Grupos de Trabalho (GT)
GT 065: Igualdade jurídica e de tratamento: etnografias de narrativas, produção de provas, processos decisórios e construção de verdades
Coordenação
Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer (USP), Regina Lúcia Teixeira Mendes da Fonseca (In)
Debatedor(a)
Ciméa Barbato Bevilaqua (UFPR)
Resumo:
A proposta deste GT é acolher pesquisas empíricas, especialmente etnográficas, a fim de promover discussões teórico-metodológicas voltadas para concepções de igualdade jurídica e de tratamento no sistema de administração de conflitos brasileiro, com destaque para o sistema judicial. A utilização do método comparativo em análises de diferentes sistemas nacionais e/ou internacionais será bem-vinda.
Pesquisas em antropologia do direito têm identificado que é frequente, em tribunais brasileiros, a utilização de distintos critérios na condução de procedimentos semelhantes, bem como não serem raras instabilidades semânticas relativas a aspectos processuais centrais, como a produção e a análise de provas. Elas têm constatado confrontos entre diferentes concepções de igualdade e percebido que eles acentuam a percepção de arbitrariedades nos desfechos das causas, fazendo com que o sistema de justiça seja questionado ao apresentar e impor seus resultados.
Assim sendo, este GT privilegiará trabalhos, preferencialmente etnográficos, voltados para a descrição densa de práticas e concepções de atores sociais engajados em dinâmicas como: 1) produção de provas judiciais, 2) construção narrativa de fatos e seu registro em peças judiciais, 3) formação da convicção de juízes(as) e/ou jurados(as), 4) disputas argumentativas em que sentidos e juízos morais compõem decisões judiciais, 5) práticas judiciais e extrajudiciais operantes em diferentes instâncias do sistema de justiça.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Asher Brum (UFMS), Bárbara Ferreira Ávila do Carmo (UFMS)
Resumo: Nosso objetivo é analisar o tribunal do júri e os autos processuais relacionados a um caso de
feminicídio indígena ocorrido em uma aldeia no território guarani tradicional, em Mato Grosso do Sul. A
vítima trata-se de uma liderança indígena feminina do povo Guarani Ñandeva (tupi-guarani). A mulher
assassinada era uma rezadora. Foi alvejada com disparos de revólver por dois homens encapuzados nos fundos
de sua casa, onde estava com seu filho. Um dos acusados, um homem da mesma etnia e morador da mesma aldeia
que a vítima, foi levado ao tribunal do júri sob a acusação de feminicídio. Nosso intuito é observar os
autos processuais e o tribunal do júri referentes a esse caso para evidenciar como se dá a construção da
vítima por meio de narrativas diversas: o boletim de ocorrência, as falas dos personagens no tribunal do
júri, o depoimento do réu e das testemunhas etc. Argumentamos que as diferentes narrativas construídas em
relação à vítima apresentam o eixo étnico como elemento norteador, aspecto estabelecido pelo laudo
antropológico inserido no processo e que foi articulado de diferentes formas pela defesa e pela acusação.
Baseamos nosso argumento no conceito de identidade narrativa, formulado por Paul Ricoeur, em "Tempo e
narrativa". De acordo com o autor, a identidade é construída por meio de histórias narradas. No caso que
observamos, há uma disputa narrativa em torno da construção da identidade da vítima, fazendo surgir
múltiplas identidades. Olhar para as construções narrativas sobre a vítima em diferentes registros nos
ajudam a perceber como experiências culturais se traduzem em narrativas no tribunal do júri, tal como
demonstrou Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, em "Jogo, ritual e teatro: um estudo antropológico do Tribunal do
Júri". A metodologia será etnográfica. Em um primeiro momento, utilizaremos a etnografia de documentos para
analisar os autos processuais do caso e, em um segundo momento, nos apoiaremos na etnografia de narrativas
para descrever as construções narrativas sobre a vítima no tribunal do júri, evento que representa o
desfecho do processo. Este trabalho apresenta os primeiros resultados de uma pesquisa em andamento que
iniciamos em 2023.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Beatriz Reato Bourdon (FFLCH-USP), Júlia Mamoré Di Nucci (FFLCH)
Resumo: Este trabalho se embasa em duas pesquisas de iniciação científica (IC), em curso, inseridas em um
projeto maior intitulado Conhecendo o Tribunal do Júri Federal brasileiro, resultante de uma parceria entre
o Núcleo de Antropologia do Direito da Universidade de São Paulo (NADIR-USP) e a Escola Nacional de Formação
e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM). Tal projeto parte da constatação de que, sendo poucos os estudos
sobre o Júri federal no Brasil e também pouco acessíveis informações e dados sobre seu funcionamento e
resultados, cabe conhecê-lo, de modo sistemático, detalhado e analítico.
