ISBN: 978-65-87289-36-6 | Redes sociais da ABA:
Mesas Redondas (MR)
MR 30: Etnografias dos negacionismos e das alt-sciences: Perspectivas a partir da antropologia da ciência
alt

Coordenação:
Rosana Maria Nascimento Castro Silva (UERJ)
Debatedor(a):
Flora Rodrigues Gonçalves (Fiocruz)
Participantes:
Rafael Antunes Almeida (UNILAB)
Jorge Garcia de Holanda (UFRGS)
Rosana Maria Nascimento Castro Silva (UERJ)

Resumo:
Na última década, proliferaram no Brasil movimentações coletivas que desafiam os referenciais, os procedimentos, as instituições, as políticas públicas e as tecnologias baseadas no conhecimento científico. Assistiu-se à negação de axiomas e consensos científicos, à formação de coletivos a partir de especulações, e à intensificação de teses conspiratórias e de rumores fragmentados. Somam-se a isso as contestações de procedimentos experimentais, de regulamentações institucionais e de organizações especializadas que retiram a sua legitimidade de testemunhos publicamente compartilhados. A partir do campo da antropologia da ciência, esta mesa redonda coloca em perspectiva etnográfica os negacionismos e as práticas de grupos terraplanistas, de defensores do tratamento precoce da Covid-19 e outros coletivos conspiratórios. Interessa-nos não somente as suas contraposições à ciência, mas sobretudo os seus modos de pensamento, ação e intervenção. Aspiramos descrever os projetos específicos aos quais estão articulados, as materialidades que mediam suas práticas e seus processos de transformação ao longo do tempo. A partir de diferentes contextos, os/as participantes desta mesa mobilizam distintas estratégias etnográficas para refletir sobre as especificidades de sujeitos engajados em alt-sciences, problematizando os modos com que suas práticas desafiam a pesquisa antropológica e ameaçam projetos de justiça social.

Trabalho para Mesa Redonda
Construindo evidências, formando terraplanistas: mídias, públicos e a defesa de uma ciência de verdade da Terra Plana
Jorge Garcia de Holanda (UFRGS)
Resumo: Em meados da década de 2010, uma onda de disseminação do modelo da Terra Plana tomou forma em plataformas digitais em diversos países, incluindo o Brasil. Seus defensores em sua imensa maioria, pessoas sem formação ou atuação na ciência oficial afirmavam que o contato recente com o nascente ecossistema digital dedicado ao assunto (formado principalmente por canais, páginas e grupos distribuídos por plataformas como YouTube, Facebook e WhatsApp) havia sido decisivo para disparar e consolidar um processo de despertar "para a verdade". Neste trabalho, tomo essa dinâmica de formação de um público terraplanista no Brasil como ponto de partida para a análise de vídeos de YouTube dedicados à apresentação de supostas evidências de um mundo plano, considerando o papel de agências estéticas e algorítmicas na construção de artefatos audiovisuais de intenção (e potencial) persuasivo. Interessa aqui compreender o lugar ocupado por aquilo que terraplanistas nomeiam como ciência de verdade (em oposição à ciência oficial, mas mantendo com ela uma relação mimética que produz modificações e distorções de suas retóricas e práticas) no universo mais amplo da formação estética (Meyer, 2019) a partir da qual emergiram subjetividades terraplanistas, apontando, mais especificamente, os intercâmbios desse modo de conceber ciência com uma dimensão religiosa e o seu embasamento numa lógica conspiratória.
Trabalho completo

