ISBN: 978-65-87289-36-6 | Redes sociais da ABA:
Mesas Redondas (MR)
MR 47: Mundos, estranhamentos mais-que-humanos e expansões no fazer etnográfico
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Coordenação:
Sonia Regina Lourenço (UFMT)
Participantes:
Paulo Rogers da Silva Ferreira (UFBA)
Ryanddre Sampaio de Souza (UFMT)
Sonia Regina Lourenço (UFMT)

Resumo:
Esta proposta versa sobre a agregação de agenciamentos e diálogos com não humanos, ou mais que humanos, redirecionando o fazer etnográfico contemporâneo. Com o advento da virada ontológica, no trabalho de campo os não humanos passam a ser vistos como actantes que criam mundos (multiversos) ou redes (expansões ao infinito), reorientando o fazer etnográfico e as bases teóricas da antropologia. Nesse sentido, propõe-se demonstrar como o pluralismo ontológico tem contribuído para uma nova perspectiva do método etnográfico. A primeira comunicação irá analisar as relações entre humanos, não humanos e outros mais que humanos em museus de etnologia e seus acervos com os povos originários e proporá pensar em uma antropologia engajada em pensamentos e práticas de mundos que preexistem aos humanos ou que os supera. A segunda centrará na pesquisa com médicos-cirurgiões e tilápias (peixes), ambos construindo ativamente a pele do canal vaginal de mulheres trans em salas cirúrgicas. Por fim, a terceira comunicação com pesquisa de campo no Japão, apontará outras possibilidades de se pensar um novo animismo que, relaciona-se à cosmologia Shinto; e que diz respeito à interação dialógica com seres mais-que-humanos, (kami) onde humanos, kami e natureza fazem parte de um único sistema que não os diferencia e que pode nos ajudar a compreender a pluralidade de outras formas de pensar a relação com a natureza e as contribuições aos debates ambientais e do Antropoceno na antropologia

Trabalho para Mesa Redonda
Tilápia do Nilo, mulheres trans, médicos-cirurgiões e a insistência do melhor possível: praticando antropologia especulativa da vaginoplastia
Paulo Rogers da Silva Ferreira (UFBA)
Resumo: Esta comunicação é um exercício em antropologia especulativa da medicina. Partindo da técnica cirúrgica da vaginoplastia com a pele de tilápia do Nilo, técnica pioneira de médicos-cirurgiões da Faculdade de Medicina da UFC, a intenção é exercitar um gesto especulativo sobre o emaranhado humano (médicos-cirurgiões) e mais que humano (tilápia do Nilo) na construção de um canal vulvo-vaginal como insistência do melhor possível para as mulheres trans que almejarem à cirurgia de redesignação sexual. Por insistência do melhor possível, o gesto especulativo de Debaise e Stengers (2016), isto é, de nada excluir, de nada desqualificar em uma situação dada, levando em conta a multiplicidade das dimensões que compõem a experiência hic et nunc, ou melhor, sem julgamento fora do experimentado da técnica cirúrgica com a pele de tilápia do Nilo, julgamento que domesticaria esta multiplicidade hic et nunc, em cirurgia, em termos de categorias ou de exigências que lhes seriam estrangeiras. No que concerne mais especificamente ao conceito de melhor, a inspiração vem de Bruno Latour (2019), quando esse autor desenvolve o conceito de melhor mundo possível associado à boa combinação. Ainda neste sentido, busca-se, com esta comunicação, compreender a boa combinação (vaginoplastia com pele de tilápia do Nilo) também recorrendo ao que propõem Annemarie Mol e John Law (2002), quando os autores recobram que a questão não é apontar se a técnica cirúrgica é boa ou ruim, como se houvessem padrões, mas se ela é melhor ou pior do que era, do que suas alternativas, do que um limite acordado, do que seria de esperar, em que avaliações envolvem comparações em cada procedimento cirúrgico. Esta comunicação, por fim, não se centra nas questões políticas identitárias de mulheres trans, mas na abertura de diálogo com o conceito de metamorfose em Emanuele Coccia (2020), isto é, de pensar a construção do canal vulvo-vaginal com pele de tilápia do Nilo não em termos de afirmação de uma identidade/gênero, mas como uma metamorfose entre humanos e mais que humanos, em que o colágeno da pele de tilápia do Nilo com as células do corpo humano se torna o prolongamento da vida da tilápia do Nilo levada para outro lugar. Trata-se, aqui, de descartar a oposição entre o vivo (a mulher trans) e o não vivo (a pele de tilápia do Nilo), pois a mulher trans não apenas está em continuidade com a pele de tilápia do Nilo, mas ela é seu prolongamento doravante, sua metamorfose, sua expressão mais extrema.
Trabalho completo

