ISBN: 978-65-87289-36-6 | Redes sociais da ABA:
Grupos de Trabalho (GT)
GT 018: Antropologia dos venenos
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Coordenação
Luzimar Paulo Pereira (UFJF), Felipe Ferreira Vander Velden (UFSCAR)

Resumo:
Substância que perturba ou interrompe o funcionamento do corpo, o veneno é tema recorrente em diversas etnografias. Sua identificação, a observação de seus efeitos, as artes do seu preparo e uso, e o conhecimento necessário para evitar ou desfazer seus danos compõem o universo técnico e conceitual de inúmeros grupos sociais. A substância aparece na caça e na pesca, na agropecuária e na guerra, em disputas ou desavenças, na medicina e em atividades mágico-religiosas. A capacidade de subverter a ordem da vida confere ao veneno eficácia simbólica, conectando-o à outras noções extraídas de uma ciência do concreto, como gostos, odores, cores e texturas. Temida e cobiçada, a substância também causa fascínio ou repulsa. A ambiguidade exige que o veneno seja manipulado exclusivamente por especialistas: xamãs, feiticeiros, rezadores, químicos, médicos, espiões. A substância tem origem ou é propriedade de certos animais, vegetais ou minerais, mas pode igualmente ser transformada pelos homens. Como sugere Lévi-Strauss, ao ser objeto de atenção e arte, institui conexões, limites e tensões nas relações entre os humanos e o ambiente. O GT “Antropologia dos venenos” pretende fomentar um diálogo que atravesse as subáreas do conhecimento antropológico, para tratar de temas articulados ao mundo dos venenos: vida e morte, mito e rito, saúde e doença, economia e alimentação, controle estatal e poluição ambiental, práticas científicas, além das relações entre seres humanos e outros-que-humanos.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Pensando com a disrupção endócrina do meio ambiente: um diálogo entre os estudos feministas e sociais da ciência com os estudos queer e trans
Emília Braz (UFRGS)
Resumo: Partindo de um breve comentário sobre as distinções e descontinuidades entre os status de gênero cis/trans (homem cis, mulher cis, homem trans, mulher trans), onde Donna Haraway (2023, p. 260) afirma se tratar de uma “lista enganosa, empobrecida e restrita”, a presente apresentação oral se propõe a complexificar as continuidades e descontinuidades entre diferentes status de gênero a partir do que a disrupção endócrina do meio ambiente pode contribuir para tal diálogo. Nesta apresentação, objetiva-se discutir as influências e os efeitos do que algumas autoras têm chamado de “um mar de estrogênio (Roberts, 2007), isto é, o aumento na circulação e contaminação do meio ambiente e dos corpos, humanos e outros-que-humanos, pelo estrogênio e os xenoestrogênios. Entre os agentes que se interessam e discutem tal tópico, é interessante perceber como a opinião de especialistas das mais diversas áreas, especialmente relacionados às questões ecológicas, e a opinião pública e não especializada tendem a concordar quanto aos perigos e riscos eminentes de tal contaminação, entre os quais a perda de masculinidade dos homens e a própria continuação da vida humana como espécie figuram como preocupações centrais. A perspectiva teórico-conceitual aqui assumida, proveniente dos debates feministas sobre a ciência e as discussões queer e trans sobre fronteiras de sexo e gênero, busca questionar a defesa de e a busca por, ou melhor, o retorno a um lugar menos tóxico onde tais fronteiras se apresentem como “realmente são”, estáticas e distintas. Nesse sentido, nos perguntamos quais possíveis caminhos e quais questões pragmáticas a disrupção endócrina do meio ambiente pode trazer aos debates sobre a cisgeneridade e a transgeneridade. Tal trabalho se configura como uma investigação inicial a ser desenvolvida durante a escrita do trabalho de doutorado.
