Grupos de Trabalho (GT)
GT 011: Antropologia da técnica
Coordenação
Guilherme Moura Fagundes (USP), Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias (UFSC)
Debatedor(a)
Eduardo Di Deus (UNB), Fabiano Campelo Bechelany (ministério da igualdade racial), Thiago Novaes (UFF)
Resumo:
A 6ª edição deste GT busca dar continuidade às reflexões iniciadas na 29ª RBA, contribuindo para a ampliação do interesse pelo tema e a consolidação desta área de estudos na antropologia brasileira. Quando tratamos de técnica no sentido maussiano, como « ato tradicional eficaz », é necessário, seguindo Sigaut, lembrar que não temos acesso direto às técnicas em si. O que vemos são pessoas fazendo coisas. Nesse sentido, este GT tem um interesse particular nas estratégias metodológicas oferecidas pela antropologia da técnica para perceber e descrever os processos de operação, manipulação, coordenação e correspondência, além das relações de predação, simbiose e cooperação implicadas nas variadas interações entre humanos e não-humanos (artefatos, plantas, animais, minerais, máquinas e ambientes de modo geral). Apostamos na tecnodiversidade envolvida nestas cadeias de atos enquanto entrada perspicaz para o entendimento das condições de habitabilidade dos mundos, sobretudo diante da atual crise ecológica e das ansiedades tecnofóbicas/tecnotópicas provocadas pela irrupção do digital. Assim, estimulamos a submissão de comunicações que abordem tanto as habilidades e composições sociotécnicas, quanto as hierarquizações e políticas mais que humanas. Consideramos de grande relevância os trabalhos que privilegiem aspectos etnográficos, inclusive aqueles mediados por equipamentos audiovisuais, qualificando a análise descritiva de processos técnicos em escalas e temporalidades diversas.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
André Gondim do Rego (IFB)
Resumo: Açaí é o fruto de uma variedade de palmeira nativa da região norte do país (Euterpe Oleracea) com grande incidência em áreas alagadas. O Brasil é o maior produtor mundial da fruta e o estado do Pará abarca mais de 90% dessa produção. O aumento crescente da demanda, local e global, tem incentivado cada vez mais estudos para sua produção em terra firme e por meio de irrigação. Tais estudos têm se concentrado no bioma amazônico. Por sua vez, iniciativas de cultivo em outras regiões do país são escassas e, até aqui, recebem pouco ou nenhum suporte de agências de pesquisa e extensão rural. Não por acaso, iniciativas recentes de incentivo à sua produção no Cerrado – ambiente avesso às condições pensadas como ideais para este cultivo – tem sido tratada com certa surpresa, mas também como uma grande oportunidade. Uma referência incontornável neste cenário é o trabalho pioneiro de cultivo e processamento do açaí no Distrito Federal realizado por dona Aida Kanako, mulher, esposa e mãe transformada em produtora rural por intermédio dessa fruta. Este trabalho discute a dinâmica de sua aprendizagem técnica do processamento do açaí, considerando a história de tal aprendizagem como um processo de coprodução – a um só tempo da planta, da polpa e da pessoa –, processo que, nos próprios termos de dona Aida, envolve um “grande experimento”. Embora o foco da apresentação recaia sobre seu engajamento no processamento da fruta como polpa, este não pode ser compreendido sem referência à própria atividade de plantio e às iniciativas posteriores para sua comercialização. A pesquisa se baseia nos relatos dessa produtora sobre o caminho percorrido ao longo desse “grande experimento”, bem como na observação de suas tentativas de reencaminhar seus resultados na atualidade a partir de novas mediações envolvendo humanos e não humanos que passaram a cruzar, confluir ou concorrer com ela na produção continuada desse caminho.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Bruna Cobelo Pinelli (UFSC)
Resumo: Os povos indígenas compartilham um quadro de injustiça deflagrado pela privação do acesso a direitos humanos fundamentais. De maneira geral, no Brasil, as aldeias estão expostas ao consumo de água contaminada e a dejetos humanos sem tratamento. A respeito da situação das condições sanitárias dos indígenas em Santa Catarina, foi realizada coletas pela equipe do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI Litoral Sul) em 2023. Segundo o levantamento, apesar de 96% das aldeias Guaranis do Estado terem estruturas de captação e abastecimento de água, a maioria encontra-se em ruim ou péssimo estado de conservação. Este estudo etnográfico trata do saneamento básico e do acesso à água potável no território indígena Tekoa Vy’a, da etnia Mbya Guarani, localizada em Major Gercino/SC. A ineficiência do Estado em prover um direito básico destas populações evidenciou a necessidade da presença de organizações não governamentais para ajudar a solucionar problemas sanitários no território. A pesquisa inicia com a problemática da falta de água na Tekoa Vy’a, motivando a intervenção de ONG’s e de um projeto de extensão da Universidade Federal de Santa Catarina, denominado “Saneamento Ambiental em Aldeias Indígenas de Santa Catarina”, desenvolvido pelo NEAmb (CTC/UFSC). As análises deste estudo focaram as relações sociais a partir das águas, observando as ações da implementação de técnicas e tecnologias sanitárias que incluíam: a reconstrução do sistema de abastecimento, proteção de nascente fonte Caxambu, aqualuz® (sistema de desinfecção solar) e coleta de água. Além disso foram observados os conflitos durante a execução do projeto que destacam a necessidade de compreender os diferentes tipos de engenheiros presentes: o engenheiro popular e o técnico, e os impasses ocorridos durante a aplicação de técnicas sanitárias com os moradores indígenas. As estratégias metodológicas utilizadas foram a observação participante nas dinâmicas sociais, em vivências da realidade da Tekoa Vy'a e aplicação entrevistas, pesquisa bibliográfica e documental. Nestes quase dois anos em campo (desde março de 2022) observamos processos de operação e manipulação de técnicas e tecnologias sanitárias dentro deste território indígena, buscando a melhor abordagem para implementá-las. Destacamos a importância do entendimento prévio do local físico e relacional, da negociação entre usuário real e usuário-projeto e da compreensão dos modos de aprendizagem da comunidade.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Carlos Victor Correa Pontes (Centro de Formação Saberes Ka'apor)
Resumo: Os dispositivos tecnológicos digitais de informação e comunicação desenvolvidos durante as últimas décadas tem apresentado eficácia na captação da atenção dos usuários e na relação de dependência estabelecida entre eles. Zuboff (2021) argumenta que distintos grupos sociais estão tendo seus imaginários e relações sociais alteradas pela vigilância massiva que as grandes corporações tecnológicas estão submetendo a sociedade. Porém, é necessário reconhecer que a relação de dependência com essas tecnologias de mercado não afeta todos os grupos de maneira uniforme, necessitando de uma maior atenção para seus impactos entre os povos indígenas.
