ISBN: 978-65-87289-36-6 | Redes sociais da ABA:
Mesas Redondas (MR)
MR 40: Memórias ambíguas: processos e narrativas de desestabilização de políticas de reconhecimento e preservação
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Coordenação:
João Paulo Macedo e Castro (UNIRIO)
Debatedor(a):
Roberto Marques (URCA)
Participantes:
Roberta Sampaio Guimarães (UFRJ)
Cristiane Freitas Gutfreind (PUCRS)
João Paulo Macedo e Castro (UNIRIO)

Resumo:
Nesta mesa redonda reunimos trabalhos que analisam as ambiguidades dos processos e narrativas memorialistas operados durante a construção de políticas de reconhecimento social e preservação cultural de eventos históricos, em especial os relacionados a experiências coletivas tidas como sensíveis, violentas ou críticas. Observamos que, desde os anos 80, um rearranjo global trouxe à tona inquietações sobre as formas das sociedades lidarem com as memórias de eventos difíceis, como os relacionados ao Holocausto, às ditaduras latino-americanas, às comissões de verdade e reconciliação na África pós-apartheid, ao racismo e à xenofobia, entre outros. Nesse contexto, se difundiram práticas e discursos de preservação cultural que buscavam dar conta da comunicação e do reconhecimento público das diversas experiências dolorosas. Processos que, por seu caráter ao mesmo tempo material e linguístico, tentaram exercer força sobre a normatividade e o percurso das narrativas memorialistas. Para refletir sobre essas questões, a mesa terá como foco os atores, estratégias, discursos, controvérsias e mecanismos produtores de novos significados em torno do eixo passado-presente-futuro e os tensionamentos entre as lógicas dos direitos humanos, das dinâmicas locais e da mercantilização cultural. Coordenação: João Paulo Castro (FCS/UNIRIO) Expositores: João Paulo Castro (FCS/UNIRIO); Cristiane Freitas Gutfreind (PPGCOM/PUCRS); Roberta Guimarães (PPGSA/IFCS/UFRJ) Debatedor: Roberto Marques (PPGS/UECE)

Trabalho para Mesa Redonda
Relatos de memórias nos documentários biográficos sobre a ditadura militar
Cristiane Freitas Gutfreind (PUCRS)
Resumo: Essa proposta pretende analisar os documentários biográficos sobre a ditadura militar brasileira para compreender as ambiguidades dos processos narrativos e memorialistas na contemporaneidade. As situações traumáticas geram transformações importantes nas formas de representação nas artes em geral, e, particularmente no cinema, devido ao seu papel fundamental como testemunho, participando da construção do conhecimento, da visibilidade do subjetivo e das articulações na dimensão do político. Os documentários evocam personagens cuja existência é legitimada pela história; sua forma é híbrida por excelência e transita entre o filme político, o filme testemunho, o filme de família, o filme diário, o filme reportagem, o filme histórico e, também, o filme militante. Documentários como Retratos de Identificação (Anita Leandro, 2014) e Fico te devendo uma carta sobre o Brasil (Carol Benjamin, 2020) têm imagens agenciadas de distintas formas por meio da justaposição e da correlação de materiais heterogêneos, como imagens de arquivo, retratos, cartas e testemunhos propondo uma discussão entre imagens do passado e do presente com o intuito de revelar a violência social. Contemplam, ainda, um esforço memorialístico pelo uso de diferentes níveis de narração, o individual e o político, criando uma tensão permanente entre a imagem e a subjetividade, entre o percebido e o memorável, propondo assim, uma ressignificação do filme político. Os registros serão analisados a partir de três aspectos: os relatos narrativos que revelam as articulações políticas, as ambiguidades e a subjetividade do sujeito; a elaboração desses registros em termos imagéticos (montagem, enquadramento, escolhas estéticas); o entendimento do conflito sobre o político que infere no processo memorialista. A experiência narrativa fílmica biográfica torna-se, assim, o lugar, onde a consciência devastada pela violência, faz com que o filme político considere a subjetividade como parte fundamental da sua estrutura na atualidade. Nesse sentido, analisar os documentários a partir das estratégias estéticas diferenciadas, nos levam a uma reflexão sobre a dor física e social que deixou suas consequências na elaboração da memória diante da iminência do autoritarismo quando o golpe militar faz sessenta anos.

