Grupos de Trabalho (GT)
GT 080: Ontologia e Linguagem: línguas indígenas, artes verbais e retomadas linguísticas
Coordenação
Danilo Paiva Ramos (UNIFAL-MG), Leandro Marques Durazzo (UFRN)
Resumo:
Trabalhos recentes em Antropologia e Linguística sobre línguas indígenas, artes verbais e processos de retomada linguística vêm apontando que, para contribuir com o registro e fortalecimento da diversidade linguística, é fundamental a atenção às proposições ontológicas dos interlocutores indígenas quanto à tradução, dialogicidade, escuta e alteridade, tendo especial atenção às artes verbais e formas de discurso xamânicas. Distanciando-se de concepções de linguagem que operam a partir da separação entre natureza e sociedade, ou das ideologias linguísticas enquanto crenças e representações sobre a linguagem e sobre o real, a presente proposta de Grupo de Trabalho (GT) propõe um olhar para o multinaturalismo linguístico nos estudos sobre gêneros discursivos, artes verbais e processos de retomada linguísticos protagonizados por povos indígenas. O GT abre-se a propostas de trabalhos situados no campo interdisciplinar entre Antropologia e Linguística, que enfatizem as relações entre ontologia e linguagem observadas através de etnografias e processos de documentação de línguas indígenas, gêneros discursivos, artes verbais (cantos, fórmulas xamânicas, sonhos, narrativas míticas, dentre outros), modos de comunicação transespecíficos, e ações de retomada/revitalização linguísticas.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Ana Paula Santos Rodrigues (Museu Nacional)
Resumo: O povo Xakriabá, que tem suas terras homologadas no município de São João das Missões, região norte de Minas Gerais, é parte dos chamados povos akwe᷉ com afinidades linguísticas e culturais com os Xavante, Xerente e Akroá. Levando em conta a filiação linguística, Xerente, Xavante e Xakriabá têm como língua originária o akwe᷉, da família Jê, tronco Macro-jê (TEIXEIRA, 2000), porém os Xakriabá passaram por um violento apagamento de sua língua, que resultou em seu aparente adormecimento. Atualmente, existe um processo de retomada do akwe᷉ xakriabá, mas percebemos que o idioma jamais desapareceu por completo, em parte resguardado pelo segredo. O akwe᷉ continuou sendo utilizado em rituais e estudos dão notícia de que pajés se comunicavam com a protetora dos Xakriabá, Iaiá Cabocla, na língua dos antigos (PARAÍSO,1987). Este trabalho pretende discutir os resultados de minha pesquisa de doutorado, realizada entre 2020 e 2024, sobre a retomada do akwe᷉, especialmente no que diz respeito a uma possível inserção desta língua no que Durazzo e Bonfim (2023) chamam de área etnolinguística das línguas encantadas, visto ter ficado patente que a retomada do akwe᷉ possui uma forte conotação espiritual, com muitas semelhanças ao processo de retomada de outras línguas encantadas no nordeste brasileiro e suas proximidades.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Caio Monticelli (UFSCAR)
Resumo: Situados muito próximos à fronteira com a Venezuela, os Taurepáng possuem uma vida religiosa bastante
intensa. Praticantes há décadas da religião adventista, a agenda interna da comunidade Bananal é cadenciada
pela realização de diversos cultos ao longo da semana. Dentro da igreja, o pregador é o emissário da palavra
de Deus, que se transmitida de forma eficaz produz transformações desejáveis na pessoa, viabilizando a
transcendência mundana a fim de alcançar o paraíso no céu após a morte. A hipótese de pesquisa deste
trabalho é que a palavra de Deus transmitida pelo pregador detém uma qualidade luminosa. Ao equacionar as
noções nativas de alma e fala, princípio vital e bem-estar, a presente análise busca contribuir para uma
ontologia da linguagem taurepáng, como foco na capacidade agentiva da palavra ritual.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Danilo Paiva Ramos (UNIFAL-MG)
Resumo: Distanciando-se de concepções de linguagem que operam a partir da separação entre natureza e sociedade,
ou de conceitos como ideologia linguística (crenças e representações sobre a linguagem e sobre o real), o
presente trabalho enfoca o multinaturalismo linguístico a partir da análise comparativa e das dimensões
tensivas da poética dos soproencantamentos, gênero discursivo importante para os xamanismos dos povos
Hupd'äh, Yuhupdëh e Dâw que vivem no Alto Rio Negro-AM.