O povo Ka’apor, habitantes da região amazônica no noroeste do estado do Maranhão, tem se questionado sobre os impactos que as redes sociais e outras formas de socialização digitais tem ocasionado em sua sociedade, atribuindo horários específicos para que os aparelhos de acesso à internet sejam ligados e desligados. Embora o aparelho celular e a rede de internet proporcionem registrar, produzir e divulgar provas contra invasores do território indígena, ela também interfere nas relações entre membros do grupo, privilegiando outras lógicas relacionais que se contrapõem ao Bem Viver, como a lógica de consumo.
De acordo com Hui (2021), a aceitação de tecnologias estrangeiras podem contrariar a cosmovisão de povos e comunidades tradicionais, e repensá-las criticamente constitui um papel fundamental para a sua negação, reapropriação ou produção. Sendo necessário estimular a criação de tecnologias alternativas que possam se contrapor ao desenvolvimento tecnológico do Norte Global, que impõe uma história universal da técnica e nega valores culturais próprios dos povos que se recusam a aceitar a racionalidade imposta pela colonialidade. Cusicanqui (2010) argumenta que a produção de uma técnica diversificada deve priorizar a valorização epistemológica de cada povo, através de seus códigos, linguagens, ações e conhecimentos culturais e políticos.
Nesse sentido, esta pesquisa pretende apresentar como os arranjos sociotécnicos são utilizados pela sociedade Ka’apor, suas expectativas em relação ao contato interétnico estabelecidos com grupos de apoiadores através da rede, que ajudam na disseminação de imagens e vídeos sobre invasões e conflitos com atores da sociedade nacional e fornecem apoio aos indígenas para pressionarem as instituições governamentais responsáveis pela sua proteção, e suas frustrações em razão da dependência que os indivíduos de cada comunidade, sobretudo os mais jovens, estabelecem com as tecnologias digitais, como as redes sociais, e deixam de valorizar aspectos da própria cultura para considerar formas relacionais próprias da sociedade ocidental que contrariam o Bem Viver.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Eduardo Di Deus (UNB)
Resumo: Há dez anos apresentei, na primeira edição do GT antropologia da técnica, um trabalho sobre uma faca motorizada que havia sido lançada pouco tempo antes no interior de São Paulo e que prometia substituir as centenárias facas utilizadas para realizar a sangria de seringueiras (Hevea spp.). Trata-se de um ofício altamente dependente das habilidades manuais de trabalhadores que, em plantações localizadas em diferentes regiões tropicais do mundo, desde o final do século XIX, extraem o látex das cascas dessas árvores nativas da Amazônia, um produto que está na base da produção de borracha natural. Naquela ocasião, a faca motorizada havia falhado, não havia sido adotada nas plantações de seringueira localizadas no interior de São Paulo (nem em outras regiões do país). A partir de etnografia realizada junto a trabalhadores na região com maior concentração de plantios da árvore produtora de borracha, discuti a fenomenologia da interação humano-máquina-vegetal envolvida na rejeição do objeto técnico. Dez anos depois, uma nova faca motorizada de sangria é anunciada, dessa vez em desenvolvimento em uma nova região produtora da borracha natural, no cerrado goiano, próxima a Brasília e a Goiânia. Dessa vez, circulam informações sobre a eficácia do novo objeto técnico que, diferente do anterior, gera interesse e euforia em produtores rurais e técnicos da heveicultura.
