Apresentação Oral em Grupo de Trabalho
GT 005: Antropoceno, Colonialismo e Agriculturas: resistências indígenas, quilombolas e camponesas diante das mutações climáticas
Etnografia-compostagem: abordagens multimodais ao solo de uma paisagem em ruína
Este artigo apresenta os resultados preliminares de um projeto de pesquisa multimodal e transdisciplinar em curso, com foco principal em práticas de regeneração e de ocupação do solo no montado Alentejano, paisagem antropogénica moldada ao longo dos séculos após os grandes arroteamentos do bosque mediterrânico. Foi ao estudar esta região empobrecida e árida do país colonizador que Amílcar Cabral (1949), engenheiro agrícola, panafricanista e revolucionário, desenvolveu a sua concepção de solo enquanto um corpo histórico sintonizado com processos político-sociais, noção que desempenhou um papel central na teorização das lutas de libertação africanas (César 2018). Em sintonia com a inseparabilidade e interatividade das dimensões geológicas, ecológicas, culturais e sociopolíticas (Barad 2003), esta pesquisa aborda fricções bio-sociais e onto-epistemológicas passadas, presentes e futuras de uma "paisagem em ruínas" (Tsing 2015). Apesar de desafios como seca, erosão do solo e toxicidade resultantes de práticas históricas e contemporâneas de monocultura intensiva, de plantações extensivas, de exploração e de extrativismo, a região acolhe, no presente, como no passado, experimentações dissidentes, como a colectivização de terras que, durante a Reforma Agrária durante da década de 1970, subverteu ideias de propriedade privada; ou projetos inovadores e ancestrais de reflorestação e regeneração de ecossistemas. Este trabalho procura ter em consideração os passados, presentes e futuros do solo, a intricada teia de relacionamentos multi-espécie que ele sustenta e os potenciais espíritos que o podem habitar. A pesquisa inspira-se no conceito de "Escritura Compostaje" de Verónica Gerber e aspira a uma "Etnografia-Compostaje" ao desafiar as fronteiras entre arquivo, testemunho, ficção, linguagem e materialidade. A abordagem multimodal propõe combinar a recuperação (e reapropriação) de arquivos visuais que documentam a ocupação de terras nos anos 1970 com pesquisa etnográfica em torno de práticas que nutrem e regeneram solos intoxicados e erodidos. Acedendo ao passado e simultaneamente perscrutando o futuro, este estudo de caso visa a) dar a ler a terra numa abordagem geomântica, compreendendo o solo como um arquivo do passado (especialmente dos passados dissidentes, como aqueles que caminharam nesta terra ocupada durante a reforma agrária); b) formular narrativas de um mundo por vir, juntamente com atores, humanos e não humanos, que, no presente, através de alianças multiespécie estão a otimizar a fotossíntese e a produção de biomassa, aumentando a fertilidade geral do solo, criando um sistema de resistência e abundância.