Nossas ICs se situam na etapa exploratória desse projeto, cuja meta é investigar e mapear, a partir de dados
disponíveis nos Tribunais Regionais Federais (TRFs), na mídia, em sites e em produções acadêmicas,
informações sobre casos julgados por Júris federais, entre 01/1989 a 12/2022.
O que propomos, a partir de um recorte de nossas ICs, é uma comparação entre um caso julgado por um Tribunal
do Júri federal e um caso julgado por um Tribunal do Júri estadual, a fim de analisarmos diferenças
relativas a provas judiciais produzidas nos plenários de um e de outro. O Júri federal, a que assistimos,
on-line, de 18 a 21/09/2023, se referia ao homicídio de um agente penitenciário federal, em Catanduvas/ PR,
a mando do PCC. O Júri estadual, que acompanhamos, presencialmente, no Fórum Criminal de São Paulo/SP, em
05/10/2023, dizia respeito a uma tentativa de feminicídio.
Essa comparação sugere que, no Júri Federal, provas mais robustas são produzidas em plenário, dentre outros
motivos e situações, quando agentes federais estão nas posições de acusados ou de vítimas e porque a Polícia
Federal, uma vez acionada, trabalha com mais recursos do que as Polícias Civil, Militar e Científica
estaduais. Tais hipóteses surgiram das etnografias que realizamos nos dois julgamentos e de neles termos
percebido diferenças significativas entre a quantidade e a qualidade dos laudos periciais realizados e
apresentados aos jurados, bem como entre as provas testemunhais produzidas nos plenários.
Sem a pretensão de, a partir de apenas dois casos, concluirmos algo mais sólido, esperamos contribuir para
os debates do GT contrastando aspectos das facetas federal e estadual de uma mesma instituição do sistema de
justiça brasileiro (o Tribunal do Júri) e pensando suas implicações para a igualdade jurídica, de
tratamento, processos decisórios e de construção de verdades.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Carolina Penna Nocchi (Ministério Público Federal - MPF)
Resumo: O paper aborda as noções de hipossuficiência, tutela e dádiva como categorias relevantes para reflexão
sobre a atuação cível do Ministério Público no âmbito da tutela coletiva de direitos de comunidades
tradicionais. O trabalho tem como referência pesquisa etnográfica de mestrado (Programa de Pós-Graduação em
Direito da UnB) realizada em 2022 e 2023 na Procuradoria da República no Distrito Federal (MPF), com enfoque
em dois casos específicos. Um acompanha ação judicial proposta pelo MPF, por meio da qual uma área, o
Santuário Sagrado dos Pajés, em Brasília/DF, foi reconhecida como terra indígena; e outro acompanha a
repercussão para os direitos de uma comunidade cigana no DF do aprisionamento indevido de sua liderança. A
atuação cível do Ministério Público em relação a comunidades tradicionais está inserida na área do direito
do processo coletivo, que ganhou força com Constituição de 1988 e na qual o Ministério Público ocupa papel
central. A atuação quanto a direitos coletivos é identificada pela categoria nativa de tutela coletiva. A
análise da participação do MPF nos casos joga luz na característica tutelar da atuação do Ministério
Público, que age amparado tanto na ideia de hipossuficiência, que estrutura a função institucional do órgão,
como também, paradoxalmente, no discurso de respeito ao ponto de vista dos envolvidos, sendo tal atuação
tensionada pelo protagonismo das comunidades. Isso resulta tanto na dissintonia entre o discurso e a prática
institucional do MPF, como também em processos de exclusão e inclusão discursiva das comunidades
tradicionais ao longo do processo de administração do conflito.