A história da produção da borracha natural é reveladora de processos característicos do campo que vem sendo denominado “plantationoceno”, como a intensificação da disciplina e da dominação de seres humanos e não humanos (Chao, 2022). Nessa comunicação pretendo analisar esse novo capítulo na linhagem técnica da extração da borracha, descrevendo a recepção da nova máquina em campo e situando as reflexões a respeito do desejo patronal pela maquinização (Di Deus, 2017) da sangria de seringueiras e da eliminação do chamado “problema da mão de obra” no contexto das discussões sobre o plantationoceno.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Frederico José Coffani dos Santos Sabanay (USP)
Resumo: É possível inferir sobre uma antropologia da monocultura a partir de redutos onde resiste a diversidade? O que pode dizer uma antropologia da técnica que investiga as relações entre humanos e não-humanos sobre o caráter das desigualdades raciais, ecológicas e políticas tanto nos contextos de perturbação ostensiva do mundo da monocultura quanto dos envolvimentos ecossistêmicos de comunidades quilombolas em seus territórios? Essas questões são mobilizadas a partir da pesquisa de mestrado em andamento “A arte de resistir no Plantationoceno: roças quilombolas e monocultura da banana no Vale do Ribeira” (título provisório), realizada pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (PPGAS/FFLCH/USP). A apresentação deste trabalho pretende relacionar as noções de tecnodiversidade, proposta pelo filósofo Yuk Hui (2020), de escalabilidade e não-escalabilidade em Anna Tsing (2019) e discussões sobre o cultivo de plantas de um ensaio de André-Georges Haudricourt (2013 [1962]) com o contexto etnográfico da pesquisa que descreve as transformações técnicas dos manejos de variedades de bananeiras (Musa spp.) nas comunidades quilombolas da região do Médio Rio Ribeira de Iguape, nos municípios de Eldorado/SP e Iporanga/SP. Com a patrimonialização do Sistema Agrícola Tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2018, que inventariou um conjunto de práticas e saberes dos modos de vida de 19 comunidades quilombolas da região, os órgãos ambientais passam a reconhecer, por meio de dispositivos jurídicos, direitos associados às práticas da agricultura quilombola itinerante a partir de “indícios de tradicionalidade” (SIMA, 2022). A tecnodiversidade nos cultivos de bananeiras em associação com as práticas e saberes ancestrais quilombolas passam a ser encarados como um problema pela fiscalização ambiental, reverberando conflitos com a ecologia política diversificante das comunidades quilombolas. Pensadas enquanto redes sociotécnicas (Latour, 1994), as mediações entre quilombolas e bananeiras em sua diversidade se filiam a continuidades e descontinuidades técnicas, atravessadas por memórias, resistências, processos de diversificação ecológica e por tensionamentos coloniais ocasionados pela associação histórica da monocultura da banana com a sobreposição de unidades de conservação nos territórios quilombolas. A presente pesquisa busca somar às discussões da antropologia da técnica no Brasil a partir dos rizomas de bananeiras que transitam entre a ecologia diversificante quilombola e a produção de mundo da monocultura.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Gabriel Luz Siqueira de Aquino Vieira (UFSC)
Resumo: Essa ideia veio de uma conversa com meu orientador, e ao pensar sobre o mercado de pescados e como se dariam os cortes feitos nas peixarias, ele me propôs a como seria necessário não só fazer etnografia, mas também fazer antropologia (Ingold, 2015; 2016). Fazer antropologia no sentido de realizar o corte de um peixe como uma tentativa de aprendizado. Ou seja, cortar o peixe fazendo antropologia como educação da atenção.
Utilizei dessa estratégia também inspirado em Sautchuk (2013; 2014) e sua pesquisa com a pesca com arpão. Assim, seria uma maneira não só de aprofundar meu conhecimento na prática do corte e pensar em novas questões para meus interlocutores, mas também de registrar todo o passo a passo. Esse movimento tinha como a intenção o aprendizado pela prática, percebendo o processo pelo corpo e pelo movimento, trazendo a questão de como se trás uma pessoa para o centro dessa atividade realizada. Essa atividade também nos mostra muito sobre vários processos e corpos diferentes. Assim, a ideia aqui é que nesse exercício estarei aprendendo sobre esses processos, corpos e também construindo novas questões sobre o campo que fiz (Ingold, 2015; 2016).
Pensando junto ao ensaio Andando na prancha de Tim Ingold (2015), também cheguei a conclusão de que sua experiência serrando uma prancha de madeira e a minha cortando um peixe (no caso, uma anchova) dividem algumas similaridades. Da mesma forma que, o corpo de quem serra uma prancha participa ativamente do exercício, o corpo de quem corta também participa ativamente do corte. O corte depende de uma junção de muitas coisas.
Apesar de conseguirmos pensar em um passo a passo para ser aplicado no corte, ainda dependemos de muitas variáveis. Como: qual peixe é este, se sua carne está rígida, qual resultado é almejado e et cetera. O que ressalto aqui é que seria muito difícil construir uma espécie de guia, justamente por causa da quantidade de variáveis, pois, além dessas variáveis do peixe, ainda temos que pensar nas variáveis do corpo de quem corta e em como dois movimentos nunca serão iguais (Ingold, 2015). Existe também uma especificidade em relação ao corte. Diferente de uma caminhada, por exemplo, o corte não desaparece.
