre a produção de ciência, a criação de estereótipos de gênero e a medicalização dos corpos femininos (OUDSHOORN, 1994; ROHDEN, 2008), busco explorar as noções de corpo, saúde e o binômio natural/artificial, de forma a compreender as resistências à imposição de um modelo biomédico que limita as experiências de normalidade do ciclo menstrual através da prescrição automática de anticoncepcionais, ao mesmo tempo em que há uma busca de conformação deste padrão normatizado através de estratégias categorizadas como naturais em oposição aos hormônios artificias.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Uma análise antropológica sobre a trajetória de uma mulher com a Síndrome de Mayer-Rokitansky- Kuster-Hauser (MRKH)
Clarissa Lemos Cavalcanti (Anis - Instituto de Bioética)
Resumo: Ao chegar à adolescência, algumas pessoas se deparam com a ausência de sangue menstrual, que marca o início de um novo momento da fase reprodutiva em corpos com capacidade de gestar. A ausência desse marcador as leva a clínicas e médicos para investigar as possíveis causas e, após exames de ultrassom e ressonância magnética, recebem o diagnóstico: síndrome de Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser (MKRH). Essa síndrome é caracterizada pela ausência congênita do útero, do colo do útero e dos dois terços superiores da vagina em pessoas consideradas, na literatura biomédica, fenotípica e hormonalmente femininas. Considerada uma doença rara, com incidência de 1 em 4.500 pessoas, e caracterizada como uma condição de "distúrbio do desenvolvimento sexual", que se refere a um conjunto amplo de condições que afetam a vida reprodutiva e sexual de seus portadores, a ausência congênita de útero pode ter implicações importantes na vida de um indivíduo. Isso ocorre porque essa condição tem impactos físicos, psicológicos e sociais sobre esses indivíduos, especialmente porque afeta seu potencial reprodutivo e sua percepção de si mesmos. Neste artigo, apresentarei os itinerários terapêuticos e a trajetória de vida de uma mulher com MKRH, evidenciando a centralidade do sangramento em sua vida. A ausência da menstruação evidencia-se como um marco disruptivo de uma diagnóstico de doença reprodutiva, possibilitando a análise deste fenômeno como algo que se atribui à normalidade em corpos lidos como feminino, bem como a possibilidade de criação de projetos de vida que espera-se de mulheres, atrelados à maternidade. Contudo, neste caso também veremos como a síndrome traz outro tipo de sangramento, vinculado à dilatação do canal vaginal, e como o sangue é significado e vivenciado em relação à outros corpos e sujeitos, e como ele torna-se passível de moldar as subjetividades. O material no qual essas análises se baseiam são de uma entrevista semiestruturada realizada com essa mulher, a qual faz parte da minha pesquisa de mestrado em andamento, e me permite refletir sobre as conexões entre os processos da doença, as práticas e os discursos biomédicos e as noções de gênero e normalidade. Procuro refletir sobre como, e por meio de quais contextos, práticas e discursos, um órgão e suas capacidades - e aqui, especificamente, o útero e a menstruação - tem um potencial tão grande para definir identidades. Ao fazer isso, pretendo contribuir para o debate sobre a Antropologia da Saúde e do Gênero, que abrange reflexões etnográficas sobre doenças, tecnologias reprodutivas, maternidade e identidades de gênero.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
“Teu endométrio importa”: os testes genéticos pré-implantacionais e a produção da comunicação materno-fetal no campo da medicina reprodutiva.
