Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 014: Antropologia das Relações Humano-Animais
No clássico trabalho de Florestan Fernandes (2008) sobre os ofícios exercidos pela população negra de São Paulo nos anos 1920, um dos seus informantes afirma que “os cocheiros eram geralmente brancos, mas os que cuidavam dos cavalos eram negros (p. 151). Neste trabalho, procuro compreender a relação entre pessoas e animais no contexto dos transportes no Brasil a partir de uma perspectiva racializada, evidenciando como esse vínculo se distingue daquele estabelecido entre as elites e os animais utilizados para transporte. Como se sabe, ao longo da história brasileira, bois, cavalos e mulas foram protagonistas na circulação de pessoas e de mercadorias em meio rural e urbano. Se a expansão dos sistemas de transportes foi comandada pelas elites e estruturada a serviço de suas pretensões coloniais — desbravar os sertões, ocupar terras, garantir a circulação de mercadorias —, a sua realização, de fato, ficava a cargo de trabalhadores humanos e não-humanos que não faziam parte das classes dominantes e que desenvolveram relações próprias uns com os outros. Tropeiros, em sentido estrito, eram os donos dos animais e das negociações efetuadas pelas tropas, mas o cuidado das mulas e dos outros animais que compunham os lotes era feito por camaradas, que organizavam as cargas, tratavam de suas enfermidades e faziam as viagens a pé, ao seu lado. Carros de bois, da mesma forma, embora pertencessem às elites rurais, eram conduzidos por carreiros — homens negros escravizados, livres ou libertos, muitas vezes referidos como mestres. Relatos históricos (SOUZA, 2003) trazem indícios sobre as relações complexas estabelecidas entre carreiros e bois, apontando para aspectos da comunicação, dos cuidados e dos laços de amizade desenvolvidos entre eles. Nos centros urbanos, a presença de carroças para o transporte de mercadorias é marcante desde a segunda metade do século XIX. Carlos Santos (2008), ao apontar que, em São Paulo, “nem tudo era italiano”, mostra como o trabalho de carroça, assim como o de lavadeiras, ambulantes e vendedores de raízes, fazia parte dos chamados “serviços de negro (p. 163), que configuravam verdadeiros espaços de resistência dessa população no pós-abolição. Carroceiros, ao contrário dos camaradas nas tropas e dos carreiros, eram geralmente os donos de suas próprias carroças e, possivelmente, dos animais com quem trabalhavam, sendo, como hoje, também os responsáveis pelos seus cuidados. A partir de trabalhos históricos e também de etnografias contemporâneas sobre tração animal (CARVALHO, 2016; OLIVEIRA, 2017; BARRETO, 2022), pretendo refletir sobre como a questão racial, tão cara à Antropologia, pode impactar a forma como pensamos as relações humano-animais no contexto dos transportes no Brasil.