Tudo isso também diz respeito a criação de uma sensibilidade no olhar, não só quando pensamos no corte, mas também no registro. Pensando que o meu repertório de conhecimento que vai me ajudar a entender o que está acontecendo (Novaes, 2021), é também a partir do desenvolvimento dessa sensibilidade que irei notar muito dos que meus interlocutores me dizem e conseguir perceber o meu avanço nesse aprendizado.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Gilton Mendes dos Santos (UFAM), Lorena França Reis e Silva (UFSC)
Resumo: Há uma grande diversidade de modos de processar e consumir as espécies vegetais pelos povos tradicionais da Amazônia, o que se desdobra em distintos modos de conhecer, produzir e promover a biodiversidade da floresta. A riqueza de técnicas e operações de transformações, construída ao longo do tempo e conectada às formulações cosmológicas, foram e são empregados nas transformações de plantas de modo amplo ou transversal, sejam estas cultivadas ou não, domesticadas ou silvestres, nativas ou exóticas, da roça, da floresta ou da capoeira. Neste trabalho, apresentamos um recorte sobre três espécies vegetais – o açaí (euterpe sp), a batata mairá (casimirela sp) e o umari (poraqueiba sp) –, observando os modos de transformação técnica que permitem a obtenção de ingredientes fundamentais (a goma e a massa) ou a alteração dos estados da matéria vegetal (defumação, fermentação). A elaboração conceitual e prática dos povos indígenas sobre os frutos está expressa não apenas nos modos materiais de transformação, mas também nas cosmologias e nos ritos a ela unificados, isto é, numa cosmotécnica, como procuramos evidenciar na análise sobre o umari entre os povos Tukano do Noroeste Amazônico. Este fruto, cultivado e não cultivado, presente nas capoeiras e na floresta, e suas diversas formas de processamento, nos ajuda a pensar como a técnica se apresenta como uma profícua ferramenta de dissolução de antinomias adotadas historicamente para falar da imbricada relação dos povos indígenas com a floresta amazônica.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Guilherme Henrique Vasconcellos Leonel (as)
Resumo: Quando Leroi-Gourhan classificou o ato humano por excelência como “a criação de um tempo e espaço humanos” (Leroi-Gourhan, 1993, p. 313), ele não estava necessariamente pensando nos ritmos e dinâmicas do trabalho de cozinhas profissionais, mas poderia muito bem estar. Seja ao controlar o tempo de cocção, mantendo-se alerta às transformações das substâncias e respondendo de acordo, seja no corte e preparo de ingredientes, inserindo-se num sistema que envolve ferramentas, insumos e espaços, seja circulando pela cozinha e respondendo “contínua e fluentemente a perturbações do ambiente percebido” (Ingold, 2010, p. 18 apud Ingold, 1993a: 462), o cozinheiro vê-se constantemente participando do ritmo que produz e é produzido pelo ambiente, utilizando-se de uma “educação dos movimentos” (Mauss, 2003) para “em face das proclividades anárquicas de seus materiais, [...] manter alguma aparência de controle sobre o que se passa” (Ingold, 2012, p. 35). Assim, o trabalho proposto por este resumo trata-se de uma parte de um dos capítulos de minha dissertação de mestrado, e parte de uma cena etnográfica na cozinha de um restaurante árabe de Florianópolis (SC) para questionar: como as relações entre cozinheiros, ferramentas e alimentos dentro do ambiente técnico da cozinha podem produzir um espaço e tempo próprios em que coisas, alimentos e pessoas estão em fluxo?
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Guilherme Rodrigues de Rodrigues (UFPEL), Renata Menasche (UFPEL)
Resumo: Nos Campos de Cima da Serra, região situada ao nordeste do Rio Grande do Sul e sudeste de Santa Catarina, é realizada a produção tradicional de Queijo Serrano. O queijo é um produto artesanal, feito à base de leite cru recém ordenhado, sal e coalho. As condições ambientais, climáticas, territoriais e microbiológicas fazem deste queijo um produto único, com aromas e sabores característicos.
Cultura, identidade, tradição, saber fazer e outros elementos são traços distintivos deste queijo. No entanto, no Brasil – e particularmente no Rio Grande do Sul –, as normas sanitárias para produtos de origem animal são extremamente restritivas e inadequadas à realidade dos pequenos produtores. Essas regulamentações são frequentemente projetadas para atender às grandes indústrias, o que as torna pouco adequadas para estimular e facilitar a inclusão no mercado formal do queijo produzido por famílias, de modo artesanal.
Partindo dessa questão em direção a um diálogo possível, esta pesquisa propõe uma abordagem que visa aprofundar a compreensão desses conflitos, examinando as noções de vida que estão em questão. Propõe-se pensar sobre uma coevolução do ser humano com a fermentação (KATZ, 2011), abordagem que se distancia da que propõe uma relação antropocêntrica com o ambiente (SÜSSEKIND, 2018), aproximando-se de uma Antropologia da Vida (INGOLD, 2015). A urgência da questão está na necessidade de uma mudança de paradigma: trocar a ideia de um mundo asséptico pelo entendimento de que – como no estudo de Benemann (2021) – cozinhamos com outras vidas. Ou, pensando no queijo, produzimos com outros vivos.
Sandor Katz (2011) discute a fermentação como um fator integral da evolução do ser humano. Ele entende - pensando na alimentação - que a fermentação é a transformação do alimento por fungos e bactérias diversos. Logo, o queijo é, essencialmente, leite coalhado e fermentado por outras vidas. Como Nicole Benemann (2021) propõe, trata-se de cozinhar (com) outros vivos, criando sabores coelaborados em uma cozinha viva. Pensando com Katz (2011), o fermento está enraizado na cultura humana. O queijo é parte disso, pois, ao longo dos séculos, produtos fermentados - como pão, vinho, iogurte e cerveja - têm sido consumidos ao redor do mundo.