Fernanda de Carvalho Vecchi Alzuguir (UFRJ)
Resumo: O presente estudo é um recorte de pesquisa de pós-doutorado cujo objetivo foi analisar como gênero e envelhecimento permeiam a promoção das tecnologias de reprodução assistida (RA) para o diagnóstico e tratamento da infertilidade masculina e feminina, com foco nos testes genéticos. Atenção particular foi dispensada à materialização, via gametas, da noção de temporalidade/relógio biológico. A análise se pautou em comunicações digitais sobre os referidos testes, envolvendo especialistas (fertileutas, urologistas, andrologistas e geneticistas) e as chamadas (ex)tentantes, nas redes Youtube e Instagram, promovidas através da parceria entre clinicas de RA, laboratórios de análise genética e redes associativas de mulheres. Neste GT, pretendo discutir como a promoção dos chamados testes genéticos pré-implantacionais (siglas PGT-A e EMBRACE, para o embrião; ERA, EMMA, ALICE, para o endométrio) evoca uma noção de responsabilização do corpo reprodutivo feminino pela produção de um bebê saudável. Isso se opera a partir do estabelecimento, a nível molecular, de uma intima conexão biológica entre o referido corpo e a viabilidade do embrião. Estudos sobre temas como comunicação materno-embrionária, epigenética, saúde do endométrio (equilíbrio da microbiota), troca de substâncias bioquímicas necessárias à receptividade do endométrio, implantação e desenvolvimento do embrião pavimentam o caminho para o uso, sob orientação médica, dos testes pré-implantacionais para otimizar as chances de gravidez e minimizar riscos como falhas cromossômicas embrionárias e perda gestacional. No material analisado, componentes das células endometriais, a exemplo do Rna mitocondrial, são munidos de intencionalidade/consciência e identificados como a mãe”. No vídeo intitulado Tu endometrio importa”, uma mulher branca com roupa executiva, enquanto caminha em frente a um painel com uma hélice de dna em movimento, explica: Apesar das probabilidades de gravidez reduzirem com a idade, existem outros fatores que podem melhorar nossas opções. Um deles é o endométrio que é tão importante quanto um embrião. Apesar de menos conhecido, embrião e endométrio como em um baile, o sucesso depende da perfeita sincronia do casal”. Um argumento se repete durante a promoção dos testes endometriais: um embrião [por melhor que seja] nunca implantará em um útero não receptivo”. As tecnologias de rastreamento genético são promovidas como ferramentas essenciais à otimização da performance e da complementariedade entre endométrio e embrião. A análise evidenciou como a ciência genética em contexto de RA materializa diferenças de gênero, além de evidenciar uma lógica marcada por certo apagamento do corpo reprodutivo masculino, com nuances conforme a especialidade em destaque nas comunicações.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Quimeras de natureza e tecnologia: transformações corporais em transplantes experimentais de células-tronco para a cura do HIV
Kris Herik de Oliveira (UNICAMP)
Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar, de um ponto de vista antropológico da ciência e da tecnologia, as transformações corporais em transplantes experimentais com células-tronco para a cura do HIV. De modo mais específico, examinarei as fragmentações, desdobramentos, desterritorializações, torções e transbordamentos de diferentes corpos em distintos contextos. Em diálogo com os materiais produzidos durante pesquisa de doutorado, que incluiu a coleta e análise de conteúdo de documentos científicos, jornalísticos e biográficos sobre os primeiros cinco casos de cura ou remissão de longo prazo do HIV, atento para o processo de quimerismo”, que permite avaliar as hibridizações entre natureza e tecnologia. Nessa discussão, observo o corpo tanto como uma figura de ficção especulativa quanto como matéria tecnobiocientífica que encarna os processos, problemas e soluções das terapias experimentais. Além disso, exploro as possibilidades de conexões entre corpos, levando em consideração os novos parentescos que surgem a partir dos transplantes e suas substâncias. Por fim, busco refletir sobre a ideia de regeneração das células-tronco como uma abordagem para compreender as transformações corporais e suas técnicas na medicina regenerativa do HIV.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Meu peito, minhas regras? Gênero, feminismos e maternidades a partir da amamentação e do desmame