Trabalhos recentes sobre as línguas e artes verbais no Alto Rio Negro vêm apontando que, para contribuir com
o registro e fortalecimento do multilinguismo, é fundamental a atenção às proposições ontológicas dos
interlocutores indígenas quanto à tradução, dialogicidade, escuta e alteridade, tendo especial atenção às
artes verbais e formas de discurso xamânicas (Barreto, 2019; Chernela, 2018; Epps & Ramos, 2020). A
região do Alto Rio Negro-AM configura-se como uma das áreas com maior intensidade de multilinguismo no
Brasil e até no mundo. Há um total de 22 grupos étnicos indígenas que falam línguas das famílias
linguísticas Arawak, Tukano e a família formada pelas línguas Hup, Yuhup, Dâw e Nadëb.
As complexas dimensões do contínuo entre ontologia-linguagem-movimento que os soproencantamentos Hup, Yuhup
e Dâw revelam são aqui analisadas a partir da proposta de uma Antropologia Tensiva. Partindo da noção de
diferença transversal (Viveiros de Castro, 2008), enfoca-se os modos de comunicação entre heterogêneos,
entre multiplicidades intensivas, e busca-se descrever os caminhos vividos como linhas de fuga que acionam
relações intensivas, feixes de afecções e forças que transformam os termos ao fazer passar algo entre eles.
A aproximação crítica com a Semiótica tensiva permite então entender como o gradual e o contínuo aparecem em
fenômenos linguísticos, cosmológicos e nos múltiplos mundos vividos a entrecuzarem-se. Enfatizando-se uma
semântica das tensões e das gradações procura-se revelar as continuidades e descontinuidades entre a
intensidade (ordem do sensível) e a extensão (ordem do inteligível), o que torna possível entender como se
delineiam múltiplos campos de presença, centros dêiticos que correlacionam gradientes de presença e ausência
de humanos e Seres-outrem (Fontanille, 2007; Zilberberg & Fontanille 2001).
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Dora Savoldi da Rocha Azevedo (outro), Evani Viotti (USP)
Resumo: A Linguística se desenvolveu a partir dos preceitos de epistemologia da Modernidade, contribuindo para
reforçar o viés colonial imposto à análise de línguas não-indoeuropeias. Recentemente, a partir de sua busca
por um melhor entendimento de fenômenos característicos de línguas minorizadas, ela tem buscado rever muitos
de seus fundamentos, inclusive aqueles relacionados à própria definição de língua (ver Joseph 1997; Ameka
1992). Neste trabalho, propomos que tal movimento em direção à descolonização da disciplina deve levar em
conta trabalhos recentes realizados no âmbito da Antropologia, que defendem uma não equilavência ontológica
entre línguas (ver Course 2013; Hauck & Heurich 2018). Nesse sentido, assumimos, que língua é um
conceito equívoco (ver Viveiros de Castro 2004), e que, portanto, o que é língua se define através de uma
perspectiva ontológica. Tal premissa se dá em consonância com outros trabalhos sobre os povos do Alto Rio
Negro, que vêm apontando que a língua, para esses povos, se encontra em um registro ontológico distinto do
ocidental (e.g. Chernela 2013, 2018) e que enfatizam a ideia de que o entendimento de língua deve se inserir
no registro ontológico de seus falantes (Epps & Ramos 2019). Nessa linha, buscamos avançar no sentido de
determinar como a língua pode ser compreendida e analisada em uma perspectiva ontológica tukano, e como essa
noção difere da concepção ocidental de língua. Nossa proposta se assenta sobre uma analogia entre o sistema
de classificação ictiológico ocidental e o tukano, como mapeada por Barreto (2013). A classificação de
peixes proposta por Barreto (2013) não se encerra nos peixes em si, nem na comparação de peixes com os
próprios peixes, mas sim na relação que tais peixes estabelecem com seu entorno, com o meio ambiente e com
humanos. Nossa ideia é a de que a mesma perspectiva deve valer para a classificação e a consequente operação
dos elementos linguísticos. Propomos aqui uma discussão sobre o sentido de alguns morfemas de
evidencialidade da língua Tukano, encontrados em dados de fala em interação, sugerindo uma análise que não
se atenha nem ao sentido estritamente linguístico de tais morfemas, nem ao sentido do morfema em relação ao
seu contexto imediato. Nossa análise procura entender a língua como parte integrante e constituinte de uma