Culturalmente, traçamos nossos caminhos epistêmicos cotidianos em interação com outras formas de vida, coexistindo e coevoluindo com elas. Em vez de aniquilá-las, convivemos com elas - uma prática humana que persiste desde tempos imemoriais. Assim, a etnografia realizada visa contribuir à preservação da prática tradicional de produção do Queijo Serrano, além de incidir em debates teóricos no campo da Antropologia, explorando a ideia de vida e conectando-se com estudos sobre alimentação.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Larissa Brito Ribeiro (UNB)
Resumo: Três categorias de restauração de recifes de corais existentes no mundo vêm, há mais de 15 anos, sendo desenvolvidas e implementadas no Parque Nacional Arrecifes de Puerto Morelos, localizado no Caribe mexicano, e foram inseridas, em 2020, em um programa do governo mexicano de adaptação às mudanças climáticas: propagação sexuada, propagação assexuada e aprimoramento do substrato recifal. No interior de cada uma destas categorias, circulam globalmente diferentes possibilidades relativas aos objetos, processos e habilidades humanas para desenvolvimento e implantação das mesmas, configurando um campo marcado por “escolhas técnicas” (Lemonnier, 1993). Este trabalho parte de uma etnografia realizada no Parque, com uma abordagem comparativa de duas modalidades de restauração: a propagação sexuada, desenvolvida pelo Laboratório de Investigación Integral para la Conservación de Arrecifes (Coralium), vinculado à Universidad Nacional Autónoma de México, e a propagação assexuada, desenvolvida e implementada pela ONG Oceanus A.C. Enfocarei a adoção, pela equipe do Coralium, de uma rede de coleta de gametas de corais (que subsequentemente são fertilizados para cultivo de “bebês” de corais em incubadoras e aquário), que ganha destaque em relação a demais possibilidades de coleta de gametas: uma tenda subaquática, dois outros tipos distintos de redes e a coleta de gametas de colônias coralíneas cultivadas em aquários (ex situ). A referência à confeccção da rede (hacer rede) como um processo “mágico” pela líder do Laboratório, num curso de capacitação, lançou a pesquisa para o diálogo com as abordagens antropológicas acerca da relação entre técnica, magia e ciência, como parte dos elementos a serem analisados. Num contexto ainda incipiente de análise para a escrita da tese, o objetivo deste trabalho é explorar os elementos envolvidos na “escolha técnica” desta rede, como ela se vincula à relação estabelecida pela líder do Laboratório com a magia, bem como a associação com as categorias “cuidado” e “redução do stress” ao longo do processo de coleta, cultivo, semeadura e possibilidades de sobrevivência dos “bebês” de corais semeados no mar. A etnografia permitiu compreender que a rede, mais do que a projeção de intencionalidades humanas, está envolvida em um conjunto de relações estreitas entre as propriedades vitais dos corais e as ações de demais organismos, habilidades humanas, astros, eventos meteorológicos, um conjunto de objetos e ferramentas, compondo uma uma sequência operacional que abarca a formação e história da paisagem e as dimensões políticas que a atravessam.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Larissa Mattos da Fonseca (UFRGS)
Resumo: Resumo: este artigo propõe a recaracterização da agricultura feita no assentamento de reforma agrária 12 de Julho através da descrição de práticas de forrageio presentes no conjunto total das atividades agrícolas do assentamento. A prática de forragear diferentes plantas, para diferentes fins, ocorre no fluxo cotidiano das assentadas. Forrageiam-se folhas comestíveis, mudas e madeira para construção e manutenção de ferramentas. Tais práticas são feitas em espaços de mata, localizados no interior dos lotes familiares, assim como em antigas capoeiras e pousios, também no interior dos lotes. Incluir tais práticas na caracterização do que seja a agricultura feita no assentamento resulta da atenção às atuais propostas de ressignificação do que seja agricultura (GRAEBER; WENGROW, 2022), no entanto, a percepção alocada em tais práticas e sua inclusão e caracterização no sistema agrícola geral do assentamento decorre, de forma imprescindível, da aplicação (o que incluir, por vezes, reformulações) das perspectivas e dos métodos advindos da antropologia da técnica, de forma mais precisa das tipologias de modos de ação propostas pela antropologia da ação (FERRET, 2014) e dos métodos de engajamento em ações e encadeamento destas ações, decorrentes dos itinerários técnicos (DI DEUS, 2017).
Palavras-chave: técnica; forrageio; agricultura; assentamento de reforma agrária.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Leonardo Vilaça Dupin (Nacab)
Resumo: Este artigo privilegia a dimensão técnica envolvida na comercialização do queijo Canastra em um setor de mercado que vem sendo progressivamente ilegalizado por intermédio de instrumentos e mecanismos microbiopolíticos. Seu universo empírico é a área não desapropriada do Parque Nacional da Serra da Canastra, no sudoeste de Minas Gerais. Ali, a fabricação e comercialização
dos queijos se fazem presentes desde o período colonial, estando profundamente inseridas nos modos de vida locais e tendo atualmente enorme importância econômica para um conjunto de municípios de perfil marcadamente rural. A questão principal
será entender de que modo operam e se atualizam um conjunto de tecnicidades dos atores locais para o funcionamento desse mercado que, mesmo sendo corriqueiramente alvo de ações repressivas de fiscalização, abastece diferentes tipos de comércio e indústria nos grandes e médios centros urbanos e dão notoriedade nacional ao alimento.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Luís Guilherme Resende de Assis (MPF)
Resumo: Trago à discussão do grupo os possíveis encadeamentos do conceito de tecnógenos para a máxima maussiana da técnica como ato tradicional eficaz. Em geral associadas às intencionalidades técnicas, as eficácias, que redundam em tradições discretas, pouco trataram, em antropologia da técnica, da entropia das cadeias operatórias, manifestas em resíduos, sedimentos, ou desenvolvimentos mais ou menos autônomos, não diretamente vinculados à função dos 'objetos técnicos'. O debate arqueológico acerca da 'terra preta de índio' na Amazônia parece girar em torno dessa questão: ou bem resultou da agricultura - o que nã parece ter sido o caso - ou bem, das consequências não intencionais ou não (propriamente) funcionais do habitar na abundância. Na Antártica, por outro lado, recentes descobertas da composição do 'carvão foqueiro' por osso e gordura de baleia demonstraram maior controle da homeostase humana no ambiente polar pelos trabalhadores braçais do que imaginavam os arqueólogos, impactando a reconstrução histórica da anexação do continente ao Sistema-Mundo. O 'carvão foqueiro' também atua no presente, sendo observado não somente concentração de carbono equivalente a solos ornitogênicos de milhares de anos nos arredores dos sítios; como, ademais, franca atividade queratinofílica de fungos, semelhante à atividade natural de solos em berçários de elefantes marinhos. Um par de verões em que ocorreu a frequência humana dos sítios foqueiros equivaleu, portanto, à atividade natural de aves e fungos, indiciando a 'grande aceleração' doméstica no terreno austral. Esses dois aspectos colocam em perspectiva a colonização humana sucessiva dos últimos continentes, que, abordada desde a técnica (de habitar), parecem indicar a possibilidade de rastreio e integração analítica da antropologia, não pelos resultados técnicos eficazes e, por isso, tradicionais; mas pelos desenvolvimentos 'sedimentares' e pedológicos consequentes. Oportunidade em que se faz necessário sofisticar a abordagem da entropia - e suas manifestações - em sistemas técnicos, friccionando o que seja eficácia, tradição e função. Debates acerca do inorgânico na composição vocabular da antropologia da técnica, frequentemente pautada pela "vida" e "animação", me parecem relevantes; especialmente com a ressurgência do conceito geológico soviético de 'tecnógenos', anterior e concorrente do Antropoceno.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Luisa Amador Fanaro (UFSCAR)
Resumo: Nesta apresentação, minhas intenções são refletir especialmente sobre a dimensão sensorial da caça de trufas negras (Tuber melanosporum) no contexto da truficultura chilena. Como se verá, essa é uma prática que envolve uma multiplicidade de aspectos não verbais, como cheiros, movimentos, sons e texturas, e que depende da constituição de uma relação de cooperação entre seres humanos e outros-que-humanos.