É necessário levar em conta, ainda, que essas dinâmicas são permeadas por relações estabelecidas mais em uma
lógica maussiana de dádiva do que em uma lógica contratual, utilitarista, de equivalência perfeita e
imediata.
Os atos identificados como de exclusão discursiva, em que o MPF não levou a sério o ponto de vista
expressado pelas comunidades, além de resultarem em experiências de vivência de cidadania inferior, também
não contribuíram para a administração dos conflitos, que se desdobraram em mais incidentes. Por outro lado,
a reação das comunidades e a resposta dada pelo MPF em algumas situações levou a vivências de inclusão
discursiva, em que o diálogo mais substantivo ocorreu, permitindo-se um melhor endereçamento das demandas de
direitos das comunidades e contemplando-se a dimensão do reconhecimento.
Identificar e compreender os processos de inclusão e exclusão discursiva e como a tutela, hipossuficiência e
dádiva pautam esses processos mostra-se importante, portanto, para entender as dinâmicas da administração do
conflito e como se dá a vivência da cidadania pelas populações tradicionais.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Ciméa Barbato Bevilaqua (UFPR)
Resumo: Este trabalho aborda transformações associadas ao transbordamento de normas legais e práticas
processuais entre sistemas jurídicos. Embora o impulso expansionista de formas jurídicas, usualmente em
condições políticas assimétricas, não seja de modo algum um fenômeno novo, parece haver qualidades
específicas no modo como a propagação de conceitos, normas e procedimentos processuais tem ocorrido no
presente, em particular no que se refere ao alastramento global, a partir da década de 1990, de mecanismos
de persecução penal característicos do direito anglo-saxão notadamente o instituto da plea bargaining, ou
colaboração premiada. Tomando como referência o caso brasileiro, a etnografia segue inicialmente o percurso
legislativo que deu origem à Lei 12.850/2013, que dispôs sobre a celebração de acordos de colaboração
premiada em inquéritos e processos criminais, atentando às referências, justificativas e expectativas então
presentes no debate parlamentar em relação aos seus efeitos. Em seguida, aborda julgamentos do Supremo
Tribunal Federal que colocaram em debate, inicialmente, a natureza jurídica da colaboração premiada e, em
seguida, impasses decorrentes da proliferação desse instituto, que teria se transformado, nas palavras de um
dos ministros da corte, em um instrumento de verdadeira tortura psicológica, um pau de arara do século XXI,
para obter provas contra inocentes. A justaposição desses dois momentos da trajetória da delação premiada
no sistema de justiça brasileiro leva a considerar como a propagação e recombinação de formas jurídicas
desencadeia rearticulações conceituais e práticas nos sistemas específicos em que esses institutos passam a
agir, com efeitos até certo ponto imprevisíveis e incontroláveis. Ao mesmo tempo, coloca em questão os
próprios limites, desde sempre problemáticos, das fronteiras nacionais do (e no) direito.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Eduardo Parreira da Silva (Capes)
Resumo: O objetivo da proposta do presente trabalho é realizar uma análise antropológica da comunicação jurídica
sobre o interrogatório do Presidente Lula na 13ª Vara Federal de Curitiba, em 14.nov.2018, na ação penal do
sítio de Atibaia (autos nº 502136532.2017.4.04.700) na Operação Lava Jato. Esse processo de ampla
repercussão midiática evidencia alguns aspectos relevantes sobre o funcionamento e lógica do sistema
judiciário brasileiro, muito deles já trabalhados pela Antropologia Jurídica e pelo Direito no Brasil, tais
como a inquisitorialidade, o insulto moral e verbal, os princípios cismáticos, a busca pela verdade real, a
valorização do conteúdo moral em detrimento dos elementos técnicos na formulação dos julgamentos etc. Meu
intento consiste em propor uma leitura complementar e alternativa a respeito dos aspectos antropológicos e
sociológicos que o referido interrogatório suscita: a imposição aos jurisdicionados de um cenário
enunciativo de violência processual que denomino temporariamente de gaslighting jurídico. Ele corresponde a
um elemento etnocêntrico de interferência na atuação em fala, ocorrido num momento de disputa que visa
enquadrar os enunciados e as pessoas dentro de uma relação interativa assimétrica e patêmica, cuja aplicação
dos atos de predominância exacerbam o uso das prerrogativas dos agentes de direito e descambam para o
exercício do gaslighting jurídico. Isso tem enorme repercussões no cerceamento de direitos e condução
viciosa das narrativas e atuações. Trata-se de um elemento que tem fortes consequências na gestão da
liberdade de expressão e de manifestação dos indivíduos e de colonização discursiva. Trata-se de uma
pesquisa de natureza coletiva e interdisciplinar que temos desenvolvido no âmbito do PPGA/UFF, NUFEP/UFF e
InEAC/UFF.
