Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 033: Cartas, cartografias, confabulações e outras correspondências antropoéticas
Os livros no registro do chão
Durante o ano de 2019, na cidade do Rio de Janeiro, frequentei um percurso caminhado (Central do Brasil até Copacabana), para escrever minha tese de doutorado sobre sebos (livrarias de livros usados, raros, esgotados). A variedade de sebos me levou aos sobrados antigos, às feiras de antiguidades, aos leilões, ao sebo de internet, ao camelô de calçada e ao shopping chão (feira horizontal na altura dos pés, espalhada e acomodada aos lances do destino, nas fissuras do ordenamento público, nos dilemas migratórios de quem vive, mora e trabalha pelas ruas). Acompanhei catadores e expositores de coisas descartadas nas ruas e nas portas de prédios. Também conheci outras pessoas que recebiam doação destas coisas e, por isso, não se moviam tanto nas buscas. Existe o shopping chão de aleatoriedades, de tudo que faz sentido estar lado a lado por arranjos e esquemas muito particulares, situacionais, íntimos, e que reservam à edição muitas maneiras de ver, sentir e organizar o mundo; mas existe também o shopping chão de livros, empenhado um pouco, talvez, mais nas entranhas do vai-e-vem da universalidade e da particularidade por separar e reunir dentro de um mesmo grupo. Os livros no chão são vivos, nômades, migrantes, articulados, sobreviventes que se entrosam na arbitrariedade de ser livro e de estar no chão, longe das estantes. As classificações obras de consulta, literatura estrangeira, crítica de arte e as fronteiras produzidas pelas estantes obedecem às convenções da divisão dos saberes moderna, contudo, no shopping chão, elas estão suspensas no remelexo da exposição. O que está em jogo é deixar de percebê-los através das ordens de cátedra, dos modos de referência duros, dos determinismos presos à localização, ordenação uniforme; e ainda compreender que a descrição possível do seu embaralhamento não deve ser refletida pelas condições tais que o fizeram chegar ao chão: descartes oportunos, visões de utilidade, perdas, falta de espaço, morte de alguém que lia e colecionava-os etc.; os livros expostos no chão existem no amontoamento e na dispersão do monta e desmonta cotidiano como técnica, fazer e habitar nos lençóis e lonas esticados. A instrução seletiva de quem os expõe, que é inusitada e depende de cada um, faz suspender o juízo na ênfase dos seus lugares, onde as estantes ordenadoras se refazem e se dissolvem no turbilhão das calçadas, da reunião entre títulos, gêneros, brochuras, volumes, materiais e ambiente. Cartografias urbanas livrescas promovem uma convivência com a assimetria, refazendo e reformulando as imagens da cidade e da leitura, da precariedade, ou ruínas cheias de desejos e forças; cartografias de não precisão, mobilidade dos escapes, fugas, rolos, virações e garimpagens da segunda mão compõem narrativas etnográficas.