Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 018: Antropologia dos venenos
A contingência na floresta e a produção dos venenos vegetais suruwaha
Priscila Ambrósio Moreira (Unicamp), Miguel Aparicio Suárez (UFOPA)
Os venenos são conhecidos em biologia como produtos do metabolismo secundário dos organismos. Até os anos 80 eram considerados "lixo fisiológico", pois não seriam essenciais à sobrevivência. Tais substâncias compõem a via fundamental da comunicação e sociabilidade entre as espécies. Sua produção e liberação são contingentes, em correspondência aos encontros na história de vida do organismo. O efeito não consiste de apenas uma substância, mas uma mistura que age em sinergia. As misturas não são fixas, mas variam em concentração e composição, e nos vegetais também diferem entre órgãos da planta e seus estágios desenvolvimento. Os venenos vegetais circulam na floresta, pois uma vez estocado no corpo dos insetos fitófagos, podem compôr a dieta de vertebrados, provocando alterações nos corpos ao longo da cadeia alimentar, como a plasticidade de cores nas pererecas. Ironicamente, são justamente estas substâncias, responsáveis por uma permanente negociação na floresta, que são alvo tanto da biopirataria, quanto de seu oposto, a salvaguarda do patrimônio genético. Ambos operam na lógica do isolamento de plantas e moléculas, apoiados em uma transcendência no papel do gene como informante-chave. Neste caso, as espécies e suas substâncias são entidades acabadas, e portanto, passíveis de cópia. Neste ponto compartilhamos a inquietação de Marilyn Strathern (2016): "como o mundo chegou a fazer com que tal defesa de uma apreciação das relações se tornasse necessária?" Esta questão tem nos atravessado ao longo da elaboração do livro "Alquimia na floresta, os Suruwaha e os venenos", resultado de um projeto de salvaguarda do patrimônio imaterial promovido pelo Museu do Índio (Funai) em articulação com a Unesco. Transitando entre etnografia e botânica, percorremos a pé um total de quase 100 km de trilhas florestais em itinerários vegetais guiados pelos Suruwaha, povo que habita o interflúvio Purus-Juruá, no sudoeste da Amazônia brasileira. Assim como a arte alquímica dos vegetais, o "naturalismo" suruwaha se faz em contato com a matéria viva, com intensa experimentação de diferentes teores de toxicidade, ensaios de novas misturas e mudanças nas preferências por certos vegetais que vivem em ambientes plenos de memórias coletivas e espíritos-cantores. Este enredo de transformação e alquimia, presente nas narrativas transmitidas ao longo de gerações, possibilitou a própria resistência coletiva, diante do panorama de alteridades perigosas que se faz presente na floresta. Tal concepção indígena, que tece redes de relações com sujeitos vivos na floresta, desafia a noção de salvaguardar ou restaurar paisagens bioculturais, pois aponta em direção às relações e aos encontros, e não aos objetos ou espécies em si mesmos.