Trabalho para Mesa Redonda
A carta psicografada de Ademar Gevaerd: algumas observações sobre como ufólogos navegam no ambiente da pós-verdade
Rafael Antunes Almeida (UNILAB)
Resumo: Entre uma parcela significativa dos ufólogos, Ademar Gevaerd era reputado como um dos mais importantes pesquisadores brasileiros do campo das últimas décadas. Nesses anos, ele editou a Revista UFO, organizou os maiores congressos de ufologia do país e esteve presente em muitos programas de televisão que versaram sobre o tema da vida extraterrestre. Em 2022, Gevaerd faleceu em decorrência de uma queda. No ano seguinte, circularam nos meios ufológicos duas versões de uma carta psicografada atribuída a ele. Nos documentos, o suposto espírito do ufólogo trazia informações sobre a vida além-túmulo, revelações sobre a relação entre anjos e aliens, além de conjecturas sobre as relações entre o presidente Lula e os extraterrestres do tipo reptiliano. Nesta comunicação analiso os efeitos dessa carta sobre uma parcela da comunidade ufológica. Ao acompanhar esse episódio e as reflexões geradas por ufólogos a partir da disseminação do texto, terei a oportunidade descrever como coletivos que regularmente acionam o idioma da suspeita e raciocínios conspiratórios dirigidos a um fora, como a governos, cientistas e instituições públicas, lidam com situações controversas na própria comunidade. Vale observar que muitos dos estudos voltados à antropologia da pós-verdade se debruçaram sobre comunidades que emergiram ou foram catalisadas no mundo pós-Trump. Os ufólogos, por seu turno, estão presentes na cena pública desde 1947, onde apresentam sistematicamente os seus interesses, métodos de investigação e formas de organização. O meu objetivo com esta comunicação é adicionar um pouco mais de compreensão à questão de saber como paracientistas com uma trajetória anterior à emergência das plataformas digitais, navegam no ambiente do que tem se chamado de pós-verdade. Trata-se aqui, portanto, de um esforço complementar àquele caracterizado pela descrição das formas de produção de evidências, processos de constituição de grupo e modos de circulação da informação entre paracientistas. Busca-se produzir uma etnografia de sua transformação.

Trabalho para Mesa Redonda
Negacionismo, temporalidade e morte: parábolas do futuro na pandemia de Covid-19
Rosana Maria Nascimento Castro Silva (UERJ)
Resumo: Nesta apresentação, realizo uma aproximação antropológica das formas de modulação e desestabilização de fatos e enunciados científicos que sustentaram as políticas públicas de saúde no contexto da pandemia de covid-19 no Brasil, durante o mandato de Jair Bolsonaro. Com especial atenção para as intervenções farmacológicas e não-farmacológicas geridas neste contexto, argumento que as medidas do governo federal entre 2020 e 2022 fizeram mais do que negar os fatos científicos e minimizar os discursos, instituições e intervenções de saúde pública. Assim, discuto a heterogeneidade das práticas e estratégias negacionistas, com ênfase nas temporalidades produzidas e articuladas nos discursos e políticas de autoridades e instituições federais relacionadas à covid-19. Argumento que esses agentes estabeleceram um mecanismo complexo de deslocamento intermitente dos fatos científicos e de modulação de fatos que chamarei de subjuntivos”, caracterizados por uma projeção futura de seus possíveis efeitos, e cujo desdobramento prospectivo engendrou uma zona política e ética para a gestão da mortalidade decorrentes da pandemia. A apresentação se ancora na discussão etnográfica de duas parábolas constantemente recitadas por Bolsonaro (a parábola do sapo e a parábola do Pacífico), destacando como tais narrativas, associadas a discursos públicos e ações de algumas autoridades nacionais, estabeleceram três correlações centrais: os riscos relacionados à pandemia com ameaças conspiracionistas à liberdade individual; a defesa da vida da população com a preservação das atividades económicas; e a ética do tratamento precoce” com um tempo futuro em que os medicamentos promovidos pelo governo poderiam ter seu benefício comprovado cientificamente, em retrospecto. Nesse contexto, discuto como os dados sobre as mortes por covid-19 não foram apenas negados como um indicador do fracasso das políticas de imunidade de rebanho” e do tratamento precoce”. Ao contrário, os dados epidemiológicos de mortalidade foram intencionalmente articulados como um fato que corroborava que a situação "teria sido pior", se não fossem as iniciativas do governo de desqualificar as medidas coletivas não-farmacológicas e promover os medicamentos do tratamento precoce.” Nesse sentido, discuto como essa modalidade subjuntiva de negação e modulação de fatos sobre mortalidade, a partir de uma temporalidade de futuro anterior (Povinelli 2011), remodelou eticamente o presente pandêmico e configurou uma zona de morte sob a qual agentes federais reputavam não ter qualquer responsabilidade.