perspectiva ontológica eminentemente tukano. Vamos mostrar que a evidencialidade, em Tukano, só pode ser
amplamente entendida se o envolvimento dos participantes nas estruturas que emergem na interação for levado
em conta (Goodwin 2018). Esse envolvimento mobiliza questões que impõem a algumas noções que embasam a
evidencialidade (e.g. visualidade vs. não visualidade) entendimentos diferentes daqueles que operam nas
ontologias ocidentais.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Edson Tosta Matarezio Filho (UEFS)
Resumo: No ano de 1922 o poema de Joaquim Osório Duque-Estrada, adaptado à composição de Francisco Manuel da
Silva, de 1831, se tornou a letra oficial do Hino Nacional brasileiro. Há uma distância de 91 anos entre a
composição musical e a oficialização da letra. Neste intervalo de tempo, a ausência de um poema oficial era
acompanhada pela sua entoação de maneira variada de uma região para outra, frequentemente expressando um
regionalismo que se opunha ao conceito de federalismo e à unidade nacional. Passados 87 anos da composição
da letra do Hino em português, o Hino Nacional brasileiro foi traduzido pela primeira vez para a língua
ticuna, em 2009, pelo professor e mestre em linguística Sansão Flores. Djuena Tikuna torna a versão indígena
do Hino bastante conhecida e mostra que pode ser uma poderosa arma de luta política. Talvez a música de
maior destaque entoada por Djuena seja a versão do Hino Nacional em língua ticuna. Ao traduzir o Hino
Nacional para o idioma ticuna muito do sentido que conhecemos é subvertido, mostrando uma terra adorada e um
Brasil com outras possibilidades de significados. A terra adorada cantada no Hino não é a terra do
agronegócio, do latifúndio e da monocultura. Naane, como se diz em língua tikuna, é uma terra viva, um ente
que deve ser respeitado, que possui os mesmos atributos de uma pessoa (duü) e produz o alimento
do povo.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Evandro de Sousa Bonfim (UFRJ)
Resumo: A política linguística colonial para as línguas indígenas sempre teve como meta a redução dos idiomas
ameríndios à forma escrita, desde as gramáticas jesuíticas aos projetos de tradução da Bíblia pelo SIL,
passando pelos objetivos ambíguos da educação escolar e mesmo de iniciativas acadêmicas excessivamente
focadas no letramento como principal forma de transmissão linguística. O objetivo da apresentação é focar na
definição de línguas indígenas como línguas de oralidade (cf. SOUZA 2017) e discutir a importância de
recursos gramaticais como as modalidades epistêmicas em tal caracterização, por dizer respeito não apenas a
aspectos funcionais da língua, mas igualmente a questões cosmológicas e relativas à organização social. As
línguas de oralidade não se apoiam apenas na fala, mas em variadas formas de inscrição e memória. Assim,
gostaríamos de pensar elementos da cena enunciativa que exercem função epistêmica em apoio ao sistema
linguístico, como cachimbo, cocar e outros artefatos indígenas e não-indígenas, como o famoso caso do
gravador do Juruna, primeiro indígena eleito deputado federal.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Gabriel Sanchez (UFSCAR)
Resumo: Na Terra Indígena Rio Guaporé, local que faz fronteira entre o Brasil e a Bolívia, o pajé djeorometxi
incentiva os jovens kujubins, wajurus, kanoés, djeorometxis e aikanãs a arremendarem certos animais, isto é,
a assoprarem, gritarem e urrarem o que eles denominam de línguas dos bichos. Concomitantemente, com a ajuda
de uma cuia, o pajé serve aos garotos um banho preparado de uma mistura de folhas e raízes conhecida como
folhas de bichos, que impregna o corpo do iniciando com o cheiro de suas presas. Tais procedimentos
apreendidos em momento ritual serão levados adiante pelos rapazes para se tornarem bons caçadores no futuro.
O arremendar e o banho de folhas de bicho acabam por possuir uma mesma natureza: eles servem para comunicar
afecções, para atrair e enganar animais. No entanto, falar com e cheirar como os animais apresenta um risco
por vezes mortal aos caçadores: a transformação intencional e parcial que eles almejam alcançar ao se passar
por sua presa para confundi-la e atraí-la.
