Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 043: Desenvolvimento e conflitos socioambientais: práticas de apropriação territorial e alternativas transformadoras
Fantasmas e feitiços do desenvolvimento: licenciamento ambiental como ritual de iniciação e sacrifício
Desde os anos 1990, empreendimentos de grande e médio porte no Brasil pressupõem a instituição de um estado de passagem. É preciso "passar" pelo licenciamento ambiental para serem concedidas as três licenças mágicas (prévia, instalação e operação) que irão garantir sua transformação em fato consumado. Note-se que, quando digo licença mágica, não se trata de um recurso retórico. Isto porque o respeito a elas implica na crença partilhada a uma entidade abstrata chamada "lei" (e sua burocracia, obviamente) cujos dispositivos podem funcionar para encantar uma coletividade ao tornar sem efeito as contradições presentes no próprio processo de licenciamento. Afinal, obter tais licenças é ter em mãos um eficaz salvo conduto para fazer coisas que, no cotidiano da vida ordinária, não seria permitido. Por exemplo, destruir a vida e/ou expulsar pessoas da terra onde vivem. Seguindo a literatura antropológica sobre rituais, tomo aqui o licenciamento como evento especial relativamente formalizado que se destaca da rotina cotidiana. Sendo um momento de intensificação do que é usual e tendo um sentido esperado (embora não pré-definido), o licenciamento passa a ser vivido como um drama social com papéis, protagonistas e cenas que se sucedem. É nesse sentido que sua exigência surge como um modo de organização e funcionamento da sociedade que se realiza por meio do ordenamento de ações referidas a fins sociais específicos. Como pretendo mostrar, entre estes fins está à imputação de duas condições: sacrifício e iniciação. No primeiro caso, o processo só se realiza após a consumação de uma complexa cadeia de eventos cujo desenrolar já traz seus personagens: o sacrificante, proponente do empreendimento (empresa ou consórcio de empresas); o sacrificador, encarregado de executar os ritos jurídico-administrativos (Ibama, Funai, Incra); o sacerdote, a quem se deve recorrer (juízes, procuradores e demais atores do poder judiciário); os próprios sacrificados; e os objetos do sacrifício (rios, florestas, terras, vidas) que, junto com as pessoas, são "oferecidos" em nome de algo maior: no caso, mais "desenvolvimento" e as promessas (de emprego, renda, melhoria de vida, crescimento econômico, sustentabilidade etc.) que dele viriam a se realizar. Já no segundo caso, a passagem pelo licenciamento produz e incute, nos sacrificados, uma condição de liminaridade não só entre antes e depois da obra, mas entre a vida fora do empreendimento e dentro dele. Prisão perversa que faz com que, apesar das pessoas não desejarem ser "atingidas" no sentido corporificado do termo, as leva a buscar ser reconhecidas como "atingidas" juridicamente. Ou seja, o licenciamento, sendo um ritual de sacrifício, é também de iniciação.