Trabalho completo

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Flechas envenenadas, corpos venenosos: uma toxicologia Karitiana
Felipe Ferreira Vander Velden (UFSCAR)
Resumo: Entre os Karitiana, povo indígena de língua Tupi-Arikém que habita sete aldeias no norte do estado de Rondônia, diz-se que as flechas com pontas lanceoladas feitas de taquara, apropriadas para a caça de grandes mamíferos, têm veneno. Um mito conta, inclusive, a origem deste veneno, fundada na íntima conexão entre as serpentes e as armas de caça: flechas são, de certo modo, cobras. Ademais, os Karitiana conhecem alguns outros venenos de origem vegetal aplicados às pontas de setas. Não obstante, uma série de práticas dietéticas e técnicas corporais destinam-se a agir sobre os corpos dos caçadores, tornando-os, eles mesmos, envenenados. Parece haver, assim, uma comunicação intensa entre as potências predatórias dos homens e suas armas de caça: o que afeta uns afeta também as outras. A atenção a estas práticas relacionadas à alimentação, ademais, aponta para uma categorização do veneno como um gradiente que vai do eficaz ao mortífero, pois é preciso balancear o consumo de certas substâncias para que se obtenha um corpo (e flechas) envenenado e, portanto, eficiente na caça, sem correr-se os riscos de envenenar-se pelo excesso. Este artigo, assim, busca iluminar uma toxicologia da caça Karitiana - sua definição de veneno de caça, dos modos como eles são obtidos e de que maneiras são empregados no abate de suas presas. A noção de que a eficácia dos venenos depende não só do ato de envenenar armas, mas também de fazê-los nos corpos de seus usuários, ademais, convida-nos a repensar os próprios relatos indígenas acerca dos venenos de flecha.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Conexões cosmopolíticas entre humanos, feitiços e seres outros-que-humanos
Jeferson Bastos de Souza (USP)
Resumo: "Este ensaio parte de uma reflexão inicial de minha pesquisa no doutorado que tem como objetivo refletir sobre algumas implicações e pressupostos cosmopolíticos no que se refere ao tema da feitiçaria no contexto indígena. Por meio do Bahserikowi – Centro de Medicina indígena, de Manaus/Amazonas, onde se realiza a prática do bahsese ( benzimento) de cura e cuidados do corpo, venho refletindo, tendo como base e aporte analítico/bibliográfico o trabalho de João Paulo Barreto (2018, 2021) sobre os aspectos relacionados aos Waimahsã. Barreto (2018) observa que os waimahsã além de possuírem condições e qualidades humanas, também dispõem de ponto de vista humano. Diante disso, nos resta pensar o que é “ser humano mediante a um contexto de vida altamente sofisticado e dinâmico. A feitiçaria enquanto teoria indígena sobre o humano (Vanzolini, 2015), engendra e levanta questões cruciais para pensar justamente nessas “humanidades outras que reatulizam o que entendemos como política e formas de existir. Logo então, me pergunto se seriam os waimahsã o meio pelo qual se torna possível refletir sobre o dohasepihagʉ - feiticeiro, especialista praticante de dohase (feitiçaria), bem como, a própria feitiçaria, tendo em vista justamente a indeterminação do estatuto ontólogico e político desses seres outros-que-humanos. Diante disso, tenho me debruçado na problemática de como que essa dinâmica cosmopolítica dos waimahsã, tal como elaborada por Barreto (2018; 2021), em conexão com o fenômeno da feitiçaria, ajuda a pensar o nosso mundo e nosso entendimento sobre o que é ser humano?
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Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Entre venenos e remédios: sentidos xucuru-kariri acerca da cachaça
João Roberto Bort Júnior (Instituto de Pesquisa e Formação Indígena - Iepé)
Resumo: Alguns povos indígenas no Nordeste do Brasil consomem a cachaça durante processos rito-festivos. Entre os Xucuru-Kariri, contudo, em especial entre os que habitam o Alto Rio Pardo, no sul do estado de Minas Gerais, a cachaça é totalmente proibida antes e durante as cerimônias fumadas e as festas ouricuri dentro da mata - o que não impede os indígenas de reconhecer o potencial de cura da bebida na área de habitação cotidiana, nos lugares mais exteriores à mata. Ou seja, em determinados contextos relacionais e territoriais da vida xucuru-kariri em Caldas, o poder corrosivo da cachaça aproxima-a dos agrotóxicos que adoecem o corpo mediante os alimentos adquiridos na cidade, mas, por outro lado, também a mantém relativamente próxima dos enteógenos que são igualmente classificados como remédio. A ideia do trabalho é explorar alguns sentidos em torno da bebida alcóolica, demonstrando que, em comparação ao seu consumo por outros povos indígenas no Nordeste brasileiro, ela se opõe apenas muito contextualmente às substâncias com poder de cura para os Xucuru-Kariri no Alto Rio Pardo. O problema, enfim, é o limiar entre as categorias de veneno e remédio em específicos processos de alcoolização.