Abandonando uma série de elementos que o torna um ser humano no seio do parentesco, o caçador deve assumir
um corpo dotado de afecções diversas, que se locomove e inala cheiros diferentes. Expressando significados
dessas línguas animais, o caçador trata como parente não aquele com o qual ele compartilha tabaco ou chicha,
que fala sua língua materna ou que se pinta com jenipapo e patoá, mas aquele ser empoleirado em um galho,
escondido na vegetação rasteira ou pendurado pelo rabo. Adentrando nestas nuances, esta apresentação
refletirá sobre tais práticas cinegéticas que envolvem a noção de línguas animais. Mas mais do que isso,
pretendo refletir sobre como e de que maneira os povos indígenas no Rio Guaporé pensam a questão da língua e
da linguagem, estendendo essas categorias até aos seres não-humanos. Por meio de assopros, urros e gritos,
os caçadores acabam atraindo os animais; mas que tipo de comunicação seria esta, em que está em jogo uma
atração quase sempre mortal para ambos os lados? Por fim, este trabalho terá o esforço de pensar o
arremendar enquanto uma arte verbal, comparável aquela praticada por cerimonialistas, cantores, dançarinos e
xamãs. As línguas animais são línguas que devem ser assopradas, gritadas ou urradas. O sucesso cinegético
perpassa por um conhecimento artístico e técnico dessas línguas animais: para saber caçar, digamos que além
de um bom caçador, o caçador deve ser um bom soprador/cantor/falante/artista.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Hugo Prudente da Silva Pedreira (Iepé)
Resumo: Para o estrangeiro vindo da face da terra
Eu, disse ela talvez,
quero te trazer para cá, tal e qual.
Com este seu pensamento diverso ela lhe respondeu.
Ela, que falava a Aquele Que Foi Levado Por Ruwu Hy.
E a fala do estrangeiro vindo da face da terra, já diante de Ruwu Ramuj - a sua fala em resposta depois que
já havia ido - a sua fala em resposta, no peito-pensamento de Ruwu Ramuj, não se revelava diversa, apartada,
diversa soava. Eu disse há tempos.
Esta é uma tradução de trabalho para um canto performado por Tajuje em 2017, transcrito na língua Zoé em
abril de 2022 com ajuda dos também jovens Supi e Tekaru. Para a transcrição, Tajuje recitou lentamente, do
modo como os Zoé costumam fazer para ensinar um novo canto durante uma festa. Vem desta forma salmodiada a
divisão proposta em linhas. Ao encerrar, Tajuje refere aquela primeira gravação: Eu disse há tempos.
Insere, assim, sua própria posição enunciativa em um texto já bastante pontuado por mudanças no sujeito da
fala. O canto reporta um diálogo, ou dois diálogos, ou a falta de diálogo entre três personagens. A cena se
passa no patamar celeste, a aranha fala para o homem em segredo, pois quer protegê-lo de Ruwu Ramuj,
urubu-rei tirano que o mantêm cativo. Ele escuta a fala da aranha e aceita sua ajuda. Em seguida,
apresenta-se sozinho diante de seu sogro urubu e o engana: não revela a ajuda que recebeu. O canto evoca a
cena e seu desentendimento para ouvintes que sabem das intenções em jogo. Bem ou mal, todos conhecem a longa
história do homem que foi tirado de sua tocaia e levado aos céus pelos urubus, contada por narradores mais
velhos e autorizados. Partindo de performances de Kwai e Tebo, podemos explorar o desenho desta narrativa,
suas marcações internas e uma clara divisão em episódios. Esta divisão é fundamental para entendermos a
relação entre o conto e o canto. Este é uma cena daquele. Na verdade, um relance de uma cena: o nexo que a
resume. Embora restrito a um incidente, a sua forma truncada, desentendida, informa e organiza toda a
narrativa. Isso não esgota os modos como o urubu-rei pode figurar nos cantos Zoé. Reportado por Tekaru, o
Finado Awati canta sua hesitação em aceitar a bebida fermentada sepy oferecida pelas mulheres na festa: ele
é como o urubu-rei que não baixa logo ao chão onde jaz a carne podre. Inspirado no caráter desconfiado deste
animal, o canto descreve o movimento inquieto de suas asas quando a ave deseja partir, escapando do caçador
de tocaia. Este ponto de observação, a tocaia, também foi a escolha de Supi em certo conjunto de páginas de
seu diário pessoal, compartilhado em 2020. Ele narra a longa e frustrante espera pela descida em bando dos
urubus para obter suas valiosas penas, enquanto avalia com agudeza o seu comportamento.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Ian Packer (USP)
Resumo: Nesta comunicação, irei apresentar alguns exercícios de tradução em torno de exemplares de dois gêneros
de arte verbal krahô (povo indígena falante de uma língua Jê, que vive no norte do Tocantins) que estiveram
no centro de minha tese de doutorado (Packer, 2020): o canto da Machadinha, longo canto narrativo que narra
o mito de origem desse artefato ritual; e os cantos de Maracá, cantos que, ao contrário, são bastante
concisos e nos quais uma miríade de seres não-humanos se nomeiam e se apresentam aos humanos, descrevendo