Marina Fisher Nucci (UERJ)
Resumo: Dentre as diversas substâncias corporais, há uma revestida de especial valor: o leite materno. Trata-se de um fluido produzido em um corpo como alimento para outro corpo, sendo capaz de construir identidades, estabelecer rela¬ções entre indivíduos (Soler, 2017), e de construir e/ou reforçar certos modelos de gênero, família e maternidade (Nucci; Fazzioni, 2021). Além disso, carrega consigo diferentes metáforas, como a ideia de amor em gotinhas”, ou de ser uma poderosa vacina capaz de proteger os bebês das mais diversas doenças (Nucci; Alzuguir, 2023). Nosso trabalho faz parte de um projeto de pós-doutorado que procurou analisar concepções em torno de gênero e maternidade, a partir da atuação de consultoras de amamentação, profissionais que orientam pessoas com dificuldades para amamentar. Sendo uma categoria profissional recente e ainda não regulada no Brasil, a consultoria em amamentação tem, em sua origem, solo em comum com o ativismo ao parto humanizado, ativismo em prol da valorização do aleitamento, e da valorização de modelos de criação de filhos que promovem uma proximidade corporal maior entre a mãe e o bebê (Nucci; Russo, 2021). Nosso material é composto por entrevistas com consultoras, observação de uma edição de curso de capacitação para consultoria, e diferentes livros e postagens em redes sociais. Nosso foco específico neste trabalho é um tema considerado especialmente polêmico: o desmame, processo através do qual a amamentação chega ao fim. É possível notar, entre as consultoras e ativistas da amamentação, duas posições contrastantes sobre o tema, que divergem sobre o tempo e modo ideal de desmame, e se ele deve ou não fazer parte do escopo de trabalho da consultoria. De um lado, há um grupo que acredita que a mulher pode decidir quando interromper a amamentação, e que uma profissional – através de diferentes técnicas – poderá auxiliá-la para que este processo seja o mais tranquilo e respeitoso possível para a criança. De outro lado, há um grupo que acredita que o desmame precisa acontecer naturalmente”, sendo guiado pela própria criança, no tempo dela”, sem a interferência da mãe ou de uma consultora. Assim, a partir desta controvérsia, procuraremos analisar como se expressam diferentes moralidades e perspectivas sobre maternidades, feminismos e autonomia (da mãe e/ou do bebê), e sobre a relação entre natureza e cultura.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Botox, Algo(R)itmos e gestão das marcas corporais: para se pensar as experiências imagéticas da temporalidade contemporânea
Roberta de Sousa Mélo (UNIVASF)
Resumo: O estudo pretende integrar-se ao horizonte de exercícios investigativos e analíticos dos mais recentes empreendimentos de si, em que a gestão do corpo se evidencia como primazia. Interessa-nos, especificamente, compreender as narrativas de investimento emblemáticas de um tipo específico das produções corporais, a saber: a toxina botulínica, popularmente conhecida como Botox. Trata-se de um composto injetável cuja atuação se dá mediante a paralisação da musculatura, constituindo-se como recurso notório dentre as opções oferecidas pelas atuais biotecnologias para a prevenção e tratamento de linhas de expressão, sobretudo as classificadas rugas estáticas e rugas dinâmicas”. Compreendemos, a partir disso, que os sentidos e significados que norteiam essas práticas de consumo parecem evidenciar determinadas complexidades da experiência estética do tempo na contemporaneidade. Tem-se, por um lado, que o imediatismo e a aceleração se firmam na mediação de nossas elaborações simbólicas e experiências sensíveis da temporalidade, inscrevendo seu ritmo voraz nas respostas que corporalmente fornecemos às urgentes exigências cotidianas. Por outro lado, coexiste a distensão de um sonho coletivo de deter as evidências da passagem espontânea do tempo na superfície da pele, ou, ao menos, da possibilidade de sua gestão. Em outras palavras, a sociedade da urgência é também a que parece catalisar formas de negociação com a perecibilidade do corpo – signo, por excelência, dos fluxos da vida, exaltando uma cultura preventiva capaz de apaziguar a corporificação dos indícios do tempo. Diante dessas questões, e reconhecendo as mídias digitais como artefatos culturais cruciais para a disseminação da lógica de tempo e produção de si, analisamos postagens de