Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 080: Ontologia e Linguagem: línguas indígenas, artes verbais e retomadas linguísticas
Dois encontros com o curupira: tradução e análise de uma narrativa kotiria
O trabalho pretende apresentar e analisar uma tradução de uma narrativa dos Kotiria (povo falante de uma
língua tukano oriental e habitante do alto Rio Uaupés, no noroeste amazônico) que trata de dois encontros
entre um homem e um curupira numa clareira na floresta. Em ambos encontros, está em jogo uma negociação que
envolve prestações e contraprestações. Embora os significados investidos nos elementos trocados não sejam
necessariamente partilhados pelos interlocutores, há um acordo tácito sobre os mecanismos da troca.
A apresentação da narrativa permitirá destacar dois feixes de questões e suas relações entre si. O primeiro
feixe será dedicado a revelar uma série de qualidades linguísticas e poéticas da língua kotiria observáveis
na narrativa. Essas qualidades são, notadamente, a estruturação dos diálogos entre o homem e o curupira em
seus dois encontros e o uso de paralelismos, tomados no sentido amplo, dado por Roman Jakobson, de equações
verbais que constituem o texto poético ao estabelecer relações de similaridade e contraste. O segundo feixe
abordará os diálogos entre o homem e o curupira na chave de um encontro que, sendo realizados entre um
humano e um outro-que-humano, remetem às diferenças de perspectiva e de pressupostos ontológicos existentes
entre eles.
A proposta de abordagem de materiais etnográficos inspira-se principalmente em trabalhos inscritos na
tradição da virada ontológica na Antropologia. Como mostram pesquisas mais recentes sobre as artes verbais
das terras baixas da América do Sul, os estudos linguísticos e da tradução têm o potencial de dar novos
direcionamentos a questões postas por essa tradição. O cerne, portanto, da apresentação é a exploração, por
meio de uma narrativa kotiria e de sua tradução, das possibilidades de uma compreensão mútua: de um regime
ontológico específico por meio de suas expressões poéticas e, ao mesmo tempo, de determinadas feições
linguísticas e poéticas em suas relações com certos pressupostos ontológicos.
A narrativa (e sua tradução) que será apresentada é Boraro khiti (História do curupira), na versão contada
em língua kotiria por Ricardo Cabral à linguista Kristine Stenzel em 06 de Janeiro de 2002, em São Gabriel
da Cachoeira. Para minha tradução, baseei-me na documentação audiovisual e na transcrição da narrativa feita
por Stenzel, que está acompanhada de uma glosa interlinear. Apoiei-me também na gramática e da língua
escrita pela mesma linguista, no dicionário kotiria-espanhol de Nathan Waltz e em consultas pontuais a
interlocutores kotiria. Fundamental também para a tradução e a análise que lhe segue é a conversa que tive
com interlocutores kotiria em julho de 2023 sobre o curupira e as formas como pessoas kotiria se relacionam
com ele.
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