GT47: Igualdade Jurídica e de tratamento: etnografias de narrativas, produção de provas, processos decisórios e construção de verdades
Apresentação Oral
Patricia Marcondes Amaral da Cunha
""Você interpretava esses gestos dele como assédio ou era...?";"Não, estava explícito!" ": Etnografando um processo de estupro de vulnerável pelo viés de gênero das práticas de justiça
Na esteira dos debates sobre as práticas institucionais e as economias morais em jogo na atuação dos operadores do Direito, esse trabalho descreve e analisa os documentos escritos e as gravações audiovisuais de um processo judicial estupro de vulnerável que durou sete anos, e culminou com o arquivamento dos autos devido ao falecimento do acusado antes da promulgação da sentença. Mesmo sem conhecer seus possíveis desfechos, a tramitação do processo traz questões relevantes sobre formas de instrui-lo, de valorar as provas, identificar fatos e interpretar e aplicar o direito, etapas essas que são invariavelmente atravessadas por marcadores de gênero e geração, sobretudo tendo em mente o enquadre institucional de um Juizado Especial Criminal e de Violência Doméstica onde o mesmo transcorreu. Observa-se que as provas periciais produzidas (exame de conjunção carnal, entrevista psicológica, perícia em telefones celulares ou análise grafológica de correspondências escritas) pouco elucidaram do caso, restando como prova central a oitiva da vítima e de outras testemunhas. Pretende-se, portanto, discutir como o peso da prova testemunhal da vítima, em termos de como seu caráter de "verdade", é balisado pelo Ministério Público e pela Defesa; como os institutos legais acionados - Lei Maria da Penha, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Penal - são articulados para analisar a vitimidade de uma criança/adolescente/jovem do gênero feminino diante de um crime sexual e a suposta autoria do crime por parte do pai; e problematizar se (e como) os impactos da denúncia sob os planos econômico, afetivo e familiar são levados em consideração na hora de instruir o processo e valorar as provas. A despeito da lógica adversarial envolvida no processo judicial, haveria algo que Ministério Público e Defesa compartilham na leitura do caso? Mesmo sem a sentença, quais as manifestações do magistrado? Em suma, conclui-se que o viés reprodutor de desigualdades e preconceitos de gênero no exercício jurisdicional diante de crimes sexuais, já evidenciado em pesquisas antropológicas no Brasil desde a década de 1990, ainda se faz presente no caso em tela. Entretanto, a contribuição deste trabalho reside não em propor um "dever ser" das práticas de Justiça, mas explicitar como suas lógicas se reatualizam no cotidiano, a partir, por exemplo, daquilo que incorporam das mudanças no âmbito legislativo e institucional quanto à proteção das mulheres adultas e crianças / adolescentes (tais como a aplicação de medidas protetivas e prisão em caso de descumprimento) e dos impasses que se mantêm no processo de produção de justiça em crimes de estupro de vulnerável. Busca-se, ainda, nesse sentido, apontar alternativas debatidas no espaço acadêmico e judicial brasileiro e de outros países.