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Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 065: Igualdade jurídica e de tratamento: etnografias de narrativas, produção de provas, processos decisórios e construção de verdades
“Toques em partes íntimas da vítima são ou não suficientes para consumar o delito de estupro de vulnerável?”: Produção probatória, controvérsias sobre tipificação e seus efeitos em processos judiciais
Em 2009, importantes mudanças em relação aos crimes sexuais ocorreram na legislação brasileira, como a redefinição do crime de estupro e a criação de um tipo penal denominado estupro de vulnerável. Ambos passaram a configurar um tipo penal misto, incluindo a conjunção carnal e outros atos libidinosos. Contudo, em casos de estupro de vulnerável, que tem como sujeito passivo crianças e adolescentes abaixo de 14 anos e outras pessoas em situações de vulnerabilidade como a deficiência, a adoção do princípio da presunção absoluta de violência fez com que a presença de violência ou grave ameaça se tornasse irrelevante para caracterizar tal tipo penal. Nesse sentido, a condenação pelo crime de estupro, com previsão de penas elevadas (8 a 15 anos de reclusão), pode se dar sem a presença de vestígios físicos, pautando-se a materialidade do crime apenas nas provas testemunhais. Instigada pela pergunta do Procurador de Justiça no título deste trabalho, parto da etnografia de dois processos judiciais de estupro de vulnerável em contexto intrafamiliar que tramitaram num Juizado de Violência Doméstica e Familiar da Grande Florianópolis entre 2014 e 2015 para analisar três aspectos: 1. As estratégias probatórias acionadas pelos operadores do Sistema de Justiça (na fase inquisitorial e judicial, na primeira instância / em grau de recurso) diante de acontecimentos, falas e o que é registrado (ou não) nos autos; 2. As controvérsias em torno dos critérios para estipular as fronteiras entre atos libidinosos e outros atos de cunho sexual incluídos nas contravenções penais (ex. importunação ofensiva ao pudor e a perturbação de sossego) e das operações discursivas de desclassificação do estupro de vulnerável para a modalidade tentada, sob o argumento de que não houve conjunção carnal, mas apenas atos libidinosos; 3. Os efeitos dessas estratégias e dessas controvérsias nos desfechos dos processos. A relevância dessa discussão se deve ao fato de que, a depender de estarmos diante de crimes ou contravenções penais, estão em jogo não somente as penalidades, mas também prazos prescricionais variáveis. Assim, entender essa embricada relação que envolve a construção da prova na interação entre os protagonistas crianças e adolescentes e os operadores de justiça; a tipificação designada; e as temporalidades se tornam cruciais para a descrever a capacidade do Sistema Criminal de Justiça detectar, processar e, eventualmente, punir esses tipos de delito, sobretudo levando em conta o tempo médio de três anos e meio entre o registro do boletim de ocorrência e o julgamento do caso. Demonstra-se, portanto, que as mudanças na lei são somente um dos vieses de transformação quanto ao tratamento dado a esses crimes pelo sistema.