Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 080: Ontologia e Linguagem: línguas indígenas, artes verbais e retomadas linguísticas
Assovios, gritos e esturros: a atração de animais como arte verbal
Na Terra Indígena Rio Guaporé, local que faz fronteira entre o Brasil e a Bolívia, o pajé djeorometxi
incentiva os jovens kujubins, wajurus, kanoés, djeorometxis e aikanãs a arremendarem certos animais, isto é,
a assoprarem, gritarem e urrarem o que eles denominam de línguas dos bichos. Concomitantemente, com a ajuda
de uma cuia, o pajé serve aos garotos um banho preparado de uma mistura de folhas e raízes conhecida como
folhas de bichos, que impregna o corpo do iniciando com o cheiro de suas presas. Tais procedimentos
apreendidos em momento ritual serão levados adiante pelos rapazes para se tornarem bons caçadores no futuro.
O arremendar e o banho de folhas de bicho acabam por possuir uma mesma natureza: eles servem para comunicar
afecções, para atrair e enganar animais. No entanto, falar com e cheirar como os animais apresenta um risco
por vezes mortal aos caçadores: a transformação intencional e parcial que eles almejam alcançar ao se passar
por sua presa para confundi-la e atraí-la.
Abandonando uma série de elementos que o torna um ser humano no seio do parentesco, o caçador deve assumir
um corpo dotado de afecções diversas, que se locomove e inala cheiros diferentes. Expressando significados
dessas línguas animais, o caçador trata como parente não aquele com o qual ele compartilha tabaco ou chicha,
que fala sua língua materna ou que se pinta com jenipapo e patoá, mas aquele ser empoleirado em um galho,
escondido na vegetação rasteira ou pendurado pelo rabo. Adentrando nestas nuances, esta apresentação
refletirá sobre tais práticas cinegéticas que envolvem a noção de línguas animais. Mas mais do que isso,
pretendo refletir sobre como e de que maneira os povos indígenas no Rio Guaporé pensam a questão da língua e
da linguagem, estendendo essas categorias até aos seres não-humanos. Por meio de assopros, urros e gritos,
os caçadores acabam atraindo os animais; mas que tipo de comunicação seria esta, em que está em jogo uma
atração quase sempre mortal para ambos os lados? Por fim, este trabalho terá o esforço de pensar o
arremendar enquanto uma arte verbal, comparável aquela praticada por cerimonialistas, cantores, dançarinos e
xamãs. As línguas animais são línguas que devem ser assopradas, gritadas ou urradas. O sucesso cinegético
perpassa por um conhecimento artístico e técnico dessas línguas animais: para saber caçar, digamos que além
de um bom caçador, o caçador deve ser um bom soprador/cantor/falante/artista.