Trabalho para Mesa Redonda
MR 30: Etnografias dos negacionismos e das alt-sciences: Perspectivas a partir da antropologia da ciência
Negacionismo, temporalidade e morte: parábolas do futuro na pandemia de Covid-19
Nesta apresentação, realizo uma aproximação antropológica das formas de modulação e desestabilização de
fatos e enunciados científicos que sustentaram as políticas públicas de saúde no contexto da pandemia de
covid-19 no Brasil, durante o mandato de Jair Bolsonaro. Com especial atenção para as intervenções
farmacológicas e não-farmacológicas geridas neste contexto, argumento que as medidas do governo federal
entre 2020 e 2022 fizeram mais do que negar os fatos científicos e minimizar os discursos, instituições e
intervenções de saúde pública. Assim, discuto a heterogeneidade das práticas e estratégias negacionistas,
com ênfase nas temporalidades produzidas e articuladas nos discursos e políticas de autoridades e
instituições federais relacionadas à covid-19. Argumento que esses agentes estabeleceram um mecanismo
complexo de deslocamento intermitente dos fatos científicos e de modulação de fatos que chamarei de
subjuntivos, caracterizados por uma projeção futura de seus possíveis efeitos, e cujo desdobramento
prospectivo engendrou uma zona política e ética para a gestão da mortalidade decorrentes da pandemia.
A apresentação se ancora na discussão etnográfica de duas parábolas constantemente recitadas por Bolsonaro
(a parábola do sapo e a parábola do Pacífico), destacando como tais narrativas, associadas a discursos
públicos e ações de algumas autoridades nacionais, estabeleceram três correlações centrais: os riscos
relacionados à pandemia com ameaças conspiracionistas à liberdade individual; a defesa da vida da população
com a preservação das atividades económicas; e a ética do tratamento precoce com um tempo futuro em que os
medicamentos promovidos pelo governo poderiam ter seu benefício comprovado cientificamente, em retrospecto.
Nesse contexto, discuto como os dados sobre as mortes por covid-19 não foram apenas negados como um
indicador do fracasso das políticas de imunidade de rebanho e do tratamento precoce. Ao contrário, os
dados epidemiológicos de mortalidade foram intencionalmente articulados como um fato que corroborava que a
situação "teria sido pior", se não fossem as iniciativas do governo de desqualificar as medidas coletivas
não-farmacológicas e promover os medicamentos do tratamento precoce. Nesse sentido, discuto como essa
modalidade subjuntiva de negação e modulação de fatos sobre mortalidade, a partir de uma temporalidade de
futuro anterior (Povinelli 2011), remodelou eticamente o presente pandêmico e configurou uma zona de morte
sob a qual agentes federais reputavam não ter qualquer responsabilidade.
© 2024 Anais da 34ª Reunião Brasileira de Antropologia - 34RBA
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