No Chile, o cultivo de trufas remonta ao início dos anos 2000, momento em que técnicas, conhecimentos e o próprio fungo foram importados da Espanha com o intuito de implantar os primeiros “pomares trufeiros” na América do Sul. Não obstante, passadas mais de duas décadas desde o estabelecimento das plantações experimentais, a truficultura, ali, já tem um “DNA chileno” – em outras palavras, o cultivo de trufas, a depender de onde é desenvolvido, demanda “manejos culturais distintos”, e, no país sul-americano, novos métodos, técnicas e tecnologias, próprias para seu contexto e ambiente, foram criadas.
Durante a pesquisa de campo, realizada entre os anos de 2022 e 2023, pude acompanhar a rotina dos irmãos Rafael e Víctor Henríquez, dois dos sócios-fundadores da Agrobiotruf, uma empresa especializada na produção e venda de árvores micorrizadas, na implantação de “pomares” em território chileno e na preparação e comercialização de cães trufeiros. Hoje em dia, seja nos bosques europeus ou em pomares cultivados mundo afora, a caça de trufas é uma atividade desempenhada pelo binômio cão-humano, companheiros de longa data em uma diversidade de atividades. De acordo com meus interlocutores, os cães, ao contrário de porcos e javalis – muito utilizados para essa faina nos séculos passados, especialmente na França –, não são comedores naturais de trufas, são de fácil transporte e manutenção, têm alto rendimento de trabalho, aprendem rapidamente, e, por fim, têm uma excelente capacidade olfativa.
A partir de meus dados etnográficos, proponho, nesta apresentação, que é por meio do cão que aquilo que está oculto, escondido no subsolo, pode ser revelado. Nas palavras de Víctor, responsável por treinar os animais para a prática em questão, os cães “se conectam” com o aroma das trufas e permitem, com isso, que acessemos – através de seu olfato, principalmente – um mundo que nos é inacessível. Um mundo que, em última instância, depende da comunicação entre cães e trufas através de um cheiro e do desenvolvimento, entre cães e humanos, de formas de se comunicar a respeito dessa “linguagem fúngica” particular.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Marina Esteves Vergueiro de Almeida (Universidade de São Paulo)
Resumo: A apresentação visa compartilhar um projeto de pesquisa etnográfica acerca do composto sólido carbonoso chamado "biochar". Trata-se de um biocarvão gerado pela pirólise, processo de queima controlada de biomassa vegetal para geração de biocombustíveis. Componente sólido do resultado da queima, o biochar se mostra interessante para a indústria e para os cientistas climáticos uma vez que pode capturar e estocar grande quantidade de dióxido de carbono atmosférico e tem o potencial substitui fertilizantes químicos na agropecuária. Por essas razões, o biochar está inserido no rol das ditas Solução baseada na Natureza. A etnografia em questão tem como foco a startup NetZero, que em 2023 inaugurou na cidade de Lajinha-MG a maior planta do mundo de fabricação de biochar. A empresa afirma que a inspiração do biochar vem ao encontro de descobertas arqueológicas sobre os benefícios microbiológicos e físicos das Terras Pretas de Índio (TPI), que serve de inspiração para a fabricação biotécnica do produto. A pesquisa visa investigar não apenas os aspectos internos da fabricação do biochar, através do exame de sua cadeia operatória, mas também sua rede sociotécnica mais ampla. Espera-se, com base numa abordagem etnográfica simétrica, analisar em detalhe as práticas, os discursos e as interações do biochar com diferentes elementos sociais e naturais que extrapolam sua fábrica laboratorial, almejando problematizar as continuidades e descontinuidades entre as dinâmicas técnicas e ambientais que estão imersas em iniciativas contemporâneas de Solução baseada na Natureza.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Nicollas Pinheiro de Lima Santos (UNICAMP)
Resumo: Durante o verão de 2022, uma controvérsia se espraiou entre os pescadores artesanais de Alagoas. Em um período do ano no qual a pesca do sururu (Mytella falcata) se encontraria em alta, devido a maior reprodução desta espécie de mexilhão nos períodos de estiagem, pescadores e marisqueiras notaram que algo estava diferente. Ao cozer e peneirar as conchas extraídas da lagoa Mundaú, a população local notou que a carne de coloração amarelada, que deveria ser destinada a comercialização, não mais era encontrada nos sururus pescados. Buscando respostas para o que haveria acontecido, os pescadores acionaram o Ministério Público Federal, denunciando que a espécie pescada havia sofrido uma "mutação", devido a extração de salgema realizada por uma mineradora na região. Por sua vez, o MPF convocou cientistas da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), para que emitissem um laudo técnico que comprovasse a denuncia levantada pelos pescadores. Contudo, as análise feitas em laboratório apontaram para um resultado diferente, levando a conclusão de que a empresa não seria responsável por uma mutação no sururu pescado na lagoa, tratando-se de uma "espécie invasora". Através de algumas notas etnográficas acerca da cadeia operatória (Coupaye, 2017) da pesca do sururu, assim como da análise de documentos científicos e participação em audiências públicas, esta apresentação busca na comparação entre as diferentes operações técnicas dos cientistas e pescadores, compreender o porquê da divergência entre os diferentes atores, assim como apontar algumas considerações sobre as formas como estes diferentes sistemas sociotécnicos interagiram frente a controvérsia.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Pedro Rabello Brasil Corrêa (UNIFESP)