Palavras-Chave: Etnografia da Comunicação. Análise da Conversa. Antropologia Jurídica.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Isabella Markendorf Marins (funda)
Resumo:
O presente trabalho busca abordar, mediante análise bibliográfica, jurisprudencial e entrevistas
semiestruturadas, como o processo penal brasileiro não possui tão somente um juiz, mas diversos, uma vez que
são tomadas decisões ao longo de todo o curso processual por policiais na cena do crime, por peritos,
delegados, o Ministério Público, para, finalmente, chegar às mãos do juiz. Esse, pega o caso já embebido de
tomadas de decisões diversas, as quais, se feitas de outra forma, poderiam mudar totalmente o curso do caso.
Nesse sentido, será destacada a figura do policial militar ou civil - como também o perito, que no estado
fluminense configura agente da polícia. Busca-se demonstrar que, ao efetuar um flagrante, um boletim de
ocorrência ou uma cena de local de crime, o membro da instituição toma decisões que dificilmente serão
alteradas quando iniciado o inquérito policial.
Ao, por exemplo, decidir se uma pessoa possui quantidade de drogas que pode classificá-la como usuária ou
traficante, o policial efetua um juízo de valor que pode liberar o próprio indivíduo no momento do
flagrante, ou levá-lo até a delegacia, seja para assinar o termo, seja para ser autuado como varejista.
Essas decisões tomadas por esses agentes muito dificilmente, como é observado pela metodologia, são
alteradas pelo Delegado que, ainda por cima, também é capaz de determinar o crime que deseja imputar,
funcionando, mais uma vez, como um juiz que toma decisões pré judiciárias.
O presente resumo anseia, em seu artigo final, apontar para como é necessário repensar a instituição
policial como um todo, em que esses devem funcionar como agentes que não tomam decisões totalizantes, mas
conduzem os atos considerados criminosos de modo a que o juiz tenha todas as versões possíveis ao tomar suas
decisões.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Mariana Celano de Souza Amaral (USP)
Resumo: Inseridos no complexo de espaços regulados pelo sistema de justiça criminal, os hospitais de custódia e
tratamento psiquiátrico abrigam aqueles lidos como loucos-infratores. Tais instituições antes denominadas
de manicômios judiciários se configuram como híbridos: ao mesmo tempo em que se diferenciam dos hospitais
psiquiátricos e das prisões, combinam de maneira particular características de ambos (CARRARA, 1998).
Investigações desenvolvidas recentemente sobre essas instituições no Estado de São Paulo (MALLART, 2019;
BARROS, 2018) apontam que, nos últimos anos, houve um aumento no número de pessoas usuárias de drogas
acusadas ou sentenciadas pelo cometimento de crimes cumprindo uma medida de segurança de internação. Nessa
modalidade de responsabilização, essas pessoas são encaminhadas aos hospitais de custódia sem previsão
máxima de tempo de permanência dentro da instituição. Partindo de tais constatações, a comunicação
apresentará os resultados parciais de pesquisa de mestrado que investigou como os magistrados(as) do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem decidido pela medida de segurança de internação nos casos de
pessoas usuárias de drogas. A leitura, releitura e posterior sistematização de 100 sentenças proferidas
entre 2010-2011 e 2020-2021 buscou ressaltar, à luz da problemática da pesquisa, aquilo que chama a atenção
nesses documentos, identificando o que se repete, bem como aquilo que é pouco mencionado, num exercício de
aproximação etnográfica com o material (VIANNA, 2005). Foi possível identificar quais os diferentes
argumentos mobilizados por juízes e juízas nesses casos para justificar a internação, o que ajuda a revelar
como determinadas construções jurídicas se articulam com construções morais e vinculadas ao campo médico. As
operações que se desdobram nas sentenças parecem, por um lado, produzir ou reproduzir um lugar social
específico para as pessoas usuárias de drogas o do sujeito perigoso, incontrolável e incurável, ao mesmo
tempo em que reposicionam o lugar dos manicômios na sociedade como espaços necessários para tratar casos
