ISBN: 978-65-87289-36-6 | Redes sociais da ABA:
Trabalho para Mesa Redonda
MR 67: Saúde, Sofrimento e Políticas da Vida: desafios etnográficos
Estratégia Saúde da Família, pluralismo terapêutico, sofrimento e racismo em quilombos
O trabalho apresenta uma abordagem etnográfica da pluralidade terapêutica em comunidades quilombolas em Cachoeira, Bahia, que são atendidas pela Estratégia Saúde da Família-ESF. Considerando as dificuldades de acesso (distância e condição das estradas) às Unidades Básicas de Saúde da Família nas áreas rurais, as vulnerabilidades sociais que permeiam essas comunidades, e as experiências cotidianas de racismo, compreender a pluralidade terapêutica em quilombos atendidos pela ESF apresenta desafios adicionais que busquei mapear por meio dos agenciamentos terapêuticos, que humanos e não humanos, desfazendo a dualidade entre doenças e mal-estares; e de sistemas terapêuticos “separados” (religiosos, tradicionais ou alternativos) ou em fricção (intermedicalidade) com as práticas biomédicas. Os estudos de campo realizado nessas comunidades desde 2014 compreendeu dois períodos voltados à investigação dos cuidados em saúde, em que foi possível observar diferentes formas de relação entre a ESF e o pluralismo terapêutico local. No primeiro período (2016-2018) foi realizado o mapeamento de práticas terapêuticas quilombolas, em que se agenciam procedimentos variados para a “feitura” dos remédios, sua aplicação e descarte. A disseminação da cultura biomédica de prevenção e tratamento de doenças tem resultado na diminuição dessas práticas tradicionais, reconhecimento que convive com a avaliação positiva sobre a “chegada da saúde” (a ESF), em que se luta por mais postos de saúde, melhores estradas, mais médicos e ambulâncias. Nesse processo, os agenciamentos terapêuticos quilombolas vem se fazendo por adição, incorporando as práticas biomédicas quando convém, e mobilizando práticas tradicionais nas frestas da relação médico-paciente, com os agentes de saúde ou mesmo durante a permanência em hospitais. Dessa forma, ao invés da convivência entre diferentes “sistemas” de saúde, temos uma rede espraiada, com práticas tradicionais que atravessam os espaços intersticiais da organização dos serviços de saúde. No segundo período (2022-2023), que investigou a percepção dos quilombolas sobre a ESF, pude acompanhar os agenciamentos terapêuticos que produzem cortes na rede, condensando emoções e disjunção com a ESF por meio de experiencias de sofrimento e racismo. O sofrimento ordinário da vida cotidiana, “não dramático” (vide Veena Das), é explicitado nas difíceis condições da vida e de acesso à saúde (às consultas, aos especialistas, aos exames, ao hospital), em que se percebem à margem desses serviços. Mas o sofrimento também vem sendo agenciado como “evento crítico” da memória da escravidão, por meio da luta contra o racismo, tanto no sentido universalista do direito à saúde, quanto na reivindicação de especificidades da ESF para os quilombos.