Resumo: O presente trabalho aborda a técnica, a saúde e doença, o sofrimento, enfim, o corpo e a vida. Trata-se de uma etnografia desenvolvida numa clínica de hemodiálise de um hospital público da cidade de São Paulo/SP, cujo objetivo foi investigar as relações entre humanos e máquinas ao longo de um processo terapêutico onde a técnica é elemento fundamental. A bem dizer, não existe hemodiálise sem a máquina de diálise: longe de ser mero incremento, ela é um instrumento que permite o exercício da medicina, por um lado, e a restituição da saúde e bem-estar dos portadores de doença renal crônica, de outro. Ou seja, a técnica na hemodiálise é tanto um regulador da atividade e do ambiente de trabalho dos profissionais da saúde, quanto uma garantia de eficácia do tratamento. Evidentemente, não há “cura” para a doença renal crônica, sendo ela uma marca indelével na vida dos enfermos. Mas, se conectados à máquina, estes passam a experimentar uma terapêutica que, apesar de rígida e exaustiva, atenua os sofrimentos e expande os limites dos corpos, devolvendo-lhes uma maior autonomia, qualidade de vida etc. Nesse sentido, o objeto técnico integra um jogo entre vida e morte, saúde e doença, gozo e dor, liberdade e privação; a clínica encerra um conjunto de relações sociotécnicas que reconfigura a própria vitalidade dos vivos, possibilitando-os instaurar novas normas de existência, as quais são enormemente tributárias dos não-humanos. Contudo, essas relações entre humanos e não-humanos não são “harmônicas” ou “equivalentes”. Embora possamos nos referir à máquina de diálise enquanto “objeto” técnico, ela pode vir a ser, por vezes, um sujeito e/ou agente. A depender da formação e autoridade do profissional, as manipulações e expectativas acerca da máquina são diferentes: médicos, enfermeiros e técnicos em enfermagem podem encará-la como algo “estranho”, “surpreendente”, “previsível”, “perfeito” etc.; as habilidades que possuem, a posição que ocupam na hierarquia da clínica, influem nas correspondências com a máquina, que adquire qualidades e significados distintos conforme os usos e desusos que se faz dela. Os pacientes, por sua vez, detêm um conhecimento tácito sobre a técnica, construído durante os anos de tratamento. Intuitivamente, eles sabem como a máquina funciona, sabem dos ganhos, perdas e dificuldades da hemodiálise, se familiarizando com a tecnologia através de experiências vivenciadas com o corpo e no corpo. Abrindo mão de quaisquer abordagens essencialistas e apriorísticas sobre as relações entre humanos e não-humanos, este trabalho pretende, portanto, tratar a técnica (no caso, terapêutica) de modo processual, relacional e multilateral, num esforço de pensá-la não como um recurso “artificial” ou “antinatural”, e sim como uma potência imanente à vida.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Rafael Gonçalves (UNICAMP), Giordanno Oliveira Padovan (UNICAMP)
Resumo: Com a crescente digitalização de diversos processos da vida cotidiana e o aumento significativo de situações mediadas por algoritmos, entender como estes são produzidos e funcionam é tarefa fundamental. Nesse sentido, uma classe de algoritmos de grande relevância hoje são os algoritmos bioinspirados, isto é, aqueles que visam imitar algum aspecto de processos biológicos. Exemplos importantes são o algoritmo de “otimização por colônia de formigas” (Dorigo; Birattari; Stützle, 2006), que visa simular o comportamento destas para resolver problemas diversos como o “problema do caixeiro viajante” e as “redes neurais artificiais” (McCulloch; Pitts, 1943; LeCun; Bengio; Hinton, 2015), principal componente das tecnologias de inteligência artificial contemporâneas como o Dall-E e o ChatGPT da Open AI, inicialmente inspiradas no funcionamento do sistema nervoso de animais e hoje utilizado para resolver as mais diversas tarefas, tais quais: classificação, geração e representação (de imagem e de texto, por exemplo). O processo de dupla tradução envolvido no desenvolvimento desses algoritmos que passa do comportamento de seres para observações-descrições biológicas e, por fim, modelos matemático-computacionais, não é direto e nem neutro (sobre a não-neutralidade da prática tecnocientífica, conferir, por exemplo: Latour, 2011). Nele, há a pretensão de extrair da atividade atual de existentes humanos ou mais-que-humanos, suas virtualidades, sua informação (Garcia dos Santos, 2003a; 2003b). Esse processo cria representações que instrumentalizam as potências desses existentes para a resolução de problemas computacionais que visam, principalmente, a acumulação capitalista. Nesse contexto, este trabalho parte de um corpus de artigos científicos de algoritmos bioinspirados - incluindo “redes neurais artificiais”, “enxame de partículas” (Kennedy; Eberhart, 1995), “forrageio de bactérias” (Passino, 2002), “enxame de abelha” (Karaboga, 2005), “colônia de formigas” e “algoritmo de morcego” (Yang; Gandomi, 2012) - para analisar como os próprios cientistas descrevem a passagem dos seres concretos para os modelos abstratos. O objetivo é descrever as traduções operadas por cientistas, relacionando esse processo com a noção de captura das virtualidades inerentes a estes seres.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Rafael Victorino Devos (UFSC)