graves. Jogar luz em tais engrenagens ajuda a ampliar a compreensão sobre as formas contemporâneas de gestão
e de controle das pessoas pretas e pardas, e como o judiciário tem despontado como ponto focal de
articulação desse processo que envolve desde a polícia, até as instituições de confinamento como manicômios,
prisões, hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Patrícia Marcondes Amaral da Cunha (Prefeitura Municipal de Florianopolis)
Resumo: Em 2009, importantes mudanças em relação aos crimes sexuais ocorreram na legislação brasileira, como a
redefinição do crime de estupro e a criação de um tipo penal denominado estupro de vulnerável. Ambos
passaram a configurar um tipo penal misto, incluindo a conjunção carnal e outros atos libidinosos. Contudo,
em casos de estupro de vulnerável, que tem como sujeito passivo crianças e adolescentes abaixo de 14 anos e
outras pessoas em situações de vulnerabilidade como a deficiência, a adoção do princípio da presunção
absoluta de violência fez com que a presença de violência ou grave ameaça se tornasse irrelevante para
caracterizar tal tipo penal. Nesse sentido, a condenação pelo crime de estupro, com previsão de penas
elevadas (8 a 15 anos de reclusão), pode se dar sem a presença de vestígios físicos, pautando-se a
materialidade do crime apenas nas provas testemunhais. Instigada pela pergunta do Procurador de Justiça no
título deste trabalho, parto da etnografia de dois processos judiciais de estupro de vulnerável em contexto
intrafamiliar que tramitaram num Juizado de Violência Doméstica e Familiar da Grande Florianópolis entre
2014 e 2015 para analisar três aspectos: 1. As estratégias probatórias acionadas pelos operadores do Sistema
de Justiça (na fase inquisitorial e judicial, na primeira instância / em grau de recurso) diante de
acontecimentos, falas e o que é registrado (ou não) nos autos; 2. As controvérsias em torno dos critérios
para estipular as fronteiras entre atos libidinosos e outros atos de cunho sexual incluídos nas
contravenções penais (ex. importunação ofensiva ao pudor e a perturbação de sossego) e das operações
discursivas de desclassificação do estupro de vulnerável para a modalidade tentada, sob o argumento de que
não houve conjunção carnal, mas apenas atos libidinosos; 3. Os efeitos dessas estratégias e dessas
controvérsias nos desfechos dos processos. A relevância dessa discussão se deve ao fato de que, a depender
de estarmos diante de crimes ou contravenções penais, estão em jogo não somente as penalidades, mas também
prazos prescricionais variáveis. Assim, entender essa embricada relação que envolve a construção da prova na
interação entre os protagonistas crianças e adolescentes e os operadores de justiça; a tipificação
designada; e as temporalidades se tornam cruciais para a descrever a capacidade do Sistema Criminal de
Justiça detectar, processar e, eventualmente, punir esses tipos de delito, sobretudo levando em conta o
tempo médio de três anos e meio entre o registro do boletim de ocorrência e o julgamento do caso.
Demonstra-se, portanto, que as mudanças na lei são somente um dos vieses de transformação quanto ao
tratamento dado a esses crimes pelo sistema.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Pedro Henrique Barbosa Borda (FFLCH)
Resumo: O objetivo deste trabalho é recuperar os argumentos apresentados no julgamento do Maníaco do Parque para
investigar as conexões parciais entre as diferentes entidades envolvidas na condenação de Francisco e o tipo
de aliança que se estabeleceu ali. Esse trabalho é resultado de uma tentativa de interpretação das
transformações do serial killer ao longo desse percurso técnico-científico-jurídico pelo qual ele circula,
tomando o julgamento do Maníaco como um caso paradigmático nesse sentido. Se a tradução de um objeto
científico comporta sempre uma mudança de termos, a tarefa das entidades envolvidas nessa diplomacia entre
diferentes modos de existência, é encontrar uma linguagem interessante (CALLON, 2020) para o direito e para
a ciência, qualificada a operar uma negociação (LATOUR, 2017, 2019) capaz de determinar formas provisórias e
heterogêneas de lidar com o problema duplamente jurídico e científico do assassino em série.
