ISBN: 978-65-87289-36-6 | Redes sociais da ABA:
Trabalho para Mesa Redonda
MR 40: Memórias ambíguas: processos e narrativas de desestabilização de políticas de reconhecimento e preservação
As experiências ambivalentes na ditadura civil-militar de 1964
As narrativas autobiográficas forjadas na experiência vivida na última ditadura civil-militar brasileira se inscrevem naquilo que o crítico literário Andreas Huyssen identificou como uma marca do século XX: o passado presente”, ou o reconhecimento da interconexão entre tempo e espaço como unidades capazes de fornecer entendimento sobre os eventos públicos e, principalmente, sobre a especificidade de cada evento. O passado é revisitado sob os olhos do presente, reverberando os eventos com novos símbolos e significantes. Com Beatriz Sarlo, poderíamos falar do surgimento de uma nova modalidade de olhar para o passado, que se fortalece em função de necessidades presentes, intelectuais, afetivas, morais ou políticas” (Sarlo, 2005, p.14). Neste cenário, as memórias, lembranças e lugares de memória se multiplicam através de diferentes meios de expressão. Em determinada perspectiva, poderíamos ver em tal processo uma fuga do fluxo incessante e constante de informações e uma nostalgia de certo passado onde as lembranças funcionariam como suporte afetivo e moral ao presente, oferecendo algum conforto àqueles que sobreviveram. No entanto, esse conforto se esvai quando se apresenta uma modalidade muito específica da memória, o testemunho. Ele é impositivo, tenaz, obstinado, perseverante. Através do(s) seu(s) relato(s), temos acesso aos traços culturais, aos resíduos ou, nos termos de Walter Benjamim, às reminiscências [culturais] que relampejam no presente. Aceitando o testemunho como um portal de acesso ao passado, a própria percepção/explicação dos eventos passados se confrontam nas múltiplas vozes, nas múltiplas narrativas. Talvez resida aí a tenacidade do testemunho e a ambiguidade no seu acolhimento. Nesta apresentação, pretendo discutir o lugar do testemunho nas políticas de reconhecimento social e preservação cultural de eventos históricos. Parto da observação de que essa modalidade narrativa se caracteriza por ser um relato excepcional, singular e de difícil enquadramento e arquivamento. Reside na fronteira entre o real e a imaginação. Nos termos do antropólogo Vincent Crapanzano (2005), poderíamos falar que esses relatos residem no aquém ou no além”, em um espaço liminar, que foge das convenções e normas instituídas e definidas como organizadoras do campo das narrativas. São relatos que articulam desejos, medos, sensações, projeções e possibilidades, que para serem compreendidos precisam de um acolhimento, de uma escuta. Como chamou a atenção Paul Ricoeur (2010), a experiência a ser transmitida é de uma inumanidade sem comparação com a experiência do homem ordinário” (p. 186). Ao mesmo tempo, são narrativas que perturbam, que desestabilizam, pois impossibilitam um enquadramento simples e impõe desafios aos projetos memorialísticos.