detalhes sensíveis de suas formas de vida. Buscando dar um passo além em relação à tradução etnográfica e à
tradução linguística comumente praticadas por antropólogos e linguistas, irei apresentar alguns resultados
preliminares de um exercício de tradução criativa que busca dar conta de qualidades formais e poéticas
geralmente ignoradas pelas demais modalidades de tradução. Para tanto, lanço mão de um repertório de
referências literárias e de um diálogo com teorias da tradução que, acredito, têm muito a contribuir tanto
para a apreciação quanto para a compreensão de tais formas verbo-musicais para além do registro meramente
documental, contextual ou semântico.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
João Carlos Albuquerque Souza de Almeida (UFSC)
Resumo: Duplas de cantores de diferentes aldeias do Alto Xingu (MT) convergem, todo ano, para as edições da
festa Itsatchi, mais conhecida por Quarupe, sua forma aportuguesada. Este é um ritual pós-funerário em
homenagem aos chefes falecidos que costuma reunir todos os povos do sistema multilíngue em que está
inserido. Dentre os participantes, estão os cantores viajantes, cuja língua, em muitos casos, é
ininteligível aos anfitriões. A partir dos usos que Menezes Bastos e Severi realizam da obra de Jakobson,
proponho que as canções do Itsatchi traduzem, ou transmutam, não só mitos e agências extra-humanas em
música, mas também processos e eventos históricos. Uma evidência é o estatuto linguístico deste repertório,
que pode reunir até três famílias linguísticas diferentes em uma única canção. Dessa forma, sugiro que o
horizonte multilíngue presente nas canções do itsatchi refletem o processo histórico de acomodação de povos
recentes ao sistema.
Se a música do itsatchi codifica processos históricos em letras plurilíngues, as canções possuem baixo
entendimento semântico. Na maioria dos casos, são fórmulas linguísticas não utilizadas na fala cotidiana,
mas que se mantém no repertório em questão, sendo considerada, pelos cantores yawalapíti, uma língua
arcaica. Dessa forma, poucas palavras são passíveis de tradução, das quais pode-se inferir a diversidade
linguística. Apesar de cada povo alto-xinguano ter sua língua como um dos principais fatores de
identificação coletiva, o multilinguismo é um dos limites do sistema. Este é o caso dos Yawalapíti, que têm
a sua língua (Aruak) criticamente ameaçada, com cerca de quatro falantes, sendo substituída, principalmente,
pelas línguas Kuikuro (Caribe) e Kamayurá (Tupi-Guarani). Tal caráter limítrofe encontra-se, também, no
canto do itsatchi.
Nesse contexto, a presente apresentação se propõe a analisar uma sequência de canções do itsatchi, executada
por cantores mehinaku na aldeia kamayurá, e suas exegeses, realizadas por um cantor yawalapíti. Neste
excerto do repertório, pode-se inferir uma imagem de deslocamento e recepção entre povos, através da
marcação linguística dos sujeitos, além de cenas mitológicas de diferentes pontos de vista. A música do
Itsatchi integra uma cadeia progressiva que culmina na subjetivação de efígies de madeira capazes de atrair
o duplo do falecido e na sua posterior dessubjetivação. Neste clímax hiper-povoado, cantores cantam e
familiares choram evocando o morto através de termos de parentesco. Trata-se de processos que fazem novos
chefes vivos, à medida que os não-vivos são postos na categoria de ancestral, e que aproximam povos
distantes para uma colaboração musical e uma disputa física.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
João Marcos Cardoso (USP)
Resumo: O trabalho pretende apresentar e analisar uma tradução de uma narrativa dos Kotiria (povo falante de uma
língua tukano oriental e habitante do alto Rio Uaupés, no noroeste amazônico) que trata de dois encontros
entre um homem e um curupira numa clareira na floresta. Em ambos encontros, está em jogo uma negociação que
envolve prestações e contraprestações. Embora os significados investidos nos elementos trocados não sejam
necessariamente partilhados pelos interlocutores, há um acordo tácito sobre os mecanismos da troca.
A apresentação da narrativa permitirá destacar dois feixes de questões e suas relações entre si. O primeiro
feixe será dedicado a revelar uma série de qualidades linguísticas e poéticas da língua kotiria observáveis
na narrativa. Essas qualidades são, notadamente, a estruturação dos diálogos entre o homem e o curupira em
seus dois encontros e o uso de paralelismos, tomados no sentido amplo, dado por Roman Jakobson, de equações
verbais que constituem o texto poético ao estabelecer relações de similaridade e contraste. O segundo feixe
abordará os diálogos entre o homem e o curupira na chave de um encontro que, sendo realizados entre um
humano e um outro-que-humano, remetem às diferenças de perspectiva e de pressupostos ontológicos existentes
entre eles.
