Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 036: Cidades: espaço construído e formas de habitar
"Salvar uma vida ou a saúde pública?" Uma análise socioantropológica sobre reprodução e família na Atrofia Muscular Espinhal (AME)
A Atrofia Muscular Espinhal (AME) é uma doença rara hereditária autossômica recessiva, caracterizada pela não sintetização da proteína SMN1, crucial à manutenção das células motoras. No século XXI, é a condição genética com maior probabilidade de morte infantil, sobretudo na forma grave (tipo I), com sinais/sintomas manifestados antes dos seis meses e expectativa de vida de dois anos. Sem tratamento específico até 2016, a AME é destacada na mídia devido às gramáticas de direitos em torno do Zolgensma, terapia gênica da empresa Novartis. Aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária em agosto de 2020 e capaz de modificar o DNA pela fabricação de um gene funcional, o acesso ao medicamento "mais caro do mundo" está afinado às reflexões sobre valor da vida humana, biopolítica dos nascimentos e constituição da família moderno contemporânea. A abordagem etnográfica do dossiê "O remédio de seis milhões e a pergunta: salvar uma vida ou a saúde pública?", produzido pelo portal UOL em julho de 2022, denuncia o valor econômico e emocional da criança no modelo de "família conjugal" monogâmica e formada por pai, mãe e filhos. Aplicada às doenças raras e deficiências, a reprodução estratificada endossa éticas seletivas, ao condicionar dinâmicas de família a assimetrias de cuidado referidas a ideários 'sustentáveis' de atenção à saúde. A lógica de eficiência autoriza a capitalização da vida em si, a disciplinarização e mercantilização do corpo feminino e seus produtos, por serviços e tecnologias dirigidos a nascimentos saudáveis. O viés antropológico feminista reforça os debates sobre governança reprodutiva e controle populacional, e ilumina regimes morais. As políticas públicas em torno da AME apontam a fragilidade e fluidez das definições de pessoa, parentesco e limites de vida, com base em discussões bioéticas de aborto, reprodução assistida e aconselhamento genético. A ênfase na linguagem numérica premissa da noção de raridade, de comprovação do investimento financeiro em medicamentos órfãos e da mortalidade não é acidental. Agrupados em esquemas de (des)investimento, as qualificações médico-Estatais hierarquizam as vidas, contraditam as teorias jurídicas de semelhança entre os seres e desvelam hiatos no caráter universal de cidadania. As economias discursivas de quantificação da AME instrumentalizam e obliteram trajetórias de família à margem das políticas reprodutivas, ao passo que justificam inequidades na distribuição de recursos.