clínicas de estética veiculadas no Instagram, procurando compreender os significados e narrativas atribuídas ao consumo de Botox em suas peças publicitárias. A escolha de tal plataforma considerou a intensidade do fluxo e os mecanismos de produção e circulação de informações e imagens que lhe são característicos. Nossas primeiras análises sugerem que os principais prejuízos estéticos que o consumo da toxina botulínica se dispõe a tratar figuram como inscrições corporais das próprias dinâmicas de urgência de nossos dias: assim, temas como cansaço”, exaustão”, atribulações da rotina despontam como experiências praticamente naturalizadas, cujos efeitos estéticos se dão à eficiente gestão de si promovida pelos serviços oferecidos. Cabe destacar que tais significados se produzem e se disseminam por meio de fluxos comunicacionais velozes e homogeneizantes das vivências e representações corporais, o que justifica a leitura dessa experiência estética do tempo considerando categorias como gênero e raça, por exemplo.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Parir e sangrar no corpo-território: A prática da placentofagia no circuito das doulas adeptas da Ginecologia Natural
Stephanie Bittencourt Bezerra (UFRN)
Resumo: A ingestão da placenta no pós-parto, in natura ou convertida em cápsulas, é uma prática que vem se consolidando no Rio Grande do Norte entre doulas e parturientes adeptas do ideário da Ginecologia Natural, expressão sociocultural contemporânea emergente na América Latina na última década. Esse movimento guarda um caráter político na medida em que aponta os efeitos da colonialidade que incide sobre os corpos femininos, defendendo a desmedicalização como caminho para recuperação da autonomia sobre a saúde sexual e reprodutiva e a validade de outras epistemologias. Em campo observou-se que o discurso dessas agentes, ao se opor ao que consideram um monopólio da ginecologia pelo paradigma médico dominante, compreendido como parte de uma ciência androcêntrica, aproximam permanentemente o corpo à uma natureza dicotomizada e exaltada, positivando placentas e fluídos em ritos de cuidado no pós-parto. Este artigo parte da etnografia realizada em dois espaços promovidos por doulas no Rio Grande do Norte, a saber: um workshop de formação em medicina placentária e uma roda de partilha sobre autogestão da saúde da mulher por vias não farmacológicas. O objetivo é discutir 1) como estes espaços em torno da Ginecologia Natural têm se constituído localmente, 2) como essas doulas têm associado seu ideário ao da humanização do parto, 3) que continuidades guardam com o fenômeno Nova Era e seus pilares - espiritualidade, ecologismo e feminino centralizado (MAGNANI, 1999), 4) quais entendimentos sobre o corpo e seus fluídos vem sendo promovidos por essas agentes e 5) como seus valores e práticas têm sido reproduzidos e funcionado como produtores de um estilo de vida, consolidando um sistema simbólico e o consumo de bens, serviços e objetos a ele vinculado. Como procedimentos metodológicos, além da observação participante, lanço mão de entrevistas semiestruturadas com as interlocutoras, analisando como suas trajetórias individuais são impactadas pelo conjunto de disposições e escolhas estéticas que compartilham.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Tráfico de testosterona e o o vício na performance: a produção da masculinidade a partir do consumo de hormônios sintéticos ilegais
Tiago Sales de Lima Figueiredo (UFF)
Resumo: Esse trabalho, em fase exploratória, almeja compreender os discursos e justificativas em torno do uso recreativo de testosterona entre homens que compartilham suas experiências em grupos de Whatsapp. O hormônio é adquirido de forma ilegal, através de traficantes que fazem a intermediação com laboratórios undergrounds de produção nacional, sem controle sanitário, ou de contrabando de produtos da farmacêutica paraguaia Landerlan, ou desvio da produção nacional do laboratório Aspen. Apesar de o senso comum entender que a busca do uso recreativo da testosterona sintética e de seus derivados sejam apenas pela finalidade estética, a testo é desejada por atletas amadores de diferentes modalidades com intuito de melhorar a performance, se tornar mais produtivo e também como antidepressivo. Além disso, há recorrentemente homens entre 30 a 40 anos de idade que valem-se dos grupos com a justificativa de necessitar fazer Terapia de