Trabalho para Mesa Redonda
As experiências ambivalentes na ditadura civil-militar de 1964
João Paulo Macedo e Castro (UNIRIO)
Resumo: As narrativas autobiográficas forjadas na experiência vivida na última ditadura civil-militar brasileira se inscrevem naquilo que o crítico literário Andreas Huyssen identificou como uma marca do século XX: o passado presente”, ou o reconhecimento da interconexão entre tempo e espaço como unidades capazes de fornecer entendimento sobre os eventos públicos e, principalmente, sobre a especificidade de cada evento. O passado é revisitado sob os olhos do presente, reverberando os eventos com novos símbolos e significantes. Com Beatriz Sarlo, poderíamos falar do surgimento de uma nova modalidade de olhar para o passado, que se fortalece em função de necessidades presentes, intelectuais, afetivas, morais ou políticas” (Sarlo, 2005, p.14). Neste cenário, as memórias, lembranças e lugares de memória se multiplicam através de diferentes meios de expressão. Em determinada perspectiva, poderíamos ver em tal processo uma fuga do fluxo incessante e constante de informações e uma nostalgia de certo passado onde as lembranças funcionariam como suporte afetivo e moral ao presente, oferecendo algum conforto àqueles que sobreviveram. No entanto, esse conforto se esvai quando se apresenta uma modalidade muito específica da memória, o testemunho. Ele é impositivo, tenaz, obstinado, perseverante. Através do(s) seu(s) relato(s), temos acesso aos traços culturais, aos resíduos ou, nos termos de Walter Benjamim, às reminiscências [culturais] que relampejam no presente. Aceitando o testemunho como um portal de acesso ao passado, a própria percepção/explicação dos eventos passados se confrontam nas múltiplas vozes, nas múltiplas narrativas. Talvez resida aí a tenacidade do testemunho e a ambiguidade no seu acolhimento. Nesta apresentação, pretendo discutir o lugar do testemunho nas políticas de reconhecimento social e preservação cultural de eventos históricos. Parto da observação de que essa modalidade narrativa se caracteriza por ser um relato excepcional, singular e de difícil enquadramento e arquivamento. Reside na fronteira entre o real e a imaginação. Nos termos do antropólogo Vincent Crapanzano (2005), poderíamos falar que esses relatos residem no aquém ou no além”, em um espaço liminar, que foge das convenções e normas instituídas e definidas como organizadoras do campo das narrativas. São relatos que articulam desejos, medos, sensações, projeções e possibilidades, que para serem compreendidos precisam de um acolhimento, de uma escuta. Como chamou a atenção Paul Ricoeur (2010), a experiência a ser transmitida é de uma inumanidade sem comparação com a experiência do homem ordinário” (p. 186). Ao mesmo tempo, são narrativas que perturbam, que desestabilizam, pois impossibilitam um enquadramento simples e impõe desafios aos projetos memorialísticos.

Trabalho para Mesa Redonda
A gestão empresarial das memórias sensíveis: poderes, sentidos e práticas em torno do Cais do Valongo no Rio de Janeiro
Roberta Sampaio Guimarães (UFRJ)
Resumo: A comunicação toma como base o artigo A gestão empresarial das memórias sensíveis. Poderes, sentidos e práticas em torno do Cais do Valongo no Rio de Janeiro”, publicado em 2023 na revista Tempo Social e escrito em parceria com João Paulo Castro. O mote inicial do trabalho foi compreender por que o sítio arqueológico Cais do Valongo havia se tornado uma política de memória bem-sucedida” (segundo avaliação corrente de muitos pesquisadores do patrimônio, ativistas e intelectuais dedicados à valorização da cultura negra). O processo de reconhecimento do Cais do Valongo foi articulado evocando imagens de tragédia e vergonha: por ele aportaram quase um milhão de africanos escravizados ao longo do século XIX. Após a abolição da escravidão, e no afã de exibir um país moderno no início do século XX, a então prefeitura da capital soterrou o local e ali construiu uma praça. Aterradas por mais de um século, as ruínas do cais foram desveladas em 2011, durante a implementação da operação urbana Porto Maravilha e, diferente de vários processos de patrimonialização que levam anos para alcançarem um consenso interno e se projetarem internacionalmente, o local foi prontamente registrado como sítio arqueológico pelo IPHAN e listado Patrimônio Mundial da Unesco em 2017. Mas, como buscamos demonstrar, o processo foi veloz apenas na aparência. Sedimentando a ocasião da descoberta simbólica das ruínas do cais, havia mais de 50 anos de articulações para terriorializar a memória negra na cidade. Nesta mesa redonda, apresento então os feixes de poder que possibilitaram a inscrição do sítio arqueológico Cais do Valongo como patrimônio mundial, colocando em destaque três cenários: a incorporação de ativistas dos movimentos negros à administração pública no final dos anos 1970; a legitimação internacional das agendas afro-brasileiras pelo projeto A Rota do Escravo da Unesco; e o incremento à indústria turística durante o Porto Maravilha no início do século XXI. O argumento é que a territorialização das memórias da escravidão foi impulsionada por uma gestão empresarial das identidades culturais, em que métodos e procedimentos técnicos se impuseram como modelo de ação política. Desse modo, o discurso da identidade afro-brasileira se integrou às novas dinâmicas de acumulação do capital e de mercantilização cultural, com os sentidos e práticas em torno do cais agregando as lógicas do dever de memória e da regulação concorrencial.