Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 068: Liderança: estilos, modos, formas, problemas e exemplos entre camponeses, quilombolas e povos tradicionais
Ordens oníricas: prestígio e autoridade de uma liderança comunitária no sertão de Minas Gerais
Esta proposta de comunicação pretende explorar um caso específico acessado pelo etnógrafo em agosto de 2022 na comunidade quilombola Pé da Serra, pertencente ao município de Januária, norte de Minas Gerais. Em resumo, o caso pode ser exposto da seguinte forma: ao acordar, Joana relata a seu marido e filhos a ocorrência de um sonho que a atormentou durante toda a noite. Naquela mesma manhã, os familiares sugerem a Joana que procure Zé Preto, líder comunitário do quilombo e relate os detalhes do sonho. Imediatamente ela vai até a casa da liderança e diz ter sonhado com sua avó (mãe de Zé Preto, que falecera dois anos antes), que a confidenciou, de modo onírico, a existência de uma dívida deixada pela falecida em vida: uma dança a São Gonçalo, fruto de uma promessa cuja graça havia sido alcançada embora o sacrifício não tenha sido devidamente cumprido. Em razão disso, a avó relatou a Joana que sua alma encontrava-se em "estado de aflição", dependendo do pagamento da promessa em terra para sua libertação. Zé Preto ouviu atentamente o relato da sobrinha, no entanto, o fez com questionamentos: Aí eu fiquei desconfiado e falei esse negócio não tá certo não (Zé Preto, Pé da Serra, 25/08/2022). Ao adentrar às especificidades dos dramas que envolvem a família em questão, amparados por relatos, casos e genealogias, bem como pela forma pela qual se institui as relações comunitárias no quilombo Pé da Serra, o etnógrafo pôde explorar as razões que geraram a desconfiança de Zé Preto em relação ao sonho relatado pela sobrinha Joana, em especial, as relações de parentesco ali instituídas e a preponderância do papel de liderança que ele exerce na comunidade. O que chama a atenção, além do mais, é o ato de conferirem à liderança o papel garantidor de legitimidade de um relato individual de natureza onírica, a partir da autoridade e prestígio legados a Zé Preto, a tal ponto deste ser o portador do poder decisório sobre o pagamento ou não de uma dívida d'alma (Álvares, 2023) - ou promessa de defunto, nos termos de Queiroz (1958). A partir de estudos etnográficos realizados de modo intermitente entre 2020 e 2024, e considerando o caso específico supracitado, esta comunicação pretende adentrar aos meandros dos dilemas individuais e coletivos de uma comunidade quilombola rural tendo como centralidade a relação entre a liderança comunitária e os demais moradores. De modo ainda parcial, conclui-se que o caráter extensionista do poder decisório da liderança não se resume aos dilemas político-objetivos da comunidade mas se insere, adicionalmente, nas possibilidades resolutivas de questões que se colocam nas esferas subjetivas e oníricas, amparada pelas particularidades da organização social local em conformidade com as expressões da cultura popular que comungam.