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Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Luzimar Paulo Pereira (UFJF)
Resumo: Em Urucuia e entorno, “ofensa de cobra designa um ato cujo resultado é a inoculação de veneno no sangue de uma vítima por meio da “mordida ou “picada de uma serpente peçonhenta. A expressão evoca uma forma de violação, o resultado violento de um encontro entre corpos induzido pela cobra (o “bote”). Na região, os envenenamentos são entendidos como processos de composição espúria. Ao ser introduzida na corrente sanguínea e se espalhar através do sangue, a toxina da cobra destrói as relações que compõem o corpo: ela o desmembra, o degrada. A ofensa não afeta apenas o indivíduo vítima da picada. A degradação e o desmembramento fisiológico dos corpos correspondem à degradação e ao desmembramento dos agrupamentos domésticos, quando famílias constituídas em torno das casas (as unidades efetivas e afetivas de produção e consumo) podem se desarticular com a perda de seus membros devido à morte ou ao aleijamento. Na minha apresentação, pretendo discutir a qualidade dos venenos inoculados pelas serpentes, analisar seus efeitos no corpo humano e interpretar as atividades de cura mobilizadas pelos habitantes da região.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
Alimentos espirituais, venenos e corpos femininos: notas de farmacologia rionegrina
Pedro Lolli (UFSCAR), Geraldo Andrello (UFSCAR)
Resumo: Esta artigo proposta de apresentação explora as origens, as propriedades e o uso ritual de um conjunto de substâncias psicoativas entre os povos indígenas do alto Rio Negro. Partindo da gênese mítica do tabaco, coca (pó fabricado a partir de folhas de coca torradas), paricá e caapi (ayahuasca), buscamos inicialmente indicar a relação dessas substâncias com aspectos ou partes dos corpos femininos e seus poderes reprodutivos, sugerindo que podem ser tomados como verdadeiros pharmakon, isto é, podem funcionar tanto para proporcionar aumento de força vital como maleficiar e matar. Nesse sentido, seus efeitos são relacionados à prática de encantações mágicas sopradas empregadas para provocar e curar doenças, o que nos permite colocar em evidência noções de força de vida, fala e sopro como meios pelos quais corpos afetam-se entre si.

Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
A contingência na floresta e a produção dos venenos vegetais suruwaha
Priscila Ambrósio Moreira (Unicamp), Miguel Aparicio Suárez (UFOPA)
Resumo: Os venenos são conhecidos em biologia como produtos do metabolismo secundário dos organismos. Até os anos 80 eram considerados "lixo fisiológico", pois não seriam essenciais à sobrevivência. Tais substâncias compõem a via fundamental da comunicação e sociabilidade entre as espécies. Sua produção e liberação são contingentes, em correspondência aos encontros na história de vida do organismo. O efeito não consiste de apenas uma substância, mas uma mistura que age em sinergia. As misturas não são fixas, mas variam em concentração e composição, e nos vegetais também diferem entre órgãos da planta e seus estágios desenvolvimento. Os venenos vegetais circulam na floresta, pois uma vez estocado no corpo dos insetos fitófagos, podem compôr a dieta de vertebrados, provocando alterações nos corpos ao longo da cadeia alimentar, como a plasticidade de cores nas pererecas. Ironicamente, são justamente estas substâncias, responsáveis por uma permanente negociação na floresta, que são alvo tanto da biopirataria, quanto de seu oposto, a salvaguarda do patrimônio genético. Ambos operam na lógica do isolamento de plantas e moléculas, apoiados em uma transcendência no papel do gene como informante-chave. Neste caso, as espécies e suas substâncias são entidades acabadas, e portanto, passíveis de cópia. Neste ponto compartilhamos a inquietação de Marilyn Strathern (2016): "como o mundo chegou a fazer com que tal defesa de uma apreciação das relações se tornasse necessária?" Esta questão tem nos atravessado ao longo da elaboração do livro "Alquimia na floresta, os Suruwaha e os venenos", resultado de um projeto de salvaguarda do patrimônio imaterial promovido pelo Museu do Índio (Funai) em articulação com a Unesco. Transitando entre etnografia e botânica, percorremos a pé um total de quase 100 km de trilhas florestais em itinerários vegetais guiados pelos Suruwaha, povo que habita o interflúvio Purus-Juruá, no sudoeste da Amazônia brasileira. Assim como a arte alquímica dos vegetais, o "naturalismo" suruwaha se faz em contato com a matéria viva, com intensa experimentação de diferentes teores de toxicidade, ensaios de novas misturas e mudanças nas preferências por certos vegetais que vivem em ambientes plenos de memórias coletivas e espíritos-cantores. Este enredo de transformação e alquimia, presente nas narrativas transmitidas ao longo de gerações, possibilitou a própria resistência coletiva, diante do panorama de alteridades perigosas que se faz presente na floresta. Tal concepção indígena, que tece redes de relações com sujeitos vivos na floresta, desafia a noção de salvaguardar ou restaurar paisagens bioculturais, pois aponta em direção às relações e aos encontros, e não aos objetos ou espécies em si mesmos.