A proposta de abordagem de materiais etnográficos inspira-se principalmente em trabalhos inscritos na
tradição da virada ontológica na Antropologia. Como mostram pesquisas mais recentes sobre as artes verbais
das terras baixas da América do Sul, os estudos linguísticos e da tradução têm o potencial de dar novos
direcionamentos a questões postas por essa tradição. O cerne, portanto, da apresentação é a exploração, por
meio de uma narrativa kotiria e de sua tradução, das possibilidades de uma compreensão mútua: de um regime
ontológico específico por meio de suas expressões poéticas e, ao mesmo tempo, de determinadas feições
linguísticas e poéticas em suas relações com certos pressupostos ontológicos.
A narrativa (e sua tradução) que será apresentada é Boraro khiti (História do curupira), na versão contada
em língua kotiria por Ricardo Cabral à linguista Kristine Stenzel em 06 de Janeiro de 2002, em São Gabriel
da Cachoeira. Para minha tradução, baseei-me na documentação audiovisual e na transcrição da narrativa feita
por Stenzel, que está acompanhada de uma glosa interlinear. Apoiei-me também na gramática e da língua
escrita pela mesma linguista, no dicionário kotiria-espanhol de Nathan Waltz e em consultas pontuais a
interlocutores kotiria. Fundamental também para a tradução e a análise que lhe segue é a conversa que tive
com interlocutores kotiria em julho de 2023 sobre o curupira e as formas como pessoas kotiria se relacionam
com ele.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Leandro Marques Durazzo (UFRN)
Resumo: Nesta comunicação, pretendo articular, conceitualmente, algumas noções centrais para o que se tem se
entendido como valorização/fortalecimento/revitalização linguística em contextos indígenas do Nordeste
brasileiro, aí compreendida a área de abrangência da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do NE,
MG e ES (APOINME). Para tanto, fazemos uso de algumas noções de língua, falante, transmissão, território,
técnica e ciência que entrecruzam categorias nativas e terminologias técnicas das áreas da Linguística e da
Antropologia, bem como da Filosofia contemporânea. Nosso objetivo é demonstrar como não apenas a cosmovisão
indígena altera concepções acadêmicas de língua, falante e transmissão linguística, por exemplo, mas como as
próprias práticas tradicionais de povos indígenas, suas relações com o território, atividades técnicas e
engajamento com entes não-humanos oferecem elementos para compreender dimensões cosmotécnicas daquilo que
temos chamado de "línguas encantadas".
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Leonardo Correia Marcoccia (UFPR)
Resumo: Neste trabalho parto de uma etnografia com os Mbya-Guarani no Paraná, e focalizo minhas análises nas
dinâmicas discursivas, saberes e registros produzidos através do curso de língua Mbya (Mbya Ayvu), lecionado
online por uma liderança Guarani Mbya para pessoas não mbya. Exploro como a criação e continuidade do curso
configuram uma forma de retomada linguística, nas quais as aulas, juntamente com a utilização de espaços
online e projeção da língua em mídias sociais, ocupam uma parcialidade dentro dos sistemas de lutas Guarani.
Discuto as aulas virtuais como local de produção e tensionamentos de sentidos entre a língua Mbya e a
portuguesa, na qual regimes de conhecimentos e ensino disputam continuamente espaços através da linguagem,
operando e reinventando premissas dentro e fora do jogo linguístico. Por um lado, os processos tradutórios e
regimes de escrita tendem a produzir assimetrias e apagamentos nos enquadramentos gramaticais. Por outro, o
sistema de saberes Mbya, fundamentado ontologicamente na palavra e profundamente ligado às noções de escuta
e fala, realiza-se em uma experiencia de língua viva, na qual a compreensão das palavras e seus poderes de
sentidos são alcançados pela experiencia. O saber, o corpo e as formas de comunicação com o divino se
produzem na fala e constituem o nhandereko (jeito de ser Guarani), sendo um meio e caminho de produção,
circulação e compartilhamento de saberes e memórias (Benites, 2020). Nesse sentido, investigo como a língua
Mbya se faz ensinar e é transmitida para falantes não mbya, focalizando os deslocamentos epistêmicos que as
operações discursivas mbya produzem ao movimentar dimensões da linguagem na e para além da escrita.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Nian Pissolati Lopes (LaRME - Laboratório de Antropologia da Arte, Ritual e Memória - PPGAS/MN/UFRJ)
Resumo: Proponho neste trabalho uma discussão sobre os cantos e benzimentos do povo Nadëb e analiso a maneira
pela qual o regime sonoro e a arte verbal indígena compõem (e estruturam) um sistema de relações
interespecíficas que chamo de cosmo-ecologia na região do alto Uneiuxi, na Bacia do Rio Negro (AM). Para
isso, apresento algumas transcrições e traduções do repertório de cantores-xamãs que pude registrar durante
pesquisa de campo (2016-2019), bem como suas reflexões sobre o tema.