No Júri, a questão seria em torno do grau de normalidade de Francisco. Uma vez que a defesa tinha diante de
si um réu confesso, não seria possível defendê-lo por meio de uma negação dos crimes. Para o promotor,
Edilson Bonfim, o desafio era explorar as falhas e controvérsias envolvendo os laudos, o que exigia uma nova
arquitetura, capaz de dar conta de um problema tão excepcional e sombrio. Ele deveria estar apto a
questionar as avaliações de peritos que sugeriam uma outra punição, baseada no argumento da
inimputabilidade. Tais debates evidenciam um balanço de forças diferente daquele que observamos nos
julgamentos de Febrônio Índio do Brasil e Benedito, por exemplo. Enquanto a legislação da época tornou
possível a internação de Febrônio no primeiro Manicômio Judiciário brasileiro, sob as recomendações dos
médicos da época, o caso do Maníaco do Parque seria atravessado por uma série de discussões entre as teorias
do Primeiro Mundo e a legislação atrasada, nas palavras da promotoria. Assim, argumento que o julgamento e
a condenação de Francisco têm efeitos importantes na operacionalização do assassino em série por meio do
estabelecimento de uma nova trajetória possível para esses crimes no sistema penal brasileiro e também nas
pesquisas científicas brasileiras sobre o tema.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Raphael Frederico Acioli Moreira da Silva (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL)
Resumo: A apresentação consiste no relato da experiência do autor como chefe da equipe de peritos em
Antropologia no Ministério Público Federal (MPF), de 2018 até o presente. Partindo da trajetória do espaço
profissional da Antropologia na instituição, a apresentação visa debater as alterações administrativas
ocorridas internamente, do desligamento funcional da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão para a inserção na
Secretaria de Perícia, Pesquisa e Análise. Pretende-se analisar o quanto essas alterações significam tanto
para as condições de atuação profissional em Antropologia dentro da instituição, como para os seus reflexos
no contexto do MPF no sistema de justiça brasileiro.
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Sara R. Munhoz (UNICAMP)
Resumo: Ao lado dos clamores por aceleração das práticas judiciais, a ânsia por segurança jurídica, manifestada
na previsibilidade, coerência e estabilidade das decisões dos tribunais, apresenta-se como índice elementar
à efetivação de uma justiça democrática. Este trabalho discutirá como a democratização da justiça tem sido
imaginada e experimentada contemporaneamente, quando ferramentas digitais variadas, em especial as que
envolvem inteligência artificial (IA) passam a fazer parte das rotinas técnico-administrativas dos
tribunais, comparando, classificando e agrupando documentos de maneira automatizada sob o pretexto de
encontrar, neles, semelhanças e padrões que a atenção humana não seria capaz, por si só, de identificar em
tempo e com custos viáveis. A apresentação privilegiará a descrição etnográfica das promessas imaginadas e
os usos efetivos dessas ferramentas em uma das cortes mais importantes do país, o Superior Tribunal de
Justiça (STJ), responsável por uniformizar a interpretação da legislação nacional infraconstitucional,
divulgando uma jurisprudência suficientemente pacificada, previsível e eficaz. Ademais, serão discutidos
alguns dos recentes esforços de inovação e de regulação promovidos pelo poder legislativo e por órgãos como
o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que afetam muito diretamente as rotinas e procedimentos adotados pelo
STJ particularmente os referentes às potencialidades e aos riscos dos usos de IA nos modos de se ver e de se
fazer jurisprudência. Ao optar por uma atenção aos setores técnico-administrativos do Tribunal e às
iniciativas que transformam e regulam suas práticas cotidianas a partir de uma abordagem inspirada nos
Estudos da Ciência e da Tecnologia, a etnografia dilata o escopo das discussões a respeito da construção da
igualdade jurídica e de tratamento, incluindo na análise discretos procedimentos maquínicos e humanos
conduzidos longe das salas de julgamento, mas que impactam enormemente nas possibilidades de construção da
estabilidade semântica almejada pelo sistema de justiça nacional.
© 2024 Anais da 34ª Reunião Brasileira de Antropologia - 34RBA
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