ISBN: 978-65-87289-36-6 | Redes sociais da ABA:
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 080: Ontologia e Linguagem: línguas indígenas, artes verbais e retomadas linguísticas
Quarupe no Alto Xingu: mistura linguística em rituais intercomunitários a partir de um povo com língua severamente ameaçada (Yawalapíti/Aruak)
Duplas de cantores de diferentes aldeias do Alto Xingu (MT) convergem, todo ano, para as edições da festa Itsatchi, mais conhecida por Quarupe, sua forma aportuguesada. Este é um ritual pós-funerário em homenagem aos chefes falecidos que costuma reunir todos os povos do sistema multilíngue em que está inserido. Dentre os participantes, estão os cantores viajantes, cuja língua, em muitos casos, é ininteligível aos anfitriões. A partir dos usos que Menezes Bastos e Severi realizam da obra de Jakobson, proponho que as canções do Itsatchi traduzem, ou transmutam, não só mitos e agências extra-humanas em música, mas também processos e eventos históricos. Uma evidência é o estatuto linguístico deste repertório, que pode reunir até três famílias linguísticas diferentes em uma única canção. Dessa forma, sugiro que o horizonte multilíngue presente nas canções do itsatchi refletem o processo histórico de acomodação de povos recentes ao sistema. Se a música do itsatchi codifica processos históricos em letras plurilíngues, as canções possuem baixo entendimento semântico. Na maioria dos casos, são fórmulas linguísticas não utilizadas na fala cotidiana, mas que se mantém no repertório em questão, sendo considerada, pelos cantores yawalapíti, uma língua arcaica. Dessa forma, poucas palavras são passíveis de tradução, das quais pode-se inferir a diversidade linguística. Apesar de cada povo alto-xinguano ter sua língua como um dos principais fatores de identificação coletiva, o multilinguismo é um dos limites do sistema. Este é o caso dos Yawalapíti, que têm a sua língua (Aruak) criticamente ameaçada, com cerca de quatro falantes, sendo substituída, principalmente, pelas línguas Kuikuro (Caribe) e Kamayurá (Tupi-Guarani). Tal caráter limítrofe encontra-se, também, no canto do itsatchi. Nesse contexto, a presente apresentação se propõe a analisar uma sequência de canções do itsatchi, executada por cantores mehinaku na aldeia kamayurá, e suas exegeses, realizadas por um cantor yawalapíti. Neste excerto do repertório, pode-se inferir uma imagem de deslocamento e recepção entre povos, através da marcação linguística dos sujeitos, além de cenas mitológicas de diferentes pontos de vista. A música do Itsatchi integra uma cadeia progressiva que culmina na subjetivação de efígies de madeira capazes de atrair o duplo do falecido e na sua posterior dessubjetivação. Neste clímax hiper-povoado, cantores cantam e familiares choram evocando o morto através de termos de parentesco. Trata-se de processos que fazem novos chefes vivos, à medida que os não-vivos são postos na categoria de ancestral, e que aproximam povos distantes para uma colaboração musical e uma disputa física.