ISBN: 978-65-87289-36-6 | Redes sociais da ABA:
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 068: Liderança: estilos, modos, formas, problemas e exemplos entre camponeses, quilombolas e povos tradicionais
Terra perdida, território em disputa: a trajetória de luta de Dona Darcília
Há quase duas décadas, a empresa denominada Borba Gato, laranja da então MMX, de Eike Batista, comprou terras de posseiros na comunidade de Água Santa, zona rural de Conceição do Mato Dentro (MG). Alegando que o uso seria para a criação de gado e eucalipto, a empresa se apropriou da terra para, na verdade, explorar minério de ferro e construir o que viria a ser o maior mineroduto do mundo, o que só foi descoberto pelas comunidades apenas dois anos depois, quando as pesquisas de sondagem e o processo de licenciamento ambiental foram iniciados. Parte da área vendida contemplava terras no bolo ocupadas por lavradores há mais de quatro gerações, cuja memória das famílias remonta à escravidão. Esse sistema fundiário funciona por meio de regras costumeiras de uso, gestão e herança da terra; uma das característica é que nele é reconhecido os direitos dos herdeiros ausentes, os quais não foram considerados herdeiros legítimos pela mineradora. Os Pimenta, família ali nascida e criada, foi uma das primeiras a terem suas posses adquiridas, e não tiveram os direitos possessórios coletivos reconhecidos; além disso, experienciaram formas várias de violências praticadas pelo empreendedor, como ameaças, assédio, descumprimento de acordos, entre outras. Serra, bicho, mato, águas sagradas e caminhos santos foram destruídos para dar lugar à mina de ferro do empreendimento. Mobilidade sobre e entre as terras, laços de parentesco, sociabilidades e autonomia expressa pelo trabalho na terra foram rompidos. O núcleo familiar de Darcília Pimenta, uma das herdeiras ausentes, segue ainda sem receber o valor da indenização. A lavradora mora na comunidade de Passa Sete, situada a poucos quilômetros de Água Santa e a 1,5km da barragem de rejeitos. Como a lavradora foi uma das primeiras a ter sua terra perdida e os direitos violados, Darcília foi uma das primeiras a se apropriar dos ritos do licenciamento ambiental vide reuniões, audiências e a participar dos movimentos de resistência. Nesse ínterim, a lavradora se torna uma das principais referências e exemplo de ação política para outros atingidos, sofrendo, inclusive, diversas retaliações da empresa ao longo dos anos. Mulher, benzedeira, comadre de mais de 40 afilhados, Darcília é uma referência política e figura de importância social e moral para as várias comunidades vizinhas. Como afirma Gelley (1995), os exemplos não nascem prontos: há uma estreita ligação com as circunstâncias. Assim, este ensaio se esforça em acompanhar etnograficamente a trajetória de Darcília, compreender, afinal, como se deu a construção da lavradora enquanto pessoa exemplar, enquanto uma espécie de dispositivo de memória de luta e ancestralidade, através das práticas e processos e espaços de subjetivação (Almeida, 2022).