Os Nadëb são um dos quatro povos falantes de línguas da família Naduhupy, ao lado dos Hupdäh, Yuhupdeh e
Dâw. Atualmente, todos eles habitam o Noroeste Amazônico, majoritariamente em território brasileiro. Na
literatura especializada da região, estes povos são geralmente caracterizados pela alta mobilidade espacial
e por terem vivido, até um passado recente, principalmente em regiões de cabeceiras de igarapés no interior
da mata.
Nesta apresentação, começo por destacar a importância do regime sonoro para a cosmologia nadëb e discuto de
que modo ele está ligado à gênese e à (re)produção da vida, humana e não humana. Na sequência, apresento e
analiso os cantos tradicionais nadëb (nadëb jäm) e as fórmulas verbais xamânicas (mehëm) regionalmente
referidas como benzimentos. Discuto, então, de que maneira o repertório indígena se encaixa neste universo.
Há um conjunto de termos presentes na arte verbal nadëb que é particularmente relevante para a discussão:
häd had'yyt, os nomes legítimos de cada ente. Tais componentes, quando manipulados adequadamente por
especialistas (cantores- xamãs), podem agir sobre os diferentes planos cósmicos.
Um segundo movimento que proponho neste trabalho é o de esboçar aproximações e contrastes entre elementos
presentes no repertório nadëb em comparação a um certo padrão da arte verbal xamânica rionegrina. Ao propor
tais discussões, almejo chegar a uma caracterização do repertório sonoro tradicional nadëb ao mesmo tempo em
que procuro analisar sua relação com o problema fundamental da reprodução humana, da produção do parentesco
e de corpos.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Paloma Reis Soares (UEFS)
Resumo: Este artigo pretende explorar a história social e linguística dos povos indígenas no sertão baiano, com
um enfoque específico na família Kariri, pertencente ao tronco Macro-Jê, por meio das abordagens da
Linguística Histórica e História Social Linguística. O texto enfatiza o impacto violento do processo de
colonização, que resultou na supressão e apagamento dos elementos históricos e socioculturais dos povos
nativos, revelando a diminuição da diversidade linguística e os danos infligidos às línguas indígenas. A
pesquisa almeja compreender a resistência, organização e legado dos povos indígenas no semiárido baiano,
considerando a relevância das línguas pertencentes ao tronco Macro-Jê, e a imperatividade de salvaguardar a
diversidade linguística e cultural que o caracteriza. A metodologia empregada é baseada em pesquisa
bibliográfica para investigar o processo histórico e compreender a formação do semiárido baiano por meio dos
atravessamentos históricos do período colonial, na intenção de visualizar a configuração em tempo atual. A
força dos povos indígenas e do tronco Macro-Jê são reconhecidas como componentes fundamentais na
configuração étnica e linguística da Bahia, consequentemente do Brasil. Entretanto, enfatiza-se que ainda há
muito a ser desvendado e protegido, incumbindo-nos a tarefa contínua de explorar e respeitar a herança
linguística e cultural dos povos indígenas, promovendo políticas inclusivas e práticas de preservação que
garantam a perpetuação de suas tradições e conhecimentos ancestrais.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Paola Andrade Gibram (UFGD)
Resumo: Neste trabalho apresento algumas reflexões sobre duas formas de arte verbal do povo Kaingang: os
vẽnh jyvẽn, também traduzidos, em português indígena, como aconselhamentos, e os
tỹnh, geralmente traduzidos como cantos. A partir da etnografia realizada nas Terras Indígenas
Apucaraninha (PR) e Rio Da Várzea (RS), abordo a importância de ambas para a circulação dos kanhgág jykre
[conhecimentos kaingang] e para os movimentos de retomada kanhgág, que incluem tanto retomadas territoriais
quanto retomadas de formas de conhecer e existir enquanto kanhgág pé [verdadeiramente kaingang]. Os
vẽnh jyvẽn e os tỹnh exploram com profundidade recursos poéticos, semânticos e
gramaticais da língua kaingang [kanhgág vĩ], sendo considerados de grande beleza e eficácia. Além
disso, apontam para formas de conexão e atenção específicas e formas de relacionalidade que extrapolam o
plano das interações humanas. Estão em jogo, nestas formas discursivas, relações com os javé [ancestrais] e
relações interespecíficas, especialmente com os tãn [donos, mestres] de animais, plantas e outros seres.