Reposição de Testosterona (TRT). Normalmente se apresentam com um discurso que gira em torno da ideia de não ter mais a mesma disposição dos vinte anos. Queixam-se da falta de libido, desânimo, ganho de gordura abdominal, de não conseguir conciliar o trabalho, a família e o lazer esportivo. Como consequência, não conseguem render tão bem no esporte, necessitando de maior tempo de recuperação após um treino exaustivo. Atribuem o cansaço a estarem com níveis baixo de testosterona. Muitos apresentam fotos do seu exame da testosterona total, muito próximo do valor mínimo aceitável, em torno dos 200ng/dl, mas, ainda assim, dentro dos limites aceitáveis. O problema que a reposição hormonal que esses homens fazem, sem acompanhamento médico, os levam a níveis suprafisiológico, gerando aumento de massa muscular, aceleração do metabolismo, aumento da libido e também efeitos indesejados, como acnes, ginecomastia, queda de cabelo e retenção hídrica, depressão, ansiedade e irritabilidade. Nessa busca por prolongar a vitalidade da juventude e eles passam a racionalizar a ingesta dos macronutrientes, a se atentar para os marcadores de saúde, como hematócritos, prolactina, estradiol, entre outros. É comum que, ao sentirem algum efeito colateral durante o uso do hormônio suspeitarem dos marcadores de saúde, mencionando que talvez uma indisposição, ou aumento de acnes em um dia, poderia ser explicado pelo aumento do estradiol, por exemplo. Dado essa contextualização sobre os discursos e justificativas em torno do uso recreativo de testosterona, o texto vai se aprofundar na discussão sobre como os sujeitos produzem sentido e significações sobre si a partir da quantificação da subjetividade e administração bioquímica do corpo, uma vez que a apresentação de si desses homens passa ser atravessada pelos seu nível de testosterona total no corpo.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Testosterona por um olhar transviado
Tui Xavier Isnard (UNICAMP)
Resumo: O presente artigo pretende produzir uma conversa com a testosterona atenta às suas características ambíguas. Um dos modos de perceber a agência da testosterona é o processo de aromatase, no qual, uma alta taxa de testosterona (+800ng/dl) converte-se parcialmente em estrogênio. Essa capacidade de mutação da testosterona em estrogênio aponta para uma instabilidade da substância, que, indefinida em si, pode tornar-se seu outro. Descubro o gesto da aromatase em decorrência de uma pesquisa de campo com/na transmasculinidade, que envolve análises conjuntas (entre pacientes trans e o clínico geral da UBS) de exames de sangue. Portanto, nesta análise a testosterona se faz ver através da relação que estabelece com a materialização de corporalidades transmasculinas. A história da descoberta dos hormônios sexuais indica a implicação entre os imaginários sobre gênero e o regime da diferença sexual atuantes no contexto das pesquisas. Na descrição dos experimentos, e do próprio hormônio, foi produzida a virilização da testosterona, assim como o corpo humano foi atravessado por uma substancialização total, tornando o corpo sexuado efeito dos índices hormonais. Portanto, este artigo pretende, seguindo a proposta de Roy (2018), re-habilitar o conceito de sexo dentro dos estudos feministas. Sugiro um olhar transviado sobre a testosterona, referenciado na processualidade da materialização de corpos transmasculinos e com o propósito de repensar o conceito de sexo enquanto natureza em ação. As noções de intra-ação (Barad, 2021) e naturocultural (Haraway, 2019) são ferramentas de tensionamento para pensar-com os hormônios como produtores de sexo/natureza.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Controvérsias político-científicas da cannabis medicinal: canabinoides e a canabização do humano
Victor Luiz Alves Mourão (UFV)
