Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 085: Pesquisas sobre infâncias a partir das cosmologias tradicionais
Entre a casa, a rua e o imaginário: apontamentos etnográficos sobre ocupação dos espaços por crianças
cabo-verdianas
O presente trabalho é um desdobramento de minha tese de doutorado em Antropologia Social (A esperança do
amanhã: cuidados, carinhos e castigos em uma etnografia com crianças cabo-verdianas) elaborada a partir de
uma pesquisa etnográfica realizada em Praia, capital de Cabo Verde, entre 2019 e 2020. O locus privilegiado
da pesquisa foi um bairro periférico da capital que cresce a partir de fluxos entre as diversas ilhas do
arquipélago, por um lado, e recebendo imigrantes da costa ocidental do continente africano, por outro. O
bairro constitui-se assim a partir de distâncias entre as pessoas e sua rede de relações originária, abrindo
espaço para e criando a necessidade de estabelecer uma nova rede onde a solidariedade é um valor a ser
cultivado.
O objetivo principal desta comunicação é explorar de quais formas as crianças contribuem para a elaboração
dessas redes ocupando os diversos espaços que compõem seu mundo social. Parto de dois espaços
materializados, a casa e a rua, e aciono um terceiro, o imaginário, para mostrar como o mundo da criança vai
paulatinamente se expandindo enquanto elas fazem relações e envelhecem no seio da comunidade mais ampla.
Como pano de fundo desta análise considero uma característica bastante marcante da população do bairro
etnográfico (e da população cabo-verdiana de modo geral), a saber, a circulação.
A circulação de crianças, seja de modo mais definitivo através de práticas de fostering, seja de forma
cotidiana, como nos trajetos entre casa e escola, por exemplo, é fundamental na manutenção de redes sociais
de apoio e solidariedade, mas também opera no sentido de construção e expansão do mundo que elas elaboram
para si. Por meio do mandado (categoria local que pode ser grosseiramente traduzida como um favor que se
presta a alguém e que no meio infantil é fonte de prestígio), por exemplo, as crianças se inserem na lógica
adulta de gerência da vida cotidiana e ocupam a rua interligando lares. Em casa, elas compõem as práticas de
cuidado que fluem em múltiplos sentidos, isto é, passam a cuidar tanto quanto são cuidadas (espera-se que
façam isso), apropriando-se do espaço e contribuindo para sua construção. E, por fim, a dimensão imaginária
de suas andanças (que envolve lendas urbanas, mitos, figuras caricatas do cotidiano e um exercício de
visualização no qual as crianças conhecem terras distantes e desvendam mistérios) constrói uma geografia
subjetiva do bairro, onde forma e fronteira tornam-se bastante fluidos.