Resumo: A pesca artesanal poderia ser indicadora de emergências climáticas? Essa proposta se dedica aos modos de coletivos de pesca lidarem com variações nas condições ambientais, que orientam cosmotécnicas da pesca artesanal, seus modos de relação ecológica e política com a paisagem que habitam, expressos em suas práticas. Tais cosmotécnicas poderiam revelar modos de se relacionar com emergências climáticas, percebidas da beira da praia, ou na percepção embarcada? Neste texto, apresento algumas reflexões a partir de pesquisas com pescadores, territórios pesqueiros e técnicas de pesca diferentes, no Sul e Nordeste do Brasil. Em especial, no caso do Sul do Brasil, as últimas temporadas de pesca da tainha têm sido pontuadas por fenômenos climáticos extremos – a incidência de ciclones extratropicais, chuvas e calor intenso e outros efeitos. Analiso transformações nas formas de entender as variações nas condições oceânicas em relação a outros aspectos da temporada de pesca, que os pescadores chamam de “novidade”, ou “notícia de peixes”, atualizada na vigia diária de cardumes. Destaco o modo de avaliação entre a sequência de eventos ecológicos, climáticos e sociais de uma temporada de pesca como variação sazonal intranual, atualizada pela memória das temporadas, ou safras anteriores, em uma avaliação de variações interanuais. Nestas últimas, eventos como El Niño e o aquecimento das águas e da temperatura média nos meses de frio se somam a outras variáveis, como políticas ambientais e econômicas em relação à pesca, ou mesmo dinâmicas internas aos coletivos de pesca. As avaliações intranuais remetem a um modo de relação aberto ao inesperado e a recursividade sistêmica dos eventos da temporada. Já as variações interanuais remetem a outros aspectos do modo de organização social dos coletivos de pesca e suas formas de articular a continuidade de seu modo de vida. Enquanto que as variações intranuais são observadas no cotidiano da vigia de cardumes e nos esforços de captura da temporada, para evocar avaliações de caráter interanual uma das ações de pesquisa foi a organização de uma exposição fotográfica no rancho de pesca, com imagens de diferentes safras do mesmo coletivo de pesca.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Valérie Seurin (EHESS - École des hautes études en sciences sociales (ED286))
Resumo: As cadeias operatórias são parte integrante da caixa de ferramentas do antropólogo para analisar e descrever processos sociotécnicos. Esta comunicação apresenta os motivos pelos quais as cadeias operatórias podem ser úteis também no contexto de uma etnografia multiespécie e multissituada, tomando como objeto o setor de sericultura, isto é, a criação do bicho-da-seda para a produção textil e laboratorial. A sericultura brasileira é uma atividade integrada que envolve o cultivo da amoreira (Morus sp.) e a criação do bicho-da-seda (Bombyx mori L.), com o objetivo principal de produzir casulos. Diferentemente de seus congêneres de seda selvagem, a seda domesticada se presta particularmente bem às necessidades da indústria têxtil, já que o fio secretado pelo dócil Bombyx mori L. é a única matéria-prima que a natureza emite na forma de um filamento contínuo (Erhardt et al., 1975). Além de ser um material têxtil, as propriedades inestimáveis da seda são uma fonte de bioinspiração, com novas aplicações sendo encontradas regularmente. Esse biopolímero mantém os pesquisadores ocupados em uma grande variedade de campos, e o bicho-da-seda é muito procurado tanto em viveiros de criação quanto em laboratórios industriais e científicos. A principal fábrica de fiação no Brasil (Fiação de Seda BRATAC S.A.), minha porta de entrada para a etnografia no país, tem sua especificidade e relevância justificada por fornecer lagartas, casulos e ovos de Bombyx Mori L. para fins de pesquisa nos departamentos de biologia, bioquímica e genética de universidades brasileiras. Mas também para fins de reprodução para criadores nos estados de Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná. A BRATAC trabalha com mais de cem cultivares diferentes de amoreira e a manutenção genética de mais de 70 raças diferentes de bicho-da-seda, já adaptadas ao clima tropical do Brasil. Minha comunicação buscará demonstrar a relevância desta cadeia operatória da seda para uma antropologia das técnicas e das relações interespecíficas.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Yves Marcel Seraphim (UFRGS)
Resumo: Quais são os caminhos possíveis para compreender a dimensão sensível da técnica por meio de fontes documentais e míticas? Este trabalho integra uma tentativa de caracterização e interpretação da vida social dos Laklãnõ de Santa Catarina ao longo do século XIX, quando a guerra com os não indígenas e com os Kaingang era parte integrante do cotidiano. Para tanto, a pesquisa coteja um conjunto de fontes históricas (documentos estatais e administrativos, relatos de viajantes, notícias em jornal etc.) a um conjunto de fontes míticas laklãnõ produzidas no início do século XX. Em particular, o intuito é enfatizar a materialidade do passado documentado e/ou narrado a ponto de exceder a constatação historiográfica de certos fatos técnicos, alcançando a capacidade de descrevê-los e interrelacioná-los. Tendo em vista que este é um momento inicial da pesquisa de doutorado, a apresentação privilegiará a experimentação metodológica (de inspiração estruturalista) para a compreensão de diferentes problemas colocados pela leitura das fontes. A discussão transitará por diferentes campos da experiência histórica indígena, incluindo as técnicas de guerra, a transformação do metal incorporado, a extração do mel, a capacidade de transporte de objetos e a agricultura. Nesse sentido, esta apresentação pretende testar limites e possibilidades para a relação entre o estudo do mito e o estudo da técnica, na expectativa de formular alternativas ao fosso que os separa entre o campo da imaginação e o campo da concretude.