Resumo: A proposta deste trabalho é a de apresentar uma análise da conformação do campo científico-medicinal da cannabis de modo a enfatizar o modo como a lógica de investigação científica e de formulação dos objetos científicos de substâncias presentes na planta (canabinoides) promoveram não só um processo de medicalização da cannabis mas também uma reorientação cognitivo-ontológica e moral de nossas relações com a planta (o que estou chamando de canabização do humano). Para tal proponho uma reflexão que identifica os eixos cognitivos que os atores mobilizam no debate público científico sobre ou a partir da maconha/cannabis, tentando delinear os principais pontos de uma controvérsia que se instaura a partir da publicação do Decálogo sobre a Maconha”, documento/manifesto conjunto da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e o Conselho Federal de Medicina (CFM), e da principal resposta a este Decálogo, realizada pela Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis (SBEC). Lastreada pela proposta de análise de controvérsias científicas, e utilizando uma metodologia de análise documental, a análise busca demonstrar que há uma posição heurística divergente que está correlacionada a tomadas de posição políticas e cognitivas dissímiles, lastreadas pela emergência de um paradigma marcado pelas noções de (endo)canabinoides e de sistema endocanabinoide, além de outros conceitos correlatos. A lógica de construção desse paradigma e de conformação do campo científico-medicinal da cannabis promove uma reorientação cognitiva-ontológica e moral de nossas relações com a planta ao entronizar cognitivamente os canabinoides no corpo humano e vinculá-los ao funcionamento normal, regular, dos processos fisiológicos que nos constituem corporalmente. Proponho chamar tal processo de canabização do humano. Essa entronização dos canabinoides promove uma redução da eficácia simbólica e do pânico moral associado ao paradigma proibicionista. Trata-se de um estudo exploratório com foco na controvérsia acima mencionada e em sua correspondência cognitiva em torno do paradigma canabinoide.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
"Agora são duas pessoas tomando comprimido": a gestão da vida sem o HIV a partir das relações de afeto
Wertton Luís de Pontes Matias (Museu Nacional/UFRJ)
Resumo: Ao longo dos anos, alternativas de tratamento e prevenção ao HIV progrediram de forma decisiva para a garantia da vida na epidemia de aids. Apesar do Brasil registrar, nos últimos anos, um aumento no número de novas infecções por HIV (Brasil, 2023); determinados avanços no campo biomédico possibilitam o vislumbre de caminhos para superação da aids enquanto ameaça à saúde pública (Unaids, 2023). Neste trabalho, busco retomar alguns aspectos presentes na minha dissertação de mestrado, no intuito de refletir sobre um dos principais atores para construção desse quadro: as substâncias farmacológicas. Frente às dificuldades impostas pela pandemia de Covid-19, tive a oportunidade de ter acesso a entrevistas concedidas para Pesquisa Qualitativa para a Avaliação da Percepção e Atitudes de Parceiros Chave Stakeholders na Implementação da Profilaxia Pré-Exposição ao HIV – PrEP no Brasil ImPREP Stakeholders. Financiado pela Fiocruz, um dos objetivos da pesquisa era compreender a percepção de usuários em PrEP sobre a Profilaxia Pré-exposição ao HIV (PrEP). Utilizando como base empírica o que nos conta um dos entrevistados sobre sua relação de afeto, imersa numa conjugalidade sorodiscordante, meu objetivo será abordar o cotidiano de cuidado e manejo do medicamento na experiência vivida. Tais dinâmicas chamam minha atenção para como opera, na ordinariedade da vida (Das, 2015), o processo contemporâneo de absorção da aids aos regimes vitais. Diante de narrativas que distanciam a aids da morte e de seu status de ameaça, adentrando ao nível da vida (Foucault, 1976), parto do princípio de que a relação entre a aids e a vida ao longo do tempo foi modificada, em face da circulação dos fármacos no corpo social. De princípio ético para construção de respostas institucionais, a manutenção da vida passou a ser categoria mobilizada para projetos políticos e econômicos, não necessariamente em diálogo com a solidariedade. Através dos relatos, destaco dois aspectos fundamentais: 1) a forma como as substâncias produzem e transformam relações amorosas no contexto de prevenção ao HIV; 2) e o modo como relacionalidades (Carsten, 2011) se apresentam no mundo social da PrEP, colocando em suspensão hierarquias e aspectos de diferenciação entre parceiros nas relações sorodiscordantes por meio do fármaco. Busco dimensionar modos pelos quais o aids se penetra à vida ordinária, hoje, e dimensionar desafios que se colocam diante do futuro em relação à gestão da vida e aos processos de saúde/doença de modo amplo. Nos rumos do progresso biomédico e científico, tais relatos nos contam sobre como as epidemias morrem nas narrativas institucionais/oficiais (Parker, 2015), mas permanecem vivas, em vida.