Trabalho para Mesa Redonda
Devires-kami e estranhamentos quiméricos: um olhar antropológico sobre a atualização dos animismos japoneses na contemporaneidade
Ryanddre Sampaio de Souza (UFMT)
Resumo: A presente exposição objetiva um olhar antropológico sobre os animismos japoneses na contemporaneidade, pensados sempre no plural, e a centralidade da noção de natureza e do meio ambiente na vida social, na religiosidade e na subjetividade japonesas. Busco demonstrar como tais animismos e suas narrativas relacionadas a natureza, estética e religião fazem com que espíritos, deidades, pessoas, plantas, pedras, robôs e animais coabitem o mundo, ignorando as fronteiras entre humanos e não-humanos. Compreende-se que, no Japão, o animismo (アニミズム, animizumu) tem suas raízes no Shintō (xintoísmo), uma forma tipicamente japonesa de relação e interação com o mundo, pensada aqui em um paradigma de ressignificação do conhecimento tradicional que pode contribuir para os debates ambientais na antropologia, compreendendo que a relação entre natureza (自然, shizen) e os aspectos religiosos do Shintō estabelecem um sentimento reverente para com esta natureza que regula o modo de vida e a moral do povo japonês. Buscarei apontar as formas através das quais as atualizações do complexo cosmológico Shintō e dos animismos japoneses estabelecem uma relação mais dialógica e democrática com os seres que habitam as florestas do Japão, destacando os vínculos locais e comunitários em um país que avança cada vez mais em políticas desenvolvimentistas e predatórias cujas implicações são a marca das crises que vivemos no Antropoceno. Assim, para esta comunicação, usarei como foco de análise o Festival de Outono de Takayama (Takayama Matsuri), uma festividade tradicional de caráter regional, simbólico e cerimonial. Os matsuri são momentos importantes para reverenciar as deidades (神, kami) a ela relacionadas e tornam visíveis as complexas tramas entre o que, no ocidente, diferenciamos como o binarismo natureza-cultura. Tais festividades serão vistas, então, como atualizações dos animismos no Japão através de ritos de coesão social, sendo um dos muitos exemplos de como o imaginário rural, fabricado através da crescente dicotomia entre rural e urbano a partir do final do período Edo (século XIX), permanece vivo e fundamental para o pensamento japonês contemporâneo.

Trabalho para Mesa Redonda
Para uma antropologia especulativa dos museus: entre a cronotopia e a impermanência.
Sonia Regina Lourenço (UFMT)
Resumo: Esta comunicação pretende pensar as relações entre humanos, não humanos e outros mais que humanos nos museus de etnologia e seus acervos com os povos originários, tomando como situação etnográfica, a experiência do Museu Rondon de Etnologia e Arqueologia da UFMT nos últimos dois anos. Para fins analíticos, nos interessa o gesto especulativo como prática antropológica que nos faz perguntar sobre a natureza ontológica das coisas e sobre as relações ontológicas que atravessam as alteridades presentes nos espaços museais e em seus acervos (Debaise e Stengers, 2016). A virada ontológica é um gesto possível para ir além dos diacríticos culturalistas e da cosmologia modernista presentes nos estudos sobre museus e coleções. Os museus são espaços de relacionalidade entre pessoas, objetos e mundos, como envoltórios corporais de fluxos que conectam as coisas em exibição, criam armadilhas à percepção, produzem narrativas e capturas na relação entre humanos e não humanos (Gell, 2018). Estamos diante de territórios de agenciamentos e afetos que deslocam as coisas de sua ontologia primeira, de sua funcionalidade e sentidos situados em outros territórios. Desde o século XIX, os museus de etnologia provocaram desterritorializações e reterritorializações de coisas e objetos de seus mundos originários, sobrecodificando-os como objetos pelos processos de colonização, musealização e patrimonialização. Estas práticas fizeram dos acervos, locais de abrigo e exílio de artes, técnicas, saberes de povos ameríndios e rastros da colonialidade. Na etnografia, descrevemos a relação entre o acervo do museu e os territórios indígenas, a diferença entre o mármore e a murta, as duas zonas ontológicas distintas (Latour, 1994; Viveiros de Castro, 2002). Essa distinção nos leva a descrever dois modos de existência: a modernista caracterizada pela fixidez, a permanência, a cronotopia, a dureza da matéria e os grandes divisores do ocidente não indígena; e a transformação, a fluidez, o germinativo, a inconstância, como atributos dos povos da floresta. Com essa preocupação que o gesto especulativo ao estabelecer alianças com os pensamentos minoritários e seus modos de existência cosmopolíticos, passa a reorientar o fazer etnográfico ao perturbar os grandes divisores modernistas. Nessa direção, a teoria da bolsa ficção de Le Guin (1986) fornece uma imagem do conhecimento desvencilhado das grandes narrativas, voltado para a ficção científica e às práticas fabulatórias que nos engajam a descrever as relações das pessoas com seus mundos.