ISBN: 978-65-87289-36-6 | Redes sociais da ABA:
Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 008: Antropologia da Arte
Sapataria Contracolonial: onde a beleza dos ossos é dançada pela terra
O uso dos calçados, cultura material colonizadora, identificou homens livres e de alto status social, enquanto os pés descalços dos povos originários manifestaram a liberdade de uma relação com a terra em que há sustentação e cuidado mútuo. Meus pés cresceram com ossos fortes e abertos, nutridos no sertão, e encontraram outros parecidos em diferentes lugares e nas cidades, também próximos à terra. A divergência entre as formas de pés e calçados é um fenômeno civilizatório que transcende meus pés, e registrei-a durante a série de performances Gravação de Raízes. Os pares de imagens estão compilados no “Traçado preliminar de uma estética da base”, livro que prescinde das palavras no argumento imagético favorável à expansão da sapataria artesanal sob medida. Os registros evocam os tratados de antropologia física para questionar os padrões de fôrmas de calçados que se pretendem “anatômicos”, e a cientificidade de uma indústria que produz tecnologias nem sempre favoráveis à vida, distanciando do que salta aos olhos. Na confluência com os saberes ameríndios e afro-brasileiros, em que estar descalço é prática cotidiana de cuidado com a saúde, instaurou-se esse processo de (des)calçamento que é contracolonial em sua forma, feitio e circulação. A beleza dos ossos, seu conceito fundador, significa alinhar-se com a anatomia, o caminho de vida, o movimento e a vitalidade. A oficina, espaço de difusão da habilidade de produção, é gerida por de relações horizontais de cooperação, que fortalecem a autoridade somática dos participantes. A circulação dos calçados se dá em relação com crientes, híbrido de cliente e criador, ciente da autopoesis que é a confecção de seus calçados: construção de corpo, educação somática, abertura de caminhos. O tipo de mercado a que se adequam estes artefatos é regido por Exu, como descrito por Flor do Nascimento, em que as trocas hão de necessariamente trazer benefícios a todos os envolvidos. A metodologia passa pela sustentação do compromisso (po)ético de calçar-me exclusivamente com os calçados que produzo, aferindo o sucesso da produção antes de abri-la a outros e expandi-la ao atender a demanda de crientes e compartilhar as habilidades de confecção. Pelo poder de abraçar e sustentar toda a existência que se manifesta na singularidade do corpo que calçam, os calçados artesanais sob medida foram denominados sapatas. Celebram, através de uma ciência que dança, a força e alegria advinda do contato entre pés e terra, e revelam a comunhão ancestral que abre caminho para a expressividade. Feitio de corpo, artefato de uso cotidiano cuja força se ancora em seu vazio, as sapatas deixam-se preencher pela força e beleza dos ossos que se abrem para ser dançados pela terra.