ISBN: 978-65-87289-36-6 | Redes sociais da ABA:
Trabalho para SE - Simpósio Especial
SE 05: Antropologia visual, re-existências e mundo porvir
Navio do sertão: as memórias quilombolas em uma poética das águas
A história e paisagens do sertão paraibano têm sido uma importante fonte de inspiração e de elaboração estética nas artes. Uma paisagem árida e um povo sofrido, invariavelmente despontam à primeira vista. Mas é também no Alto Sertão, município de Coremas, que fica o maior reservatório de água do estado da Paraíba – o Complexo Estevam Marinho, que já foi o maior do Brasil, antes da construção da hidrelétrica de Itaipu Binacional. Nele, há um navio submerso. Na virada do século 19 para o 20, época de grandes secas na região, o poder central de um Brasil ainda sendo construído como nação dá início aos estudos para barrar os rios e construir essa obra monumental na paisagem sertaneja. De moradores nas fazendas, em condições de privação de liberdade, ou flagelados, fugindo das secas, a trabalhadores em condições precárias, o curso da população de toda a região foi alterado, atraídos pela possibilidade de empregos e a pequena cidade passou a ser um centro pulsante a partir da atuação intensa de um órgão federal hoje sucateado, o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS). Antes da obra, as fazendas de algodão e de gado povoavam a região, alicerçando uma economia escravista marcada pelo mando dos coronéis. É nesse contexto que ficava um quilombo centenário chamado Navio, repleto de plantios nas vazantes do rio Aguiar e abrigava mais de 200 famílias. Essas pessoas, antes trabalhadores das fazendas, se tornaram operários das obras, em condições precárias, com a promessa de realocação ao redor do açude, que se deu de modo incompleto e sem títulos de terras. Nos anos 2000, a esperança se renova com a possibilidade de reconhecimento das comunidades quilombolas que se formaram desses e outros deslocamentos, a partir dos direitos garantidos na Constituição de 1988 de regularização fundiária. Entre as 3591 comunidades quilombolas remanescentes legalmente reconhecidas e certificadas no Brasil, segundo o critério de auto-identificação, assegurado pela Convenção 169 da OIT, três se localizam em Coremas: Mãe d’água, Cruz da Tereza e Barreiras, conectadas pelas águas do açude. A despeito das contínuas violências que sofrem, esses territórios são também objeto de reflexão cultural e social sobre os mundos nos quais nos situamos e compõe o cenário da série documental Navio do Sertão. Apesar das mazelas, foi possível construir complexos conhecimentos sobre o ambiente sertanejo e sobre expressões culturais, contada através das águas por seus narradores, como Zé Pequeno, Francisca, Tereza, Chico Preto, Damiana e Desterro, que guardam as histórias com uma minúcia de detalhes. Mostrar essas narrativas que atravessam gerações também permite enfatizar imaginários sobre o Nordeste que vão além das secas e violência, mas sim percorrem uma poética das águas.