Falas e cantos que fazem o pensamento, os vẽnh jyvẽn e os tỹnh constroem e
reforçam os vínculos dos Kaingang com seus ancestrais demiurgos Kamé e Kanhru, acionando continuamente o
tempo do mito [gufã] no presente. Os vẽnh jyvẽn versam também sobre relações de
respeito, cuidado, atribuições daquilo que é há [bom, correto, belo] e korég [ruim, errado, feio],
moralidades kanhgág que se replicam desde as falas dos antigos no vãsỹ [tempo passado] e que
orientam as condutas no ũri [tempo de hoje]. Nesta apresentação, trarei tanto trechos e
transcrições dessas formas discursivas, quanto reflexões indígenas sobre a importância de se saber ouvir e
proferir adequadamente a kanhgág vĩ [língua, fala kaingang], para a qual os vẽnh
jyvẽn e os tỹnh são fundamentais.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Sâmela Ramos da Silva Meirelles (UNIFAP)
Resumo: O presente trabalho discute o protagonismo indígena na Década das Línguas Indígenas no Brasil (DILI -
2022-2032). Esse protagonismo se fortalece por um amplo processo de articulação e organização política em
torno da pauta de fortalecimento das línguas indígenas no Brasil a partir da criação, em abril de 2021, do
Grupo de Trabalho Nacional para a DILI. O GT Nacional é um movimento coletivo, independente e autônomo. É
constituído de uma equipe composta por indígenas de todas as regiões do Brasil e um conjunto de parceiras/os
ligados à instituições governamentais e não-governamentais, organizações/entidades indigenistas e
científicas. Atualmente, o GT se subdivide em três frentes de atuação: Línguas Indígenas Orais; Línguas
Indígenas de Sinais e Português Indígena; além de GTs regionais e estaduais. Esse GT elaborou e encaminhou,
à Unesco, o Plano de Ação para a Década Internacional das Línguas Indígenas. Pautados sob o lema Nada para
nós sem nós, afirmado na La Declaración de Los Pinos Chapoltepek (2020), o GT se constitui a partir da
participação efetiva dos povos indígenas nos processos de tomada de decisão, planejamento e implementação
das ações na DILI. No decorrer desses anos de atuação, uma série de documentos oficiais já foram
construídos, o mais recente é o documento intitulado Diretrizes para a criação de políticas linguísticas
para o fortalecimento das línguas indígenas no Brasil (2023), protocolado junto à Fundação Nacional dos
Povos Indígenas (Funai) e ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Os documentos elaborados pelo GT reúnem
propostas e anseios dos povos indígenas brasileiros e dos diferentes agentes engajados com os direitos
linguísticos desses povos, voltados à promoção, valorização, reconhecimento, difusão e vitalização das
línguas indígenas brasileiras. Encontramo-nos em momento crucial diante do perigo de adormecimento de muitas
línguas ancestrais no Brasil e no mundo, no qual a defesa dessas línguas se mostra central na garantia dos
direitos dos povos indígenas e de sua diversidade linguístico-cultural. Nesse sentido, há um chamado
ancestral para os povos indígenas e seus parceiros, para construirmos espaços coletivos e colaborativos,
conectando projetos de fortalecimento, revitalização, retomada, fortalecendo nosso espírito, nossa
ancestralidade, nosso território, nossa língua (Altaci Kokama).
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Vanessa Rosemary Lea (UNICAMP)
Resumo: Os Mẽbêngôkre são mais conhecidos como guerreiros, tanto em eventos como o encontro de Altamira em 1988 quanto na história documentada a partir do século XIX. Pesquisas linguísticas recentes que buscam reconstituir uma proto-língua Jê e seus diversos ramos: Jê Setentrionais, Centrais e Meridionais, sugerem que sua história remete a uns 2.000 anos de profundidade, algo análoga à história das línguas derivadas de latim. Os termos de parentesco triádicos, devido a sua complexidade, sugerem que nem sempre os Mẽbêngôkre dedicaram suas energias às atividades guerreiras. Tais termos remetem a 2 perspectivas simultaneamente, aquela do falante e aquela do interlocutor para se referir a uma terceira pessoa. Termos parecidos foram encontrados entre os povos originários da Austrália, sendo que no Brasil parece haver cognatos entre outros povos Jê Setentrionais como os Kisêjdê. O objetivo desta comunicação é divulgar esse fenômeno e ao mesmo tempo buscar sugestões para facilitar sua compreensão por pessoas não Mẽbêngôkre, para que sejam reconhecidos como uma contribuição original não apenas ao campo das terminologias de parentesco, mas igualmente às artes verbais.