Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 062: Fronteiras e fabulações: antropologias especulativas e experimentos etnográficos
Ficção como condição da realidade: montar olhando, ouvindo e lendo o narrado e o praticado.
O campo que pretendo trazer como universo de pensamento foi se constituindo durante minha pesquisa de
doutorado, a qual se desenrolou por dois anos e alguns meses, entre 2020-2022, em duas delegacias de
homicídio e proteção à pessoa, atuantes em Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul. Entrei
nestas delegacias com a intenção de estudar os inquéritos policiais que davam conta das mortes
caracterizadas e estabilizadas como sendo mortes suicidas. Tive acesso a esses inquéritos, que li como se
fossem séries, organizadas por anos e pela própria forma de produção das pessoas policiais, através de
perguntas inspiradas pela antropologia feminista da ciência, mas também tive acesso ao processo cotidiano de
produzir inquéritos, por si mesmos a realização de uma montagem que conta com a colocação em discurso de uma
série de gentes, cenas, objetos, substâncias, coisas, protocolos, cotidianos, dúvidas e, também, não ditos.
As pessoas mobilizando coisas que excedem ou não ao que aparece nos papéis, comum a toda forma de pesquisa,
uma vez que dificilmente tudo que acontece no processo de aproximação a um problema cabe na narrativa, me
fez prestar atenção não só ao quê e ao modo de produzir narrativa das policiais, mas ao modo da antropologia
produzir suas expressões de verdade. Ecoando e pensando a discussão sobre ficção e ciência não pela oposição
de termos, mas pela observação da sua existência co-produtiva, a acompanho não só como parte do projeto para
uma outra epistemologia e até mesmo para outra imaginação ontológica ainda não dada no modelo dominante da
ciência ocidental (debate das feministas da ciência), também a pude apreendê-la nas práticas de uma
instituição de Estado fortemente marcada pelas categorias de prova, evidência, real, fato, verdade. A ficção
como a possibilidade de falar da realidade, como a possibilidade de seguir não só com os problemas, nos
termos de Donna Haraway, mas de seguir com as próprias instituições. Proponho um exercício de escrita que
traga ao texto o processo de montagem e edição do inquérito não só como um objeto passível de reprodução
infinita, mas como campo de desvios através dos quais podemos notar os limites da reprodução e os desafios
de dizer o que se passa. Produzirei uma espécie de espelhamento contorcido tanto dos termos da organização
dos elementos que dão inteligibilidade ao caso policial quanto dos termos que dão legitimidade à descrição
antropológica, trazendo ao texto aquilo que a realidade sugere de diferentes maneiras, muitas das quais não
cabem no documento. Afinal, por exemplo, o que os fantasmas dos mortos suicidas fazem durante a realização
do inquérito e fora dele? Para algumas pessoas, muito mais do que se pode imaginar num dia regular de
trabalho.