Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 077: Novas perspectivas antropológicas a partir de África: caminhos para reconfigurações autônomas no contexto sul-sul
Acusações, conflitos e relacionalidades: a feitiçaria como linguagem do cotidiano na Guiné-Bissau
Esta comunicação pretende apresentar um debate sobre a feitiçaria enquanto linguagem (GESCHIERE, 2006;
WEST, 2009) nas relacionalidades (SPIES, 2019; NYAMNJOH, 2015) do cotidiano guineense. Pretendo fazer esta
reflexão a partir de dois relatos feitos a mim por um interlocutor muito próximo durante o tempo em que
estive em trabalho de campo na cidade de Bissau, capital da Guiné-Bissau.
Durante minha estadia em Bissau pude perceber como a feitiçaria era um tema que, invariavelmente, perpassava
a maior parte das conversas com meus interlocutores. Cabe ressaltar que o termo feitiçaria, apesar de seu
uso consagrado nos textos antropológicos, não é o mais apropriado para definir os fenômenos que ocorrem no
continente africano e que são designados de outras maneiras pelos interlocutores, como afirma Geschiere
(2006). A intenção deste trabalho não será definir o que o guineense entende por feitiçaria, mas demonstrar
através das narrativas como esse fenômeno é mobilizado como uma linguagem a fim de tornar os acontecimentos
inteligíveis.
No primeiro relato meu interlocutor, chamado Besna, narra o caso do desaparecimento de um cordão de ouro da
casa do tio de seu amigo. Diante da impossibilidade de se descobrir quem era o ladrão do objeto, o homem
apelou para um iran, entidade invisível que atua na resolução de conflitos, na proteção das pessoas e
aldeias, e que é cultuado por diversos povos na Guiné-Bissau. Entretanto, o caso tem uma reviravolta quando
se descobre posteriormente que o acusado pelo crime, indicado pelo iran, não era o verdadeiro autor do
roubo.
No segundo relato, Besna relaciona a morte de seu pai como consequência de atos de feitiçaria levados a cabo
por alguns de seus tios. Sua tia, irmã mais nova de seu pai e personagem central na trama, era uma mulher
que não conseguia engravidar e por isso era constantemente agredida e expulsa de casa durante os três
casamentos que viveu. A infertilidade a obrigou, segundo Besna, a fazer um acordo com um iran para que
trocasse a vida de um membro familiar por uma gravidez biológica.
Ao final dos relatos procuro refletir sobre a feitiçaria enquanto uma linguagem que perpassa o cotidiano
guineense pelo fato de ser dominada por todas as classes sociais e todos os grupos étnicos. A trama social
guineense é tecida pelos rumores (TRAJANO FILHO, 1993; 2000) e pelas ações da feitiçaria, e as
relacionalidades são afetadas por seus efeitos. Laços familiares podem ser rompidos a partir de acusações de
feitiçaria, relações afetivas são profundamente afetadas e, em alguns casos, pode-se chegar à agressão
física e até mesmo à morte. A feitiçaria seria, portanto, um dos componentes de intermediação nas
relacionalidades e também uma ferramenta para se compreender acontecimentos do passado, presente e futuro.