Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 018: Antropologia dos venenos
A contingência na floresta e a produção dos venenos vegetais suruwaha
Os venenos são conhecidos em biologia como produtos do metabolismo secundário dos organismos. Até os anos 80 eram considerados "lixo fisiológico", pois não seriam essenciais à sobrevivência. Tais substâncias compõem a via fundamental da comunicação e sociabilidade entre as espécies. Sua produção e liberação são contingentes, em correspondência aos encontros na história de vida do organismo. O efeito não consiste de apenas uma substância, mas uma mistura que age em sinergia. As misturas não são fixas, mas variam em concentração e composição, e nos vegetais também diferem entre órgãos da planta e seus estágios desenvolvimento. Os venenos vegetais circulam na floresta, pois uma vez estocado no corpo dos insetos fitófagos, podem compôr a dieta de vertebrados, provocando alterações nos corpos ao longo da cadeia alimentar, como a plasticidade de cores nas pererecas. Ironicamente, são justamente estas substâncias, responsáveis por uma permanente negociação na floresta, que são alvo tanto da biopirataria, quanto de seu oposto, a salvaguarda do patrimônio genético. Ambos operam na lógica do isolamento de plantas e moléculas, apoiados em uma transcendência no papel do gene como informante-chave. Neste caso, as espécies e suas substâncias são entidades acabadas, e portanto, passíveis de cópia. Neste ponto compartilhamos a inquietação de Marilyn Strathern (2016): "como o mundo chegou a fazer com que tal defesa de uma apreciação das relações se tornasse necessária?" Esta questão tem nos atravessado ao longo da elaboração do livro "Alquimia na floresta, os Suruwaha e os venenos", resultado de um projeto de salvaguarda do patrimônio imaterial promovido pelo Museu do Índio (Funai) em articulação com a Unesco. Transitando entre etnografia e botânica, percorremos a pé um total de quase 100 km de trilhas florestais em itinerários vegetais guiados pelos Suruwaha, povo que habita o interflúvio Purus-Juruá, no sudoeste da Amazônia brasileira. Assim como a arte alquímica dos vegetais, o "naturalismo" suruwaha se faz em contato com a matéria viva, com intensa experimentação de diferentes teores de toxicidade, ensaios de novas misturas e mudanças nas preferências por certos vegetais que vivem em ambientes plenos de memórias coletivas e espíritos-cantores. Este enredo de transformação e alquimia, presente nas narrativas transmitidas ao longo de gerações, possibilitou a própria resistência coletiva, diante do panorama de alteridades perigosas que se faz presente na floresta. Tal concepção indígena, que tece redes de relações com sujeitos vivos na floresta, desafia a noção de salvaguardar ou restaurar paisagens bioculturais, pois aponta em direção às relações e aos encontros, e não